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cidadania e meio ambiente, de forma
transversal e analítica.
A Revista Cidadania & Meio Ambiente não se
responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos
em matérias e artigos assinados. É proibida a
reprodução dos artigos publicados nesta edição sem
a devida solicitação por carta ou via e-mail aos
respectivos autores.
Editado e impresso no Brasil.
E D I T O R I A L
Caros Amigos,
A ausência de políticas públicas capazes de equacionar desenvolvi-mento
sustentável e preservações ambiental e humana tem garantido
a nós, brasileiros, tanto no plano interno quanto no internacional, a
pecha de “irresponsáveis e incapazes” de gerir a diversidade de bio-mas
– em especial o complexo acervo concentrado na Floresta Ama-zônica.
Como a irresponsabilidade está a um passo da tutela, nada a
estranhar que surjam – como agora, após a ruidosa demissão da em-blemática
Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente – vozes a
clamar contra a soberania do Brasil sobre a Amazônia.
Claro que a Amazônia é nossa. Mas não podemos negar que patrocina-mos
sua destruição ao aceitarmos os irreversíveis impactos ambientais
programados, a expansão desmesurada das monoculturas pelo agrone-gócio,
a predação dos recursos naturais renováveis e não-renováveis, o
aniquilamento das comunidades indígenas e a fixação não-planejada
de colonos em busca de sobrevivência. Ademais, ao nos rendermos ao
modelo de desenvolvimento insustentável gerador de fome, de iniqüi-dades
e de desintegração do sentimento de nacionalidade.
É tempo de articularmos projetos regionais – na Amazônia e em
todo o território nacional – que integrem as populações locais a
ações construtivas, participativas e consolidadoras do exercício da
cidadania plena e da responsabilidade coletiva. Sem inclusão soci-al,
a pura e simples repressão, como vimos experimentando desde
os tempos coloniais, é passaporte para o pernicioso e individualista
‘salve-se-quem-puder’.
Ou construímos uma sociedade solidária alicerçada em projetos de
amplitude nacional ou manteremos a histórica relação de maus tra-tos
e de desprezo pelo meio ambiente e por nós mesmos, como
espelham as observações do naturalista Johannes Pohl ao descrever
o comportamento do brasileiro – colonizador e colonizado – do
século 19. E para exorcizarmos tal comportamento, esta Cidadania
& Meio Ambiente oferece elementos de reflexão sobre a situação
atual do Brasil e do mundo.
Hélio Carneiro
Editor
Colaboraram nesta edição
Marijane Vieira Lisboa
Miguel A. Altieri
Nelson Batista Tembra
Marcos Sá Correa
Informe Ensp/Agência Fiocruz de Notícias
Stéphane Foucart
João Suassuna
Leonardo Boff
Flávia Dourado
Rogério Grasseto Teixeira da Cunha
3. Nº 15 – 2008
Capa: Earth Observatory Nasa - Amazon
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Transgênicos no governo Lula: liberdade para contaminar
As medidas provisórias visando a legalização do plantio clandestino de soja transgênica,
a promulgação de uma nova lei de biossegurança e a política de estímulo ao agronegócio
exportador representam retrocesso em nossa legislação ambiental. Por Marijane Vieira Lisboa
Agricultura sustentável: soberania alimentar
Somente desafiando o controle que as multinacionais exercem sobre o sistema de produção de
alimentos e o modelo agroexportador patrocinado pelos governos neoliberais é que se poderá
deter pobreza, fome, migração e degradação ambiental. Por Miguel A. Altieri
Amazônia: o combate ao desmatamento
Além do esgotamento da Mata Atlântica e das florestas da Ásia, a devastação da cobertura
vegetal da Amazônia também é conseqüência do desemprego de milhares de famílias de
agricultores que para lá migram em busca de sobrevivência. Por Nelson B. Tembra
Amazônia: 17% já desmatada
O sistema de monitoramento DETER, do Inpe, revela que apenas em abril último a Amazônia
Legal sofreu desmatamento em 1.123 km2. Dos 4 milhões de km2 de floresta amazônica, cerca
de 700 mil km2 já foram derrubados, situação que só tende a se agravar.
A Mata Atlântica virou souvenir
Em seus últimos 97,5 mil km2, incluindo os retalhos de 100 hectares, pequenos demais para
ter futuro, a Mata Atlântica continua sendo desmatada em SC, MG, GO e BA, embora sua
relevância venha alavancando a economia do setor hoteleiro. Por Marcos Sá Correa
Saúde pública e mudanças climáticas
Marcelo Firpo e Bruno Milanez discorrem acerca da saúde pública ante os efeitos das mudanças
climáticas, do mercado de carbono e do modelo de desenvolvimento econômico que gera
desigualdades entre países ricos e pobres. Por Informe Ensp/Agência Fiocruz de Notícias
CO2: a Terra já ultrapassou o limiar do perigo?
O limiar do perigo de CO2 estaria fixado num nível muito elevado, conforme indicam novos
estudos de climatologistas, para quem o nível tolerável deveria ser de 350ppm e não de 550.
Se assim fosse, ele já teria sido atingido essa situação crítica em 1990. Por Stéphane Foucart
Sobradinho: reservatório estratégico e desconhecido
Sem essa represa seria muito difícil equacionar os problemas de geração de energia elétrica no
Nordeste. Também fundamental para o projeto de transposição, a represa vem passando por
situações volumétricas críticas. Por João Suassuna
A fome sempre existiu, mas hoje resulta do consumo
A fome é uma constante em todas as sociedades históricas. Mas hoje, suas dimensões vergo-nhosas
e cruéis revelam uma humanidade que perdeu a compaixão e a piedade. Erradicar a
fome configura-se como imperativos humanístico, ético, social e ambiental. Por Leonardo Boff
Raposa Serra do Sol – divisor de águas na política indigenista
Demarcar as terras indígenas sem incorporar espaços indispensáveis aos povos que nelas
vivem significa condenar os indivíduos e as identidades socioculturais à extinção – fato que
configura etnocídio. Por Flávia Dourado
Nada mudou desde Pohl
Relato de um naturalista do século 19 revela nossa histórica relação de maus tratos e de
desprezo pelo meio ambiente. Por Rogério Grasseto Teixeira da Cunha
4. 4
LIBERDADE PARA
por Marijane Vieira Lisboa
Entre as diversas decepções que o governo Lula reservou ao seu eleitora
do, a política ambiental foi uma das mais notáveis. Capitaneado por uma
figura emblemática como Marina Silva, fortemente apoiada por organizações ambientalistas e
pelos movimentos sociais como o MST e a CUT, tudo indicava que o Ministério do Meio Ambiente
assumiria um papel destacado no conjunto das políticas públicas dessa administração
Surpreendentemente, não só a atuação do Ministério do Meio Ambiente (MMA) foi medíocre
e apagada, como em algumas questões o governo Lula significou um real retrocesso frente ao
governo FHC. Uma dessas foi o fato de ter retirado da gaveta o projeto de transposição do rio
São Francisco que, no governo FHC contou com a forte oposição do Secretário Executivo do
Ministro Sarney Filho, Dr. José Carlos de Oliveira, mais tarde, Ministro do Meio Ambiente.
B I O S S E G U R A N Ç A
TRANSGÊNICOS
NO GOVERNO LULA:
CONTAMINAR
As Medidas Provisórias
visando “legalizar”
o plantio clandestino de
soja transgênica,
a promulgação
de uma nova lei
de biossegurança,
e a política de estímulo
ao agronegócio
exportador representam
inaceitável retrocesso em
nossa legislação
ambiental.
foto: oskaline
5. Cidadania&MeioAmbiente 5
Mas o retrocesso mais notável foi na área
de biossegurança, ao se editarem Medi-das
Provisórias para “legalizar” o plantio
clandestino de soja transgênica e promul-gar
uma nova lei de biossegurança com o
intuito explícito de retirar do IBAMA seus
poderes constitucionais para avaliar es-tudos
de impacto ambiental e conceder
licença ambiental. Em seu tempo de Mi-nistro,
Sarney Filho refutara energicamen-te
propostas nesse sentido, pois consi-derava
que tal medida significaria um re-trocesso
inaceitável para à legislação am-biental
do país.
O objetivo desse artigo, portanto, é anali-sar
as razões pelas quais tal tour-de-force
aconteceu e dele extrair algumas conclu-sões
a respeito da cultura política do PT e
do governo Lula. Comecemos por uma
recapitulação dos fatos relativos à ques-tão
da política sobre transgênicos no Bra-sil,
até o momento da posse de Lula após
a sua primeira eleição.
TRANSGÊNICOS:
POLÍTICA NADA TRANSPARENTE
As problemáticas da biotecnologia e da
biossegurança já vinham merecendo aten-ção
de setores do governo federal desde
o começo dos anos 1990. Em 1995 foi apro-vada
uma lei de biossegurança – de nº.
8974 –, que estabeleceu normas para o
uso de técnicas de engenharia genética e
para a liberação no meio ambiente de or-ganismos
geneticamente modificados.
Apesar de diversos problemas técnicos e
de passagens confusas, a lei mantinha as
atribuições constitucionais do IBAMA e da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA), para concederem licenciamen-to
ambiental e registros de saúde. No en-tanto,
o fato de a comissão constituída para
avaliar a biossegurança de transgênicos –
composta por funcionários de governo e
cientistas – estar sob a égide do Ministério
da Ciência e Tecnologia mostrava que a pre-ocupação
central era de ordem tecnológica,
e não de biossegurança. E isso se refletia
no fato de que a maioria dos cientistas es-colhidos
pelos sucessivos ministros de Ci-ência
e Tecnologia era especialistas em bio-tecnologia,
e pouco ou nada entendia de
biossegurança ambiental e de saúde.
O investimento do país em pesquisa com
transgênicos datava do começo da década
de 1990, quando a EMBRAPA assinara pro-tocolos
de cooperação com a empresa Mon-santo
para desenvolver plantas transgêni-cas,
em particular variedades de soja, que
seriam mais tarde as variedades de soja trans-gênica
Roundup Ready, liberadas no Brasil.
Tais espécies tinham sido desenvolvidas pela
EMBRAPA, enquanto a técnica da transge-nia
pertencia e continuava sendo segredo
industrial da Monsanto, segundo regia o con-trato
entre as duas empresas. Mas foi so-mente
em 1998, quando a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança (CTN-Bio) deci-diu
liberar o cultivo e o consumo da soja
transgênica no Brasil, que a questão dos
transgênicos veio atrair a atenção do públi-co.
O Instituto de Defesa do Consumidor
(IDEC) e o Greenpeace entraram na justiça
com uma ação cautelar. Obtiveram liminar,
mais tarde seguida de sentença judicial, proi-bindo
a Monsanto e a União de liberarem o
plantio e o consumo de soja transgênica no
país antes que fossem feitos os necessários
estudos de impacto ambiental e de seguran-ça
dos alimentos.
AS BATALHAS JURÍDICAS
A batalha jurídica que daí se seguiu ainda
não terminou. Mantida a cautelar pelo
TRF, em 2001, em 2002 a Monsanto e a
União obtêm uma vitória no TRF, cuja re-latora
lhes concede razão, mas cujo voto
não será unânime, permitindo que o IDEC
e a Greenpeace recorram da decisão.
Enquanto se desenrolava essa batalha jurí-dica,
outra luta acontecia no Conselho Na-cional
de Meio Ambiente (CONAMA), ór-gão
máximo do Ministério do Meio Ambi-ente
para políticas ambientais. Ali se trata-va
de elaborar uma resolução que regula-mentasse
a forma como se faria o licencia-mento
ambiental de transgênicos. Formara-se
um Grupo de Trabalho aberto, com am-pla
participação de representantes de di-versos
ministérios, empresas e organizações
não-governamentais, cujos trabalhos de-senvolveram-
se com lentidão. Razão: os re-presentantes
do Ministério da Ciência e Tec-nologia,
do Ministério da Agricultura e da
Indústria e Comércio, bem como os repre-sentantes
das empresas de biotecnologia,
fazerem questão de retirarem do IBAMA e
da ANVISA as atribuições para a avaliação
de impacto no meio ambiente e na saúde.
Era freqüente os representantes dos di-versos
ministérios serem chamados à Casa
Civil de modo a pressionarem o Ministé-rio
do Meio Ambiente a apoiar as posi-ções
pró-transgênicos nas questões po-lêmicas
do Grupo de Trabalho. Um dos
inquestionáveis méritos do mandato do
ex-ministro Sarney Filho foi o de ter finca-do
pé na defesa das atribuições do
IBAMA em realizar o licenciamento ambi-ental.
A resolução 305, aprovada já no
mandato do ministro José Carlos Carva-lho,
que sucedeu Sarney Filho nos últi-mos
seis meses do governo FHC, mante-ve,
portanto, a prerrogativa do IBAMA
para o licenciamento, fornecendo uma re-gulamentação
detalhada de como deveri-am
ser realizados os estudos de impacto
ambiental para transgênicos.
COMPROMISSO
DE CAMPANHA ESQUECIDO
O fato de o programa político da campa-nha
Lula à presidência insistir explicita-mente
que não se permitiria a liberação de
transgênicos caso não se pudesse afas-tar
a preocupação com possíveis danos
ao meio ambiente e à saúde, e o apoio
amplo que sua candidatura recebeu dos
movimentos sociais e das organizações
ambientalistas, levavam a supor que a
questão dos transgênicos mereceria um
tratamento transparente e consciencioso
por parte do Executivo. Esperava-se que
em vez da insuperável luta interna entre
os Ministérios do Meio Ambiente e os
demais, o governo Lula fosse capaz de
adotar uma posição de governo, clara e
coerente com seus princípios e compro-missos
assumidos.
A nova lei de
Biossegurança
retira do IBAMA
seus poderes
constitucionais
para avaliar
estudos de impacto
ambiental e
conceder licença
ambiental.”
“
6. Ainda antes de Lula receber a faixa presi-dencial
6
na Praça dos Três Poderes, em Bra-sília,
um fato insólito chamou a atenção
das organizações que integravam a Rede
Brasil Livre de Transgênicos. Vários de-putados
do PT haviam aceitado um convi-te
da Monsanto para visitarem sua sede
no Mississipi e também as plantações de
transgênicos na Índia e na África do Sul.
Embora mais tarde e convenientemente o
convite da Monsanto tenha se transfor-mado
em convite da Embaixada dos Esta-dos
Unidos, o resultado do tour foi a mu-dança
de opinião de vários deputados pe-tistas;
eles passaram a defender aberta-mente
os transgênicos, como o Deputado
Paulo Pimenta, do Rio Grande do Sul. Com
isso, houve a conseqüente racha da ban-cada
petista em torno do tema.
O TORNIQUETE DA PRESSÃO POLÍTICA
Os fatos que se seguiram permitem enten-der
o tal tour como a manobra inicial de
uma estratégia montada para justificar uma
drástica mudança de posição do PT e do
governo Lula na questão dos transgêni-cos.
A criação de uma facção pró-transgê-nicos
no PT punha o Presidente na cômo-da
posição de respeitar o debate interno,
da mesma maneira como urgia a seus mi-nistros
chegarem a uma posição conjunta.
Isso, matematicamente, significava a su-jeição
do Ministério do Meio Ambiente de
Marina Silva, e do Ministério de Desen-volvimento
Agrário, de Miguel Rossetto,
à maioria dos ministérios pró-transgênicos:
o de Ciência e Tecnologia, o da Agricultu-ra
e, por fim o da Indústria e Comércio.
Aliados iniciais como o Ministério da Saú-de
e da Justiça discretamente afastaram-se
do debate, deixando Marina Silva iso-lada.
A Casa Civil, embora adotando pos-tura
aparentemente neutra, tomava todas
as medidas para que o torniquete das pres-sões
políticas dobrasse a resistência do
Ministério do Meio Ambiente. Essa estra-tégia
manifestou-se claramente na publi-cação
de uma Medida Provisória que veio
a permitir a colheita e o consumo da soja
transgênica plantada ilegalmente no Rio
Grande do Sul.
Todos os esforços para buscar uma solu-ção
que não legalizasse a posteriori o plan-tio
ilegal frustraram-se frente aos argumen-tos
políticos do Presidente da República
e do então Ministro da Casa Civil, José
Dirceu. A alegação foi não se declarar
guerra aos agricultores sublevados do Rio
Grande do Sul e a seu Governador – do
PMDB –, partido cortejado para ingressar
na base de sustentação do governo.
Basta recordar um chocante episódio:
enquanto a Ministra Marina Silva não
pôde participar das negociações finais
em torno daquela Medida Provisória por
se encontrar em visita ao Xingu, a Casa
Civil enviou um jatinho a Porto Alegre
para buscar o Governador peemedebis-ta.
Nos acontecimentos que se segui-ram,
como a outra Medida Provisória
autorizando que os agricultores plantem
soja transgênica ou, mais tarde, a nego-ciação
e o encaminhamento pelo Execu-tivo
de um projeto de lei para uma nova
lei de biossegurança, a rigor, as mesmas
manobras repetiram-se.
Procura-se sempre poupar o Presidente da
República e a Ministra do Meio Ambiente
do constrangimento de um embate públi-co,
ao qual forçosamente deveria se se-guir
a renúncia da Ministra ao cargo. Em
vez disso, provoca-se uma situação em
que se torna politicamente justificável e
recomendável – em nome da democracia
interna e da governabilidade – que Lula
ceda às tendências majoritárias, tanto
dentro do seu ministério como no PT e na
base parlamentar do governo.
Para tal, é importante cuidar da composi-ção
dos grupos de trabalho internos, de
modo que a facção pró-transgênicos te-nha
sempre a maioria. É importante tam-bém
afastar aqueles funcionários dos mi-nistérios
que resolvam levar a sério as
questões de biossegurança e não os in-teresses
partidários, para o quê basta uma
reclamação junto aos ministros em ques-tão.
Fundamental, sobretudo, é garantir
que a relatoria das Medidas Provisórias e
os projetos de lei caiam em mãos de de-putados
e de senadores pró-transgêni-cos
do PT: vendo-se dessa forma dividi-do,
o partido não tem condições de fe-char
posição de bancada.
Finalmente, enquanto os ministros da
Agricultura e da Ciência e Tecnologia
saem a público criticando os ambienta-listas
“fanáticos e obscurantistas”, Ma-rina
Silva fecha-se em um silêncio obse-quioso.
Talvez por acreditar que seu
comportamento leal a Lula seja-lhe de al-gum
valor, Marina Silva contenta-se em
inserir nos textos negociados, dispositi-vos
que não serão jamais obedecidos –
como foi o caso da necessidade de rotu-lagem
de alimentos transgênicos, na pri-meira
Medida Provisória.
foto: pxlsnfr
A administração Lula foi incapaz de adotar uma posição
de governo clara e coerente com os princípios e compromissos
assumidos durante a campanha presidencial.”
“
7. Cidadania&MeioAmbiente 7
A defesa
de uma agricultura
ambientalmente
sustentável está
estreitamente
relacionada
à preservação da
biodiversidade,
à busca da
soberania alimentar,
à proteção da
agricultura familiar,
à geração de renda
para populações
rurais e a uma
política de reforma
agrária
conseqüente.
TRANSGÊNICOS
E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
A recente aprovação pelo Congresso de uma
Medida Provisória que regulamentava a plan-tação
de transgênicos nas proximidades de
Unidades de Conservação, na qual a ban-cada
ruralista inseriu duas emendas, seguiu
o mesmo roteiro bem conhecido. Uma per-mitia
a comercialização de algodão, ilegal-mente
plantado; a outra reduzia o quorum
da CTN-Bio, necessário à liberação comer-cial
de cultivos transgênicos.
Primeiramente, a Ministra do Meio Ambiente
enviou ao Executivo um texto original, com a
promessa de que o presidente Lula vetaria
todas as emendas oriundas da bancada rura-lista,
caso estas fossem aprovadas pela duas
casas. Como era de se esperar, a bancada rura-lista
introduziu as duas emendas acima co-mentadas
e a relatoria – que surpresa! – foi
dada ao Deputado do PT, Paulo Pimenta, o
grande defensor dos transgênicos. Levada à
votação, a bancada do PT rachou, embora o
líder do partido na Câmara tenha se manifes-tado
contra a emenda. Rachada, e sem que o
governo fizesse quaisquer esforços para ob-ter
apoio de outros partidos – as emendas
foram aprovadas.
No Senado, a farsa repetiu-se. O Senador
Delcídio Amaral, muito sensível ao agro-negócio
em seu estado do Mato Grosso
do Sul, foi designado como relator e mani-festou-
se favorável a apoiar as emendas.
A liderança de governo instruiu os parti-dos
da base aliada a votarem da mesma
Essa resumida descrição das estratégias
adotadas pelo governo Lula para aprovar
a liberação de transgênicos – sem ter que,
publicamente, renegar suas posições an-teriores
nem incompatibilizar-se frontal-mente
com os movimentos sociais de sua
base de apoio ou expor sua Ministra do
Meio Ambiente à humilhação política –,
permite-nos agora analisar as razões pe-las
quais o PT teve de empreender tama-nha
mudança de rumos.
MMA: SEM FORÇA FRENTE AO PT
E À BANCADA RURALISTA
Em primeiro lugar, é evidente que o go-verno
Lula, mais ainda do que o de seu
antecessor, FHC, enfrenta dificuldades
para reunir e garantir uma ampla base de
apoio tanto partidária, quanto social. En-quanto
o apoio da bancada ruralista a FHC
era um fato inconteste, o governo Lula
necessita cortejá-la a todo tempo, sem
nunca alcançar a graça de conquistá-la
definitivamente.
Extremamente forte na Câmara e no Con-gresso
– com representantes distribuí-dos
entre o oscilante PMDB e todos os
demais partidos de oposição –, a banca-da
ruralista soube utilizar-se dessa mai-or
vulnerabilidade política do governo
Lula para cobrar, a preço de ouro, seu
apoio, senão mesmo sua neutralidade.
Um exemplo extraordinário desse rega-teio
foi o fato de o Governador eleito do
Mato Grosso, Blairo Maggi, em troca de
seu apoio a Lula no 2ª turno da eleição
”
“
forma. Assim, a Senadora Ideli Sal-vati,
líder do partido no Senado, sen-tiu-
se “forçada” a liberar a bancada
para votar como quisesse, o que re-sultou
na folgada aprovação do texto
com as emendas.
Uma carta assinada por mais
de 80 entidades e por movimen-tos
da sociedade civil, e por
quase 80 deputados federais e
sete senadores, pediu então ao
presidente da República que
vetasse os dois artigos emen-dados.
No dia 22 de março,
Lula sancionou a lei, vetando
apenas o artigo que legalizava
o plantio ilegal de algodão. O
quorum necessário para apro-var
a introdução de um trans-gênico
no meio ambiente redu-ziu-
se a 14 conselheiros.
presidencial, ter negociado “a li-beração
de algodão e dos milhos
transgênicos”, como se tais libe-rações
fossem prerrogativas da
presidência da República e não
atribuições da CTNBio, especi-almente
constituída para tal.
O ex-Ministro do Meio Ambien-te
do governo FHC, Sarney Fi-lho,
encontrava-se em uma situ-ação
muito mais confortável, pois
não pertencendo ao partido do
Presidente e sim ao PFL e sendo
filho do Senador Sarney, do
PMDB, desfrutava de uma liber-dade
e também de uma conside-ração
muito maior por parte da
presidência. Foram muitas as
ocasiões nas quais Sarney Filho
recorreu e obteve de FHC apoio
foto:yoshiko314 para às suas políticas.
8. Talvez o mais marcante desses episódios
tenha sido o momento em que uma comis-são
8
mista de deputados e senadores apro-vou
uma Medida Provisória que reformava
o Código Florestal e reduzia a extensão de
matas nativas a serem preservadas em pro-priedades
particulares. A comissão mista era
composta majoritariamente por ruralistas de
amplo espectro partidário, o que fez com
que a o mecanismo legal fosse aprovado
com apenas dois votos contrários – o do
Deputado Federal Fernando Gabeira e o da
então Senadora Marina Silva.
Sarney Filho, que fora achincalhado pelos
parlamentares em visita que lhes fizera na
semana anterior, pediu e obteve o apoio de
FHC: logo após a votação, o líder do gover-no,
o Deputado Federal Artur Virgílio, comu-nicou
a seus correligionários e aos membros
dos partidos aliados que o Presidente não
enviaria a MP ao Congresso enquanto ela
não fosse modificada. No governo Lula, não
só as posições defendidas por Marina Silva
em assuntos ambientais vêm sendo sistema-ticamente
desprezadas em favor daquelas ad-vogadas
por ministros de outras pastas, como
são freqüentes os ataques públicos à sua
pessoa e a seu ministério, sem que o Presi-dente
erga a voz em sua defesa.
Em suma, é perfeitamente lógico afirmar que
a principal razão pela qual o governo Lula
legalizou o cultivo comercial da soja planta-da
ilegalmente no país foi, estritamente, o
oportunismo político. Com o mesmo intuito
foram dispensados os devidos estudos ci-entíficos
sobre biossegurança e, mais tar-de,
modificada sua legislação de biossegu-rança,
de modo a facilitar liberações futuras
de outros cultivos. É bem provável que a
maioria dos deputados, senadores e minis-tros
que teve de se manifestar ou votar a
respeito não tenha despendido mais que
alguns minutos para tentar entender a ques-tão.
De fato, em assuntos considerados se-cundários,
o colégio de líderes negocia e
suas bancadas seguem a orientação dos
líderes, sem questioná-la.
POLÍTICA AGRÁRIA:
DECEPÇÃO E PERPLEXIDADE
Para os movimentos sociais que constituem
a base do governo Lula, no entanto, foi ex-tremamente
decepcionante o fato de o PT
considerar esse tema tão irrelevante a ponto
de negociá-lo com a bancada ruralista, com o
PMDB e com outros setores políticos como
moeda de troca para outros assuntos.
“
A defesa de uma agricultura ambientalmen-te
sustentável está estreitamente relacio-nada
à preservação da biodiversidade, à
busca da soberania alimentar, à proteção
da agricultura familiar, à geração de renda
para populações rurais e a uma política de
Reforma Agrária consequente. Soma-se a
esse complexo de temas interligados a vi-são
das seguranças dos alimentos e ali-mentar
como direitos humanos, defendi-dos
por entidades de consumidores e por
movimentos ligados à área da saúde.
Assim, a temática dos transgênicos tem a
capacidade de aglutinar segmentos dife-renciados
da Sociedade Civil, o que se
pode constatar facilmente no amplo es-pectro
de movimentos e de organizações
reunidas na Rede Brasil Livre de Trans-gênicos.
Tratando-se de um governo for-temente
comprometido com bandeiras
políticas como a luta contra a fome, a Re-forma
Agrária e o combate à miséria, era
de se esperar que tal administração per-cebesse
a extrema importância de promo-ver
uma agricultura sustentável, ecológi-ca
e socialmente justa, apoiada nos mo-vimentos
de pequenos agricultores.
Os primeiros meses do governo Lula dei-xaram
claro, no entanto, que suas prefe-rências
e preocupações no que tangem à
sua política agrária voltavam-se antes de
tudo para o agronegócio de exportação:
soja, carne, açúcar. Isso não deve ser atri-buído
apenas à necessidade de compor
sua base de sustentação parlamentar e
conquistar apoio político de setores in-fluentes
da sociedade, mas corresponde
também à concepção de desenvolvimen-to
predominante nesse governo.
Embora o PT e o programa político da
candidatura Lula afirmassem estarem
comprometidos com políticas de sobe-rania
alimentar, com o desenvolvimento
sustentável e com a Reforma Agrária, tais
questões nunca foram encaradas como
elementos centrais, estruturantes de um
novo paradigma de sociedade. Eram vis-tos,
no máximo, como políticas subsidiá-rias
a serem adotadas na medida em que
não prejudicassem aquilo que se consi-dera
como essencial ao desenvolvimen-to:
o crescimento econômico.
E, tratando-se de crescimento econômico,
o PT abraçava o que havia de mais tradici-onal
no país: o estímulo ao agronegócio
exportador. Isso significava ignorar os im-pactos
ambientais negativos de uma agri-cultura
baseada na monocultura, no uso
intensivo de agrotóxicos, fertilizantes e
água, o que leva forçosamente ao empo-brecimento
da biodiversidade, à perda da
fertilidade dos solos e ao esgotamento dos
recursos hídricos. Também significa optar
por uma agricultura cuja mecanização cres-cente
conduz a um aumento do desempre-go
rural, arruína o pequeno agricultor e,
conseqüentemente, fomenta a expansão da
fronteira agrícola em terras do Cerrado e
da Floresta Amazônica.
A INCONSISTÊNCIA DO DISCURSO
DESENVOLVIMENTISTA
Nada mais ilustrativo dessa concepção
desenvolvimentista do PT do que o infe-liz
improviso do Presidente da República
ao visitar Blairo Maggi, o Governador so-jeiro
de Mato Grosso, e declarar que “ín-dios,
quilombolas e a legislação ambien-tal
eram os maiores obstáculos ao desen-volvimento
do país”. O caráter de impro-viso
da fala presidencial é testemunha de
sua sinceridade. É assim que pensa a am-pla
maioria dos quadros do PT. E quanto
mais alta a posição na hierarquia, mais
O governo Lula
necessita cortejar
a bancada ruralista
o tempo todo,
sem nunca alcançar
a graça de
conquistá-la
definitivamente.”
9. Cidadania&MeioAmbiente 9
esses quadros interiorizaram o discurso e
a prática “desenvolvimentista”, identifi-cando
desenvolvimento social com cres-cimento
econômico. Em nome deste, jus-tifica-
se sacrificar o meio ambiente e a jus-tiça
social em prol dos ganhos econômi-cos
de curto prazo para uma reduzida eli-te
de brasileiros.
Dos propósitos socialistas do passado
restam “as políticas compensatórias”, em
que o Estado tenta corrigir os piores ex-cessos
advindos desse crescimento eco-nômico
logicamente excludente do ponto
de vista social. O mérito de Lula é deixar
escapar o que pensa, enquanto a lideran-ça
do PT aprendeu a esconder de suas
bases o que realmente pensava. Não po-dendo
sustentar-se sem o apoio dos mo-vimentos
sociais, o PT e o governo Lula,
portanto, sustentam um discurso que não
corresponde à sua prática; assim, tentam
esquivar-se às críticas que se avolumam
em sua base social e garantindo que as
lideranças de entidades e os movimentos
sociais continuem prestando-lhes apoio.
É óbvio que não se trata de um fenômeno
recente essa mudança de mentalidade no
seio da elite dirigente do PT, de que é pro-va
o desligamento de figuras históricas
desse partido já em meados dos anos 1990.
Portanto, tanto o governo de FHC quanto
o de Lula são muito próximos no que tan-ge
à concepção do que seja “desenvolvi-mento”:
crescimento do PIB, balança co-mercial
positiva graças às exportações,
política de favorecimento de produtos de
pouco valor agregado e externalização dos
custos ambientais e sociais, como é o caso
da soja, da carne, do minério de ferro e de
outros. Visa-se angariar divisas em curto
prazo; investimento público em infra-es-trutura
como vetor de crescimento econô-mico
e financiamento público do investi-mento
privado; crenças essas em que as
benesses do crescimento econômico aca-bam
por mitigar a miséria social, gerando
emprego, renda e receita para o Estado.
Não importa que a realidade desminta es-sas
crenças, nem que a desigualdade social
permaneça ou sofra ridículas reduções, ou
desmatamento da Floresta Amazônica siga
impávido – ainda que em ritmo menor, tal-vez
devido ao momentâneo despencar do
preço da soja no mercado externo. Também
não interessa que o Cerrado esteja se tor-nando
um mar de soja, que terras agricultá-veis
“
tornem-se imprestáveis, que novas
vagas de trabalhadores sem terra venham a
engrossar as fileiras do MST, que a miséria
nas cidades aumente e, junto a ela, as maze-las
da criminalidade e da insegurança.
A força das ideologias está em sua expli-cação
simples e confortante da realida-de,
e não em sua lógica ou veracidade. O
PT que chegou ao poder já havia sido
ganho para essa concepção desenvol-vimentista,
que substituiu seus ideais so-cialistas
insustentáveis após a queda do
Muro de Berlim.
O lamentável desempenho do governo
Lula, na questão dos transgênicos, bem
como em outros temas ligados à questão
ambiental e de política agrícola deve-se
antes de tudo à sua vulnerabilidade polí-tica,
a qual lhe exigiu fazer grandes con-cessões
à bancada ruralista e a partidos
da base aliada, como o PMDB. E o que
tentei argumentar aqui é que tais conces-sões
não contrariam nem os princípios
nem as concepções de desenvolvimento
dos seus quadros dirigentes. Opõem-se
apenas àqueles dos movimentos popula-res
que constituíam a sua base social mais
aguerrida e que ainda lhe garantiram um
segundo mandato.
Até quando o governo Lula continuará
enganando suas bases, e estas se deixa-rão
enganar, é uma questão a ser elucida-da
nos próximos anos. De definitivo para
a História fica o fato de que foi no “go-verno
popular” de Lula e no ministério de
Marina Silva que a resistência da Socie-dade
Civil foi vencida; assim, fez-se a von-tade
do agronegócio e das multinacionais
da biotecnologia, autorizando o cultivo e
o consumo de soja transgênica por meio
de Medidas Provisórias, e “flexibilizando-se”
a legislação de biossegurança, já por
si bastante permissiva, de modo a permi-tir
que outros transgênicos (como o mi-lho
e o algodão) venham a ser liberados
em um futuro próximo.
Com isso, o governo Lula desmontou todo
um arcabouço legal em biossegurança que
fora sendo paulatinamente construído na
última década pelo governo e por movi-mentos
sociais.Formou-se um perigoso
precedente para que novas tecnologias
possam igualmente vir a se furtarem do
licenciamento ambiental e da adoção do
Princípio da Precaução e, com isso, da vi-gilância
e do controle social. ■
Marijane Vieira Lisboa - Doutora em
ciências sociais, professora da Fac. de
Ciências Sociais da PUC-SP e ex-Secretária
de Qualidade Ambiental do Ministério do
Meio Ambiente entre 2003 e 2004.
E-mail: marijane.lisboa@terra.com.br
Este artigo foi originalmente publicado pela
Revista PUCviva, ano 8, nº 29, jan./março 2007
As posições
defendidas por
Marina Silva em
assuntos ambientais
vêm sendo
sistematicamente
desprezadas
em favor das
advogadas
por ministros de
outras pastas.”
foto: Marcelo Casal Jr/ ABr
10. AGRICULTURA SUSTENTÁVEL:
SOBERANIA ALIMENTAR
10
S E G U R A N Ç A A L I M E N T A R
Somente desafiando
o controle que as
multinacionais exercem
sobre o sistema de
produção de alimentos
e o modelo
agroexportador
patrocinado pelos
governos neoliberais
poder-se-á deter a
espiral de pobreza,
fome, migração rural e
degradação ambiental.
Por Miguel A. Altieri
AGRICULTURA INDUSTRIAL:
MODELO NÃO-SUSTENTÁVEL
A agricultura mundial está numa encruzi-lhada.
A economia global impõe deman-das
conflitantes sobre os 1.500 milhões
de hectares cultivados. Não apenas se
exige que a terra agricultável produza ali-mento
suficiente para uma população em
crescimento, como também que forneça
biocombustíveis, e que o faça de modo
ambientalmente correto, preservando a bi-odiversidade,
diminuindo a emissão de
gases de efeito estufa e ao mesmo tempo
garantindo aos agricultores uma ativida-de
economicamente viável.
Essas pressões desencadeiam uma crise
no sistema de produção de alimento em
escala planetária sem precedentes: a cri-se
já se manifesta nos protestos contra a
escassez de alimentos em muitos países
da Ásia e da África. Afinal, 33 deles estão
à mercê da instabilidade social devido à
carência e ao preço dos alimentos. Tal cri-
se, que ameaça a segurança alimentar de
milhões de indivíduos, resulta diretamen-te
de um modelo de agricultura industrial,
que não só depende perigosamente dos
hidrocarbonetos como também se conver-teu
numa das maiores forças entrópicas
da biosfera. As crescentes pressões sobre
a área agrícola em retração estão solapan-do
a capacidade de a natureza suprir as
demandas de alimentos, de fibras e de ener-gia
para a humanidade. E o impasse decor-re
do fato de o contingente humano de-pender
dos serviços ecológicos (ciclos de
água, agentes polinizadores, solos férteis,
clima local benevolente etc.) que a agricul-tura
intensiva continuamente empurra para
além de seus limites.
Antes mesmo do final da primeira década
do século 21, a humanidade conscientiza-se
de que o modelo industrial capitalista
de agricultura dependente do petróleo já
não é capaz de garantir o suprimento de
alimentos. O desafio imediato de nossa ge-
foto: Luc Legay
11. Miguel A. Altieri – Professor da University
of California, Berkeley e da Sociedad Científi-ca
Latinoamericana de Agroecología (SOCLA).
Artigo publicado originalmente em
www.cadtm.org e nos sítios EcoPortal.net,
http://ecoportal.net/content/view/full/78323 e
EcoDebate (12 Maio 2008).
Cidadania&MeioAmbiente 11
ração é iniciar a transição nos sistemas de
produção de alimentos para que eles não
dependam mais do petróleo.
SEGURANÇA ALIMENTAR
Os preços inflacionários do petróleo ine-vitavelmente
incrementam os custos de
produção; os preços dos alimentos che-garam
a tal ponto que um dólar hoje com-pra
30% menos produtos que há um ano.
Na Nigéria, uma pessoa gasta 73% de seus
rendimentos em alimentos; no Vietnã,
65%; e na Indonésia, 50%. Essa situação
agudiza-se rapidamente na medida em que
a terra agrícola é destinada à produção de
biocombustíveis e que as alterações cli-máticas
reduzem a produtividade agríco-la
via secas ou inundações. Expandir o
contingente de terras agricultáveis aos bi-ocombustíveis
ou aos transgênicos – que
já alcançam mais de 120 milhões de hecta-res
– exacerbará os impactos ecológicos
das monoculturas, que continuamente
degradam os ciclos da natureza.
Além disso, a agricultura industrial atual-mente
contribui com mais de 1/3 das emis-sões
globais dos gases de efeito estufa, em
especial o metano e os óxidos nitrosos.
Continuar com esse processo degradante
promovido pelo sistema econômico neoli-beral
não é uma opção viável nem ecologi-camente
honesta, pois não reflete as exter-nalidades
ambientais. O desafio imediato de
nossa geração é iniciar a transição nos sis-temas
de produção de alimentos para que
eles não dependam mais do petróleo
AGRICULTURA SUSTENTÁVEL
E SOBERANIA ALIMENTAR
Necessitamos de um paradigma alternati-vo
de desenvolvimento agrícola que pro-picie
formas de agricultura ecológica, sus-tentável
e socialmente justa. Redesenhar
o sistema de produção de alimentos a for-mas
mais equitativas e viáveis para os
agricultores e consumidores requererá
mudanças radicais nas forças políticas e
econômicas que determinam o que pro-duzir,
como, onde e para quem. O livre
comércio sem controle social é o princi-pal
mecanismo que desaloja os agriculto-res
de suas terras e vem a ser o principal
obstáculo à garantia do desenvolvimen-to
e da segurança alimentar regionais. So-mente
desafiando o controle que as em-presas
multinacionais exercem sobre o sis-tema
de produção de alimentos e o mode-lo
agro-exportador patrocinado pelos go-vernos
foto:Gustavo Ferri
neoliberais é que se poderá deter
a espiral de pobreza, fome, migração rural
e degradação ambiental.
O conceito de soberania alimentar – como
o promovido pelo movimento mundial de
pequenos agricultores, a Via Campesina –
constitui a única alternativa viável ao sis-tema
alimentar em colapso, totalmente fa-lho
ao postular que o comércio livre inter-nacional
seria a chave para solucionar o
problema alimentar em escala mundial. A
soberania alimentar enfatiza os circuitos
locais de produção-consumo e as ações
organizadas para se ter aceso à terra, à
água, à agrobiodiversidade etc., recursos-chave
que as comunidades rurais devem
controlar para poderem produzir alimentos
com métodos agroecológicos.
AGRICULTORES E CONSUMIDORES:
ALIANÇA ESTRATÉGICA
Não há dúvida de que uma aliança entre agri-cultores
e consumidores é de importância
estratégica. Ao mesmo tempo em que os con-sumidores
devem interferir na cadeia alimen-tar
ao consumirem menos proteína animal,
também precisam se conscientizar de que sua
qualidade de vida está intimamente associa-da
ao tipo de agricultura praticada nos cintu-rões
verdes que circundam povoados e ci-dades.
E isso não ocorre apenas pelo tipo e
pela qualidade dos cultivos ali produzidos,
mas igualmente pelos serviços ambientais,
como a qualidade da água, o microclima e a
conservação da biodiversidade etc. que essa
agricultura multifuncional gera.
Porém, a multifuncionalidade somente trans-parece
quando a paisagem é dominada por
centenas de pequenas propriedades biodi-versas
que, como demonstram os estudos,
podem produzir entre duas a dez vezes mais
por unidade de área que as propriedades
em escala industrial. Nos Estados Unidos,
a agricultura sustentável – em sua maioria
garantida por pequenos e por médios agri-cultores
– gera uma produção total maior
que os monocultivos extensivos, ainda sen-do
capaz de reduzir a erosão e conservando
mais a biodiversidade. As comunidades no
entorno das pequenas propriedades apre-sentam
menos problemas sociais (alcoolis-mo,
dependência de drogas, violência fami-liar,
etc.) e exibem economias mais fortes que
aquelas cercadas por propriedades grandes
e mecanizadas.
No estado de São Paulo, as cidades cerca-das
por grandes plantações de cana-de-açú-car
são mais quentes que as rodeadas por
propriedades agrícolas médias e diversifica-das.
Portanto, deveria ser óbvio para um con-sumidor
urbano que comer constitui a um só
tempo um ato ecológico e político. Ao com-prar
alimentos em mercados locais ou em fei-ras
de agricultores vota-se por um modelo
de agricultura adequada à era pós-petróleo.
Por outro lado, ao comprar em grandes ca-deias
de supermercados perpetua-se o mo-delo
agrícola não-sustentável.
A escala e a urgência do desafio que a hu-manidade
enfrenta são sem precedentes, e
as providências a serem tomadas são de
ordens ambiental e social, politicamente
exeqüíveis. Erradicar a pobreza e a fome
mundiais exige um investimento anual de,
aproximadamente, 50 bilhões de dólares –
uma migalha se comparado ao orçamento
militar mundial que abocanha mais de um
trilhão de dólares por ano. A velocidade com
que se deve implementar a mudança deve
ser urgente. No entanto, será que existe von-tade
política para transformar radical e ve-lozmente
o sistema nutricional, antes que a
fome e a insegurança alimentar alcancem
proporções planetárias e irreversíveis? ■
Um dólar compra
hoje 30% menos
alimentos do que
há um ano.”
“
13. Frente à inevitável ocupação e à exploração econômica da Amazônia, no últi-mo
8 de maio foi lançado o PAS. Trata-se de uma política de desenvolvimento
regional baseada no uso sustentável dos recursos naturais com estratégias vol-tadas
à geração de emprego e renda e à redução das desigualdades sociais.
Assinado pelo Presidente Lula, em conjunto com governadores de oito estados
amazônicos, o documento estabelece compromissos com a Amazônia, a saber:
1. Promover o desenvolvimento sustentável com valorização das diversidades sócio-cultu-ral
Cidadania&MeioAmbiente 13
e ecológica e a redução das desigualdades regionais.
2. Ampliar a presença democrática do Estado, com integração das ações dos três níveis de
governo, da sociedade civil e dos setores empresariais.
3. Fortalecer os fóruns de diálogo intergovernamentais e esferas de governos estaduais a
fim de contribuir para uma maior integração regional, criando o Fórum dos Governadores
da Amazônia Legal.
4. Garantir a soberania nacional, a integridade territorial e os interesses nacionais.
5. Fortalecer a integração do Brasil com os países sul-americanos amazônicos, fortalecen-do
a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e o Foro Consultivo de
Municípios, Estados, Províncias e Departamentos do Mercosul.
6. Combater o desmatamento ilegal, garantir a conservação da biodiversidade, dos recur-sos
hídricos e mitigar as mudanças climáticas.
7. Promover a recuperação das áreas já desmatadas, com o aumento da produtividade e
com a recuperação florestal.
8. Implementar o Zoneamento Ecológico-Econômico e acelerar a regularização fundiária.
9. Assegurar os direitos territoriais dos povos indígenas e das comunidades tradicionais e
promover a eqüidade social, considerando gênero, geração, raça, classe social e etnia.
10. Aprimorar e ampliar o crédito e o apoio para atividades e cadeias produtivas sustentáveis.
11. Incentivar e apoiar a pesquisa científica e a inovação tecnológica.
12. Reestruturar, ampliar e modernizar o sistema multimodal de transportes, o sistema de
comunicação e a estrutura de abastecimento.
13. Promover a utilização sustentável das potencialidades energéticas e a expansão da
infra-estrutura de transmissão e de distribuição com ênfase em energias alternativas lim-pas
e garantindo o acesso das populações locais.
14. Assegurar que as obras de infra-estrutura provoquem impactos socioambientais míni-mos
e promovam a melhoria das condições de governabilidade e da qualidade de vida das
populações humanas nas respectivas áreas de influência.
15. Melhorar a qualidade e ampliar o acesso aos serviços públicos nas áreas urbanas e rurais.
16. Garantir políticas públicas de suporte ao desenvolvimento rural com enfoque nas dimen-sões
das sustentabilidades econômica, social, política, cultural, ambiental e territorial.
Fonte: Daniela Mendes, MMA
derrubar aproximadamente quatro hecta-res
de floresta por ano. Destrói, assim, um
enorme volume de biodiversidade com
valor potencial, tanto no presente quanto
no futuro, somente para atender às suas
necessidades básicas de subsistência.
Quando esgotados o solo e os recursos
florestais, resta ao colono trilhar o cami-nho
inverso ao da reforma agrária, ven-dendo
a terra de volta ao grande proprie-tário,
ou abandonando sua área, seguin-do
para novas regiões de fronteira a fim
de repetir o ciclo vicioso.
Todo o processo também abre espaço à
marginalização, à grilagem, à invasão de
terras, à exploração ilegal de madeira e à
biopirataria. O Brasil possui uma das le-gislações
ambientais mais completas do
planeta. No entanto, embora os impac-tos
primários da exploração seletiva de
madeiras sejam pequenos, a presença da
economia madeireira nas regiões de fron-teira
– atraída pela abertura das estradas
e pela implantação dos grandes proje-tos
– continua a contribuir para o des-florestamento.
Mas são os impactos secundários da co-lonização
espontânea associados à au-sência
de políticas públicas ou a políti-cas
públicas deficientes ou mal aplicadas
que comprometem a ecologia da região
no presente e no futuro.
A ação do Exército e da Polícia Federal é
necessária enquanto medida curativa ao
crescente desmatamento. Mas o combate
vai além da fiscalização: é preciso acima de
tudo agir pela prevenção e separar o joio
do trigo. Estudos demonstram que o go-verno
brasileiro, agora sob o comando do
PT, deve ser adequadamente estruturado
para enfrentar os sérios problemas histó-ricos
que se arrastam desde a invenção do
Brasil. Afinsl, não é de hoje que dados
estatísticos demonstram o aumento da
taxa de desmatamento anual e a degrada-ção
do ambiente, apontando historicamen-te
para uma relação direta com o desequi-líbrio
socioeconômico e com as desigual-dades
sociais. ■
Nelson Batista Tembra –
Engenheiro agrônomo e Consultor
ambiental. Tem 27 de experiência na
profissão. É colaborador e articulista do
EcoDebate.
Brasília - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa durante o lançamento
do Plano Amazônia Sustentável . Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr
14. 17%JÁ
Mesmo antes de terminar o perío
14
do de observação da cobertura
florestal da Amazônia Legal –
que vai até julho –, dados do sistema de
monitoramento por satélite DETER (Detec-ção
do Desmatamento em Tempo Real) apon-tam
forte aumento do processo de desflo-restação.
O desmatamento passou de 4.974
km2, entre 2006 e 2007, para 5.850 km2 de agos-to
de 2007 até abril deste ano. Uma consta-tação
alarmante já que nos últimos três anos
o ritmo de desmatamento na região vinha
diminuindo. Segundo dados apresentados
pelo diretor do Inpe, Gilberto Câmara, dos
700 mil km2 devastados, 300 mil ocorreram
nos últimos 20 anos. E no atual passo de
desflorestamento, a cada dez segundos é
desmatada na Amazônia uma área equiva-lente
a um campo de futebol.
O Ministro do Meio
Ambiente Carlos
Minc comprova nas
imagens do sistema
de monitoramento
espacial DETER
que em abril último
foram desflorestados
1.123 km2 – área
equivalente a
da cidade do
Rio de Janeiro.
Dos 4 milhões
de km2 de floresta
amazônica,
700 mil km2 já
foram desmatados.
foto:Wilson Dias/ABr
AMAZÔNIA
Do total dos 5.850 km2 de área em que se
verificou corte raso ou degradação pro-gressiva,
Mato Grosso foi – como já ha-via
antecipado Carlos Minc, ministro do
Meio Ambiente – o campeão em desma-tamento
no período, com 794,1 km2, ou
70,7%. Com 284,8 km² de área desmata-da,
Roraima ocupa o nada honroso se-gundo
lugar. Embora Rondônia, com
34,6 km2, tenha sido o terceiro coloca-do,
este estado é, proporcionalmente, o
mais degradado, enquanto o Amazonas
é o mais preservado.
O DESMATAMENTO VIA SATÉLITE
Em operação desde maio de 2004, o DE-TER
foi concebido como um sistema de
levantamento de alerta para suporte à fis-calização
e controle de desmatamento.
As imagens obtidas são processadas di-gitalmente
pela Metodologia PRODES, e
o conjunto de dados são apresentados
por município, estado, base operativa e
unidades de conservação, buscando fa-cilitar
as operações de fiscalização.
O Sistema DETER, no entanto, detecta
apenas polígonos de desmatamento com
área maior que 25 hectares por conta da
resolução dos sensores espaciais de que
se vale, a saber: dados do sensor MODIS
(satélite Terra/Aqua) e do sensor WFI (sa-télite
sino-brasileiro CBERS), com resolu-ção
espacial de 250 metros. Mas devido à
cobertura de nuvens que podem obstruir
os olhos dos satélites na varredura realiza-da,
nem todos os desmatamentos são ime-diatamente
identificados pelo sistema.
DESMATADA
14
15. dos através de imagens de satélites e traba-lho
de campo realizado por cerca de 20 fun-cionários
do IBGE. Eles foram a 2.500 pon-tos
de inventários florestais, regiões de um
hectare quadrado, onde coletaram a vege-tação
local e fizeram a medição das árvores
com potencial comercial – aquelas com mais
de 30 centímetros de diâmetro. Isso permite
precisar com bastante credibilidade a ocor-rência
de determinada espécie de árvore.
“Quanto mais conhecimento o governo e a
sociedade tiverem dos biomas, maiores as
condições políticas para adotar medidas
coerentes com o desenvolvimento susten-tável”,
infoma Roberto Ricardo Vizentin, di-
A CANA DE AÇÚCAR
SE EXPANDE NA AMAZÔNIA
A menos de dois meses do prazo previsto para o Ministério da Agricultura con-cluir
proposta de zoneamento agrícola que bloquearia o avanço da cana-de-açúcar
na Amazônia, documento oficial aponta crescimento da cultura dentro do
bioma amazônico nos Estados do Acre, de Roraima e do Pará.
Até 2012, um único município do Acre deve multiplicar quase dez vezes a área
plantada, alcançando o equivalente a 30% da cidade de São Paulo, aponta
documento produzido pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuá-ria),
vinculada ao Ministério da Agricultura, e cujos estudos têm pesado nas
análises do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a Amazônia.
O documento desautoriza as declarações de Lula em fóruns internacionais. O
presidente insiste que a Amazônia não é propícia ao cultivo da cana, e que as
áreas plantadas estão “muito distantes” da floresta. O documento é um subsídio
ao PAS (Plano Amazônia Sustentável).
Segundo a Embrapa, projeto que conta com financiamento do governo do Acre –
comandado pelo PT – já teria plantado 45 km2 de cana no município de Capixa-ba,
Cidadania&MeioAmbiente a apenas 60 km da capital Rio Branco.
Em Roraima, dois empreendimentos implantados em 2007 planejam ocupar
90 km2 com a cultura da cana até 2009. O destino da produção, indica docu-mento
da Embrapa, seriam os mercados da Amazônia e da Venezuela, que
introduziriam o álcool como aditivo à gasolina.
Ao deixar o governo, a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva voltou a
defender que as culturas de cana se mantivessem distantes da Amazônia, como
forma de viabilizar o selo ambiental ao álcool brasileiro. Marina descartava até o
uso de áreas já desmatadas e preferia acreditar que as culturas existentes eram
“projetos senis”.
Dados da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) registraram o au-mento
em 9,6% na última safra de cana na Amazônia Legal – de 17,6 para 19,3
milhões de toneladas –, com crescimento da área plantada em Mato Grosso,
Tocantins e Amazonas.
Embora eficiente na detecção de ocorrência
de desmatamento por corte raso, o sistema
não é o mais adequado para mapear o pro-cesso
de degradação florestal, pois subes-tima
e detecta, em geral, processos já nos
estados finais de degradação. Mesmo as-sim,
o Inpe prova que o sistema DETER é
eficiente e confiável, já que a proporção de
alertas não confirmados como desmatamen-to
é menor do que 6%. A partir de 2011 no-vos
satélites serão incorporados ao siste-ma.
Para otimizar o monitoramento atual, o
Inpe já pensa em recorrer, de forma comple-mentar,
aos dados do satélite japonês Alos,
que não sofre influência das nuvens.
BANCO DE DADOS VEGETAL: NOVO
ALIADO CONTRA O DESMATAMENTO
A Amazônia Legal ganhou em 2 de junho
último um banco de dados que servirá de
subsídio à formulação de políticas públi-cas
para a região (Acre, Amapá, Amazo-nas,
Mato Grosso, Pará, Rondônia, Rorai-ma,
Tocantins e parte do Maranhão). Com
nível de detalhamento inédito, o sistema
mostra que as áreas modificadas pelo ho-mem,
de 748.698 km2, já correspondem a
17% do total da região –, as pastagens res-pondendo
por 7,8%. Com 3.016.363 km2, a
floresta ocupa 61,07% da área total.
“Essa é uma ferramenta poderosa para
que se conheça um pouco mais dessa re-gião
e para orientar as políticas públicas”,
diz Ricardo Braga, gerente de Recursos
Naturais do IBGE, responsável pelo ban-co
de dados. Segundo Braga, a escala de
1:250.000 (1 cm no mapa corresponde a
2,5 km de território) permite uma aborda-gem
com baixo nível de generalização.
Os dados começaram a ser coletados na
década de 70 e foram revisados e atualiza-
Marta Salomon – Publicado no jornal Folha de S. Paulo (02/6/2008) e pelo
portal EcoDebate em 03/5/2008).
Mosaico das imagens MODIS do mês de
Abril/2008 usadas no DETER, para visuali-zação
da cobertura de nuvens e áreas de aler-ta.
Foto: Inpe
retor de zoneamento territorial do Ministé-rio
do Meio Ambiente.
Apesar de não ser atualizado constante-mente,
o banco de dados permite acom-panhar
a evolução do desmatamento na
região e apontar a vegetação mais afeta-da
no processo. O sistema pode ser aces-sado
gratuitamente no site do IBGE (http:/
/www.ibge.gov.br). Os arquivos estão no
formato shape, que demanda programas
específicos para ser lido. ■
Fontes: Inpe, IBGE, Comunicação Social
e Agência Brasil.
Cidadania&MeioAmbiente 15
16. A MATA ATLÂNTICA
por Marcos Sá Corrêa
O novo Atlas dos Remanescen
16
tes Florestais da Mata Atlânti
ca deve estar enganado. Como
esses fragmentos poderiam estar reduzi-dos
a 7,26% de seu território original e con-tinuar
diminuindo rapidamente em Santa Ca-tarina,
na Bahia e em Minas Gerais se eles
crescem como nunca ao redor dos hotéis,
das pousadas e das agências de turismo,
que deram para enxergá-los em toda parte?
Desde o Descobrimento, quando o arvore-do
“tanto, tamanho e tão variado” do litoral
baiano não deixou Pero Vaz de Caminha en-xergar
a terra propriamente dita do novo
mundo português, o Brasil não tinha, como
tem agora, tanta mata atlântica para dar e
vender. Ao menos na internet.
Aí está o Google, que não deixa ninguém
mentir. Ponha-se na janela de busca as
palavras “mata atlântica” e “hotel”. E ele
devolve nada menos de 145 mil respos-tas.
Parece muito, mas, substituindo “ho-tel”
por um sinônimo mais bucólico, como
“pousada”, o Google duplica a oferta de
endereços com vista para o cenário pri-mordial
da natureza brasileira. Vêm mais
de 300 mil registros de hospedagem com
floresta tropical.
PARA TODOS OS GOSTOS
Perde-se a conta na internet dos estabele-cimentos
turísticos chamados Pousada
Mata Atlântica, da Bahia a Santa Catarina.
No Estado do Rio de Janeiro, há Pousada
Mata Atlântica para todos os gostos, na
serra fluminense e à beira-mar. Existe ainda
uma Pousada Mata Atlântica que fica a
poucos quilômetros de um hotel tipicamen-te
alpino de nome Chamonix, “um pedaço
da Europa a seu alcance!” E um “Espaço
Mata Atlântica” plantado numa rua que
liga duas favelas, dividindo dez mil metros
quadrados com a piscina, a sauna, o cam-po
de futebol, a churrasqueira e uma sala
de convenções para 2 mil pessoas.
E um hotel pleonástico, que se declara no
“meio de uma floresta de mata atlântica”.
Tem até chalé “situado no Bosque dos
Eucaliptos, um pequeno santuário de mata
atlântica”. O Bosque dos Eucaliptos deve
estar na floresta que, segundo o historia-dor
Cid Prado Valle, sempre cobriu o país
de norte a sul com uma “espessa camada
verde-escura”, na vastidão abstrata do ufa-nismo
brasileiro. Se for assim, a mata atlân-tica,
em si, pode sumir à vontade. Brotará
de suas cinzas com mais força a mata atlân-tica
imaginária, que tem sobre a original a
vantagem de caber em qualquer lugar.
Cabe, de sobra, nas menores encostas da
zona sul do Rio de Janeiro, onde mata
atlântica está virando ultimamente tudo o
que ainda não é favela. Ali viceja até nas
placas do Jardim Botânico, indicando, na
borda do arboreto, com manchas compac-tas
de verde-bandeira, as trilhas de uma
frondosa mata atlântica de jaqueiras asiá-ticas,
descendentes de mudas trazidas
para a colônia por portugueses nostálgi-cos
de outros trópicos.
Espremida atualmente nos últimos 97,5 mil
quilômetros quadrados, incluindo nesse
cálculo retalhos de 100 hectares, peque-nos
demais para ter futuro, a mata atlânti-ca
está entrando na moda tarde demais
para salvar a si mesma. Sua popularidade
inspira na hotelaria nacional as mais deli-rantes
homenagens póstumas.
Segundo o historiador Warren Dean, de-veria
servir pelo menos para ensinar os
brasileiros como se pode perder também
a Amazônia. Mas não serve nem para lem-brar
ao presidente Lula que, como os pa-íses
ricos, o Brasil tem uma longa histó-ria
de desmatamento. ■
Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor
do site O Eco (www.oeco.com.br).
Artigo originalmente publicado pelo
O Estado de S.Paulo, 04/06/2008,
e no Portal EcoDebate em 05/06/2008.
VIROU SOUVENIR
MATA ATLÂNTICA
DESMATAMENTO PONTUAL
A Mata Atlântica está preservada em
234.106 polígonos, dos quais 25 mil são
menores do que 5 hectares. O bioma
abrange 61% dos municípios brasileiros,
onde vivem 120 milhões de pessoas, de
acordo com dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE).
Embora o ritmo de desmatamento deste
bioma tenha diminuído em 69%, segun-do
estudo da ONG SOS Mata Atlânti-ca,
que comparou dados do Inpe para
os períodos de 1995 a 2000 e de 2000
a 2005, os remanescentes 7,26% da co-bertura
florestal original continuam a so-frer
depredação.
A pesquisa divulgada neste 27 de maio
avaliou 13 estados. Abaixo, os campe-ões
do desmatamento (em hectare):
■ Santa Catarina – 45.530 ha (au-mento
de 7% no nível de desmate).
■ Goiás – 4 mil ha (crescimento de 20%
no nível de desmate).
■ Minas Gerais – 41.349 ha (dimi-nuição
de 66% no nível de desmate).
■ Bahia – 36.040 ha.
Outra ameaça apontada pelo estudo é
a fragmentação do bioma. Para o coor-denador
do estudo Flávio Ponzoni, do
Inpe, o fato “pode provocar o colapso
da biodiversidade, pois quanto mais frag-mentada
a paisagem, maiores as dificul-dade
de sobrevivência das espécies”.
Fonte: Agência Brasil
foto: Pete Harvey
C R I S E A M B I E N T A L
17. Cidadania&MeioAmbiente 17
É POSSÍVEL
TRANSFORMAR
MINÉRIO
EM UNIÃO?
S I M , É P O S S Í V E L .
www.vale.com
A Vale é uma mineradora que está presente nos cinco continentes e que transforma recursos minerais em elementos
essenciais para o nosso dia-a-dia. A Vale tem forte compromisso com as comunidades onde atua, respeita
a diversidade cultural, cria parcerias e implementa iniciativas sociais que contribuem para o desenvolvimento de
todos, pois sabe que compromisso, respeito e boas iniciativas são fundamentais para uniões estáveis e duradouras.
18. 18
SAÚDE PÚBLICA
E MUDANÇAS CLIMÁTICAS
Informe Ensp/ Agência Fiocruz de Notícias
EM 2008, O DIA MUNDIAL DA
SAÚDE APONTOU PARA A NECES-SIDADE
DE PROTEGER A SAÚDE
DOS EFEITOS ADVERSOS DAS MU-DANÇAS
CLIMÁTICAS. O TEMA PÕE
A SAÚDE NO CENTRO DO DIÁLO-GO
GLOBAL SOBRE AS MUDANÇAS
CLIMÁTICAS. COMO A SAÚDE
PODE ATUAR NESSE CENÁRIO?
Bruno Milanez – Entre os
vários cenários desenhados
como conseqüência do pro-cesso
de mudanças climáticas
são esperadas alterações no
padrão das chuvas e aumen-to
da incidência de eventos
extremos, como inundações,
furacões e secas. Porém, ain-da
existem muitas incertezas
sobre o que realmente pode-rá
vir a acontecer, particular-mente
em relação à extensão
e à velocidade dessas trans-formações.
Certamente, a área
das políticas públicas (inclusive políticas em saúde) precisa se
preparar para atuar em um ambiente mais dinâmico, no qual os
padrões serão menos estáveis.
No caso específico das ameaças à saúde, nos locais onde ocorrer
intensificação das chuvas e das enchentes poderá haver maior inci-dência
de doenças de veiculação hídrica. Se esse processo for acom-panhado
de aumento de temperatura, deverá haver também cresci-mento
de casos de doenças como malária e dengue. Entretanto, as
mudanças climáticas não significam apenas mais chuva e calor; em
alguns locais poderá ocorrer redução de quantidade de chuva, afe-
J U S T I Ç A C L I M Á T I C A
Os pesquisadores Marcelo Firpo e Bruno Milanez discorrem acerca da saúde
pública ante os efeitos das mudanças climáticas, do mercado de carbono e do
modelo de desenvolvimento econômico que gera e estimula desigualdades
entre países ricos e pobres.
tando a produção agrícola e a
qualidade dos alimentos. Re-giões
que dependem de águas
oriundas de áreas montanho-sas
também poderão ser gra-vemente
afetadas pelo degelo
decorrente do aquecimento.
Portanto, um aspecto central
para à saúde pública é que de-terminados
grupos populacio-nais
e regiões do planeta são
mais vulneráveis e precisam ser
vistos com mais atenção, tor-nando
o problema mais com-plexo.
Em outras palavras, dife-rentes
grupos sociais têm ca-pacidades
distintas de se pre-caverem
ou de remediarem tais
impactos. Esse é o cerne da dis-cussão
sobre vulnerabilidade
quando falamos de mudanças
climáticas. Populações que vi-vem
em ilhas, ou aquelas que
foto: Katakanadian
dependem da água dos Andes, serão mais atingidas se não houver
recursos e políticas públicas específicas. A área da saúde deve se
colocar em defesa dos grupos mais vulneráveis, pois estes serão os
primeiros a sofrerem as conseqüências dessas alterações. Na verdade,
a vulnerabilidade é um fato, mas não é enfrentada de forma eficiente.
Em boa parte, o destaque das mudanças globais passou a ocorrer na
mídia quando os países ricos descobriram que poderão ser bem afeta-dos;
assim, a situação tornou-se um risco para todos.
Marcelo Firpo – Em 2004, representantes de movimentos so-ciais
reuniram-se em Durban, na África do Sul, para discutirem a
19. É questão central
para as sociedades
e a saúde coletiva
afirmar o valor
ético da vida e lutar
contra a sua
mercantilização
e a da natureza
como um todo.
Marcelo Firpo
Cidadania&MeioAmbiente 19
“
”
questão do aquecimento global a partir da ótica das
organizações populares. Nesse encontro, consolidou-se
o conceito de justiça climática, que assume a visão
de que alguns grupos sociais e territórios sofrerão
maior impacto com as mudanças climáticas. Um exem-plo
desses grupos são as populações das pequenas
ilhas da Polinésia, como Tuvalu (um arquipélago cujo
ponto mais alto fica dez centímetros acima do nível
do mar) que negociou com a Nova Zelândia o direito
de migração de toda a sua população caso suas ilhas
fiquem inabitáveis (o que poderá acontecer em me-nos
de 50 anos).
NOS ÚLTIMOS 50 ANOS, A QUEIMA DE COMBUSTÍVEIS FÓS-SEIS
TEM LIBERADO DIÓXIDO DE CARBONO E OUTROS GASES
QUE AFETAM, DE FORMA IRREFUTÁVEL O CLIMA GLOBAL. A
CONCENTRAÇÃO ATMOSFÉRICA AUMENTOU EM MAIS DE 30%
DESDE O INÍCIO DO SÉCULO 20. O RESULTADO DISSO É O
AUMENTO DO RISCO DE DOENÇAS E DE MORTES, ALTERANDO
O PADRÃO DE DISSEMINAÇÃO DAS DOENÇAS INFECCIOSAS.
UMA DAS SOLUÇÕES APRESENTADAS PARA MELHORAR ESSE QUA-DRO
É O MERCADO DE CARBONO, UTILIZADO NA EUROPA E NOS EUA.
COMO ESTÁ ESSA DISCUSSÃO NO BRASIL?
Milanez – O mercado de carbono não chega a ser uma solução para os
impactos das mudanças climáticas, mas uma tentativa de ação paliativa.
O Brasil participa do mercado de carbono por meio da implantação dos
mecanismos de desenvolvimento limpo (MDLs), que permitem que pro-jetos
de baixo carbono em países em desenvolvimento gerem “créditos
de carbono” para serem comprados por países industrializados e usados
como compensação no cálculo de suas emissões, conforme estabeleci-do
pelo Protocolo de Quioto. Dessa forma, há uma transferência de
recursos financeiros de países industrializados para países em desen-volvimento,
que são direcionados para atividades específicas ligadas ao
setor energético, a processos industriais, à agricultura, à gestão de resí-duos
urbanos e ao reflorestamento.
Entretanto, diversas críticas vêm sendo feitas a esse sistema. Em
primeiro lugar, porque não reduz a iniqüidade entre países, permitin-do
que os mais ricos e industrializados continuem a manter seu mo-delo
de desenvolvimento, intensivo em energia (não-renovável) e
recursos naturais à custa da degradação socioambiental dos países
do Sul e, dessa forma, diminuem a pressão por mudanças culturais e
tecnológicas mais profundas. Outro problema refere-se às práticas
de seqüestro de carbono por florestamento e reflorestamento, já que
a quantidade de créditos computados não considera, por exemplo,
os possíveis ganhos ou perdas em biodiversidade ao se optar por
monoculturas ou espécies nativas. Ou seja, florestas de eucalipto,
também chamadas criticamente de “desertos verdes”, podem valer
tanto quanto as florestas de verdade.
O Brasil tem posição de destaque no mercado de carbono, sen-do
o terceiro maior receptor de projetos de MDL. Entretanto, em
termos efetivos, a participação do país ainda é tímida. Até março
de 2008, o Brasil tinha sido responsável por apenas 6% da redu-ção
das emissões enquanto que China participou com 49% e a
Índia, com 23% das reduções. No Brasil, 63% dos projetos de
MDL ocorrem no setor energia, que responde por 48% da redu-ção
de emissões. Nesse setor, quase metade dos projetos diz
respeito à produção de energia por biomassa, aproximadamente
1/4 por hidrelétricas e 1/5 por pequenas centrais hidrelétricas.
Outros setores que vêm recebendo recursos de MDL são o de
captação e tratamento de gases gerados por aterros sanitários
(24% da redução) e o de suinocultura (6%).
Firpo – Os movimentos sociais apresentam uma série de críticas
à forma como os governos vêm lidando com as mudanças climáti-cas.
Na sua visão, o mercado de carbono apresenta-se como uma
iniciativa de transformar a atmosfera, por definição um bem co-mum,
em uma mercadoria que pode ser negociada como outra
qualquer. Seguindo essa linha de raciocínio, o mercado de carbo-no
legitima o “direito de poluir”, uma vez que empresas ou países
adquirem o direito de manter atividades de alto impacto, desde
que paguem por isso. Como posto por um economista do gover-no
da Austrália em 2001, é mais “eficiente” evacuar as populações
das pequenas ilhas do que exigir que as indústrias australianas
reduzam sua emissão de carbono. Portanto, uma questão de fun-do
central às sociedades e à saúde coletiva é afirmar o valor ético
da vida e lutar contra a sua mercantilização e da natureza como um
todo, revertendo os níveis insustentáveis e indignos que já acon-tecem
em várias áreas, inclusive nas biotecnologias.
O AUMENTO DO NÍVEL DO MAR JÁ NÃO É AMEAÇA, POIS TEM DESALOJADO
POPULAÇÕES RIBEIRINHAS. MAIS DA METADE DA POPULAÇÃO MUNDIAL VIVE A
MENOS DE 60 QUILÔMETROS DO LITORAL. AS INUNDAÇÕES AUMENTAM O
RISCO DE INFECÇÕES CAUSADAS PELA ÁGUA CONTAMINADA. O BRASIL É UM
DOS PAÍSES AFETADOS POR CONSTANTES ENCHENTES. COMO A SAÚDE PÚBLICA
E A ENSP (ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA SERGIO AROUCA), ESPECI-ALMENTE,
PODEM AJUDAR NA PREVENÇÃO E NA BUSCA DE ALTERNATIVAS?
Milanez – As mudanças climáticas vão modificar padrões de cli-ma
e de chuvas. Nesse sentido, as enchentes vão aumentar de
intensidade em algumas regiões, independentemente da proximida-de
com o litoral e do aumento do nível do mar. Atualmente, já vemos
grande quantidade de pessoas sofrendo com enchentes e inunda-ções,
principalmente entre os grupos mais vulneráveis.
As enchentes são causadas por fenômenos naturais, mas seus
impactos são intensificados por ações antrópicas, relacionadas ao
20. 20
O mercado
de carbono não
chega a ser uma
solução para
os impactos
das mudanças
climáticas, mas
uma tentativa de
ação paliativa.
Bruno Milanez
Marcelo Firpo – Pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Tra-balhador
e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp)
da Fiocruz.
Bruno Milanez – Doutor em Política ambiental pela Lincoln University,
atualmente atua na Ensp como bolsista.
Fonte: Informe Ensp/ Agência Fiocruz de Notícias –
www.ensp.fiocruz.br/informe Publicado no portal EcoDebate em 07/5/08
Fotos dos entrevistados: Virginia Damas – CCI/Ensp/Fiocruz
“
”
modelo de desenvolvimento e às iniqüidades que marcam a vulne-rabilidade
de territórios e populações. No campo, há problemas
com o desmatamento de matas ciliares, ou pelo uso inadequado do
solo, o que aumenta a erosão e contribui para o assoreamento dos
rios, podendo impactar cidades. Nas áreas urbanas, a ocupação
inadequada do solo e a precariedade (ou inexistência) de sistemas
de macro e de micro drenagem são fatores que ampliam os impactos
negativos das chuvas intensas. Por exemplo, a Fiocruz (Fundação
Oswaldo Cruz) ocupa uma área de mangue que possui maior pre-disposição
a inundações, como já é conhecido de muitos morado-res
do bairro de Manguinhos (Rio de Janeiro, RJ).
Considerando que parte significativa das enchentes é resultado de
problemas de infra-estrutura urbana, a margem de manobra da saúde
pública é limitada e seu papel fundamental concentra-se na promo-ção
da saúde e no estímulo às políticas intersetoriais, combinando
ações locais e globais. Em primeiro lugar, podemos trabalhar junto à
população, alertando-a sobre pequenas ações que busquem dimi-nuir
a pressão sobre os sistemas de drenagem, como a disposição
adequada do lixo doméstico. Posterirmente, é preciso orientar sobre
como agir em casos de enchentes, seja no momento da inundação
para evitar acidentes, seja nos dias posteriores para evitar a contami-nação
por doenças de veiculação hídrica.
Não menos importante, existe a possibilidade de o campo de promoção
da saúde assumir a liderança do questionamento sobre a precariedade
do saneamento ambiental no país e liderar a pressão por melhorias na
infra-estrutura urbana, como um requisito à garantia da saúde da popu-lação.
Além disso, a Ensp certamente assumirá um papel importante
nas ações já iniciadas pelo governo brasileiro, capitaneadas pelo Mi-nistério
da Saúde, no sentido de aprofundar o papel do setor no en-frentamento
desse problema.
COMO A DISCUSSÃO SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS SE DÁ NO ÂMBITO
DO MOVIMENTO DE JUSTIÇA AMBIENTAL, DO QUAL VOCÊ É UM DOS PAR-TICIPANTES
E COORDENADOR DE PROJETO NA ENSP?
Firpo – No âmbito do Brasil, o movimento por justiça ambiental vem
alertando que a discussão sobre aquecimento global está
sendo usada como justificativa para a manutenção de di-nâmicas
injustas, dos pontos de vista social e ambiental.
Em nosso país, a “preocupação” com as mudanças climá-ticas
é usada como justificativa para a ampliação de mo-noculturas
em grandes áreas, seja para produzir celulose
ou substituir o carvão mineral, como no caso do eucalip-to,
seja para produzir agrocombustíveis, como a soja ou a
cana. A expansão desse modelo de negócio é, então, acom-panhada
pela intensificação da degradação de ecossiste-mas,
da concentração rural, do uso de agrotóxicos e, em
alguns casos, de condições degradantes de trabalho. Além
disso, ela cria situações altamente contraditórias, como
foi o caso da valorização da terra no Centro-oeste, que
empurrou o gado para o Norte, aumentando a pressão
sobre áreas de floresta nativa. Uma das ações da Rede
Alerta contra o Deserto Verde, em conjunto com à Rede
Brasileira de Justiça Ambiental, tem sido denunciar a ten-tativa
perversa de transformar monoculturas de árvores
em “florestas” que seqüestram carbono. Em verdade, sua
expansão afeta diversas populações indígenas e rurais.
Outra discussão importante dentro do movimento de justiça am-biental
é a competição entre o uso energético e alimentar dos
produtos agrícolas. Por exemplo, em 2007, o aumento da demanda
por milho nos Estados Unidos, para a produção de etanol levou à
elevação em mais de 10% da tradicional tortilha no México, pro-duto
essencial á alimentação popular. Fenômeno semelhante em
escala global ocorreu neste ano, quando o Programa de Alimen-tos
da ONU anunciou um aumento geral dos preços dos alimen-tos
no mercado internacional. Segundo o órgão, a produção de
agrocombustíveis era um dos fatores por trás dessa elevação de
preços. Mesmo quando os produtos não são desviados da mesa
das pessoas para os tanques de combustível dos carros, práticas
agrícolas para a produção de energia passam a competir por insu-mos
(terra, agrotóxicos, adubo e financiamento) com os produtos
alimentares. O resultado direto disso, ao menos no curto prazo, é
um aumento geral dos preços dos alimentos.
Esse debate diz respeito não somente às mudanças climáticas
globais, como também ao modelo de desenvolvimento que vem
sendo adotado pelo Brasil e por boa parte do mundo num cenário
de globalização injusta e insustentável. Esse modelo está basea-do
na perpetuação da divisão do trabalho entre países ricos e os
demais, que são forçados a pensar no desenvolvimento a partir
da produção de commodities agrícolas e metálicas (aço e alumí-nio),
com um metabolismo social ambientalmente insustentável e
socialmente injusto. O desafio é encontrarmos outra forma de
globalização, mais solidária, justa e sustentável. ■
22. O limiar de perigo
do dióxido de carbono
(CO2) estaria fixado
num nível muito
elevado, conforme
indicam novos estudos
de climatologistas.
Para os seus autores,
o nível tolerável
deveria ser de
350 ppm e não 550.
Se assim fosse,
já teria sido atingido
em 1990, o que
nos colocaria numa
situação crítica. ?“Se o CO2 for mantido durante um longo
CO 2
CO2: O VILÃO DO CLIMA
Como avaliar o limite a não ser ultrapassa-do?
22
Para evitar uma “interferência humana
perigosa” no sistema climático, o limiar de
dióxido de carbono (CO2) atmosférico é
geralmente fixado em 550 partes por mi-lhão
(ppm). Esse é, por exemplo, o objeti-vo
– ambicioso – fixado pela União Euro-péia.
Para James Hansen, um dos pesqui-sadores
mais influentes da comunidade
dos climatologistas, tal limiar foi estimado
com muito, muitíssimo, otimismo.
Em trabalhos disponibilizados na Inter-net,
em 7 de abril último, no servidor
ArXiv, o diretor do Goddard Institute for
Space Studies, da Nasa, e seus co-auto-res
avaliam o limiar de perigo em torno de
350 ppm. Ora, esse nível foi atingido em
1990. Ele situa-se hoje em 385. E aumenta
à razão de uma a duas unidades por ano.
A ultrapassagem do limiar de 350 ppm não
é, evidentemente, de extremo perigo. Se-gundo
os autores, ele o é em longo prazo.
período num nível superior a este limite,
há um risco de nos situar numa trajetória
que leva a uma desregulação climática pe-rigosa
e irreversível”, descreve a climato-logista
Valérie Masson-Delmotte (Comis-sariado
para a Energia Atômica, CEA), co-autora
desses trabalhos. “É possível re-tornar
a uma taxa de 350 ppm”, assegura
Hansen. “Faz-se necessária uma morató-ria
sobre as centrais nucleares movidas a
carvão e, em seguida, suprimir progressi-vamente
todos os usos de carvão até
2020-2030. Também se faz necessário re-ver
nossas práticas agrícolas e florestais
de maneira a seqüestrar carbono”.
QUAL O LIMIAR LIMITE DE CO2?
Para chegar a essas conclusões, os ci-entistas
analisaram as séries de dados
que refazem as grandes evoluções cli-máticas
do planeta em mais de 50 milhões
de anos. Para determinar um limiar limite,
“nós examinamos a velocidade do des-locamento
dos isotermos, a retração dos
glaciares – que são muito importantes
para a alimentação na água –, a veloci-dade
da elevação do nível dos mares, a
desestabilização das calotas polares e a
reação dos recifes de corais”, precisa
Valérie Masson-Delmotte.
Os pesquisadores também recalcularam a
“sensibilidade do clima” ao gás carbôni-co.
Essa se traduz pelo aquecimento mé-dio
que provocará o dobro de CO2 em rela-ção
ao seu nível pré-industrial (entre 270 e
280 ppm). Os modelos utilizados pelo Gru-po
Intergovernamental de Peritos sobre a
Evolução do Clima (GIEC) situam-na em
torno de 3ºC. Mas esses cálculos não le-vam
em conta o que os climatologistas
chamam de “retroações lentas”.
Um exemplo de retroação lenta é a redu-ção
progressiva das calotas polares.
Quando o efeito estufa aumenta, maximiza
a temperatura: as calotas polares diminu-em.
A Terra perde, pois, progressivamen-te
uma parte dessa capacidade de refletir
Stéphane Foucart
foto:Phloodpants
G E S T Ã O A M B I E N T A L
A TERRA
JÁ ULTRAPASSOU
O LIMIAR DO PERIGO
23. Cordilheira Blanca
foto: Señor Hans
AQUECIMENTO GLOBAL DERRETE GELEIRA BROGGI
Cidadania&MeioAmbiente 23
os raios do sol, e ela absorve mais ener-gia
luminosa. As temperaturas sobem mais
rapidamente, e isso acelera a redução das
calotas polares etc.
“Ao levar em conta esse tipo de retroa-ções,
a sensibilidade climática não é mais
de 3ºC, como nos modelos utilizados pelo
GIEC: ela é, na verdade, de 6 ºC”, diz
Hansen. “Mas a questão de saber quan-to
tempo essas retroações levarão para
entrar em ação permanece aberta”. Para
ver esses “círculos viciosos” colocarem-se
em ação e embalarem a máquina climá-tica,
será preciso esperar até o fim deste
século? Ou o fim do próximo?
A INCERTEZA
DOS MODELOS DE PREVISÃO
As incertezas dos modelos são grandes.
Assim, recentes análises sedimentares
publicadas por uma equipe alemã mostra-ram
que uma grande calota polar antárti-ca
(estimada em torno de 60% da atual
calota) sobreviveu, ainda que brevemen-te,
ao longo do cretáceo, a um período
muito quente em que a temperatura do
oceano tropical era mais de 10 ºC superior
à temperatura atual.
James Hansen, 67 anos, gosta de con-trovérsias.
Ele é o primeiro cientista a
ter chamado a atenção, em 1988, dos
meios de comunicação e dos políticos
para a questão do clima. Muito compro-metido,
ele lançou em 2007 uma campa-nha
para solicitar aos governos da Ale-manha
e da Grã-Bretanha a interrupção
de todos os programas de construção
de usinas a carvão.
Para além dessas questões, seus traba-lhos
abrem uma discussão profunda sem
relação com a ciência ou com a política:
até quando os homens do século XXI de-vem
buscar prever as conseqüências de
suas ações? Evocar o futuro do planeta
bem depois de 2100, como o faz Hansen e
seus co-autores, é imaginar o que o cli-matologista
Stephen Pacala chamou de
“os monstros atrás da porta”. ■
Stéphane Foucart - jornalista francês,
encarregado da cobertura de ciência do
jornal “Le Monde”. Publicado pelo “Le
Monde” em11/04/2008, (com tradução do
Cepat); pelo “IHU On-line” (10/05/2008) e
pelo “EcoDebate” (12/05/2008)
Em 2005, o aquecimento global foi o responsável pelo desaparecimento da
geleira Broggi, situada na Cordilheira Blanca, segundo Marco Zapata, diretor
da Unidade de Glaciologia do Instituto Nacional de Recursos Naturais (Inrena)
do Peru. A leste da cidade de Yungay, na província de Huaraz, a aproximada-mente
400 quilômetros ao nordeste de Lima, a geleira Broggi apresentava uma
superfície superior a 1,8 km2 em 1995.
Além da Broggi, Zapata informa que a geleira Pastoruri também está retrocedendo
rapidamente e já não é considerada um nevado (montanha com neves permanen-tes),
mas uma simples cobertura de gelo devido à perda de 700 km2 de sua
superfície. “O que era apenas uma massa única de gelo dividiu-se em duas, num
processo contínuo de retrocesso e de diminuição da geleira”, informa o cientista.
A Cordilheira Blanca – cadeia montanhosa coberta de gelo que atravessa o
centro do Peru – tem hoje apenas 535 km2. Ou seja, já sofreu uma diminuição de
25% em relação à massa de gelo que apresentava em 1970.
O cientista lembrou que entre 1948 e 1977, a média de retrocesso anual das
geleiras na cordilheira era de entre oito e nove metros por ano; contudo, a partir
de 1977 o retrocesso aumentou para cerca de 20 metros/ano.
“Há 30 anos começou o retrocesso acelerado das geleiras. Evento indubitavelmente
conseqüência do aumento de temperatura ambiente global. São muitos os fatores que
geram o problema, mas todos são conseqüência da mudança climática”, declarou.
Infelizmente, informa Zapata, não há medidas ou técnicas para a recuperação
das geleiras. A única providência para salvar o que ainda resta é a adoção de
ações urgentes que permitam reduzir os fatores geradores do aumento da tempe-ratura
global via mudança climática. E isso exige o comprometimento e esforço
de todos os países do mundo. Fonte: Agência EFE
O ÁRTICO TAMBÉM DERRETE
A área congelada do Oceano Ártico vem encolhendo e está cada vez mais vulnerá-vel
aos raios do sol no verão, segundo estudo publicado no Geophysical Research
Letters pelos pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas (NCAR),
dos EUA e da Universidade Estadual de Colorado.
A perda de gelo no Ártico em 2007 bateu o recorde dos tempos modernos, com a
extensão gelada encolheu para um mínimo de 4,1 milhões km2 em setembro. Essa
cobertura foi 43% menor que em 1979, quando começaram as medições confiáveis
por satélite. “Em um mundo mais quente, o gelo mais fino sobre o mar torna-se cada
vez mais sensível às variações climáticas e das nuvens de um ano para o outro. Um
único verão mais ensolarado pode, agora, ter um impacto dramático, sentencia a
pesquisadora Jennifer Kay, do NCAR. Fonte: Geophysical Research Letters
24. RESERVATÓRIO ESTRATÉGICO E DESCONHECIDO
fotos:João Zinclar
Também fundamental para o projeto de transposição,
a represa vem passando por situações volumétricas críticas.
O Alto São Francisco é o principal
24
responsável pela formação das
enchentes no rio. Esse fato é ex-plicado
pelas características edáficas e
pluviométricas da região (solos sedimen-tares
e regularidade nas precipitações plu-viométricas),
aspectos esses contrasta-dos
com a vasta área de clima semi-árido
no restante da bacia – principalmente em
boa parte do Médio e em todo o Sub-mé-dio
– na qual a geologia é cristalina. Esse
ocasiona poucas chuvas, mal distribuí-das
no tempo e no espaço.
O período chuvoso do Alto São Francis-co
ocorre entre os meses de novembro e
abril, intervalo que não costuma coincidir
com a fase das águas das outras regiões,
principalmente as de clima semi-árido,
onde estão localizadas as usinas da Com-panhia
Hidro Elétrica do São Francisco
(Chesf). Esse fato resultava, até há pou-co
tempo, em deficiências volumétricas
V E L H O C H I C O
SOBRADINHO
por João Suassuna
Sem essa obra
seria muito
difícil
equacionar
os problemas
de geração
de energia
elétrica no
Nordeste.
significativas, quando da ocorrência de
secas prolongadas, com prejuízo para o
setor elétrico.
Em decorrência desse fato, a Chesf foi obri-gada
a construir a Represa de Sobradinho,
no Médio São Francisco, com capacidade
de 34 bilhões de metros cúbicos – o equi-valente
a 14 vezes o volume da Baía da
Guanabara, no Rio de Janeiro. O objetivo
foi acumular as águas provenientes de sua
região alta para, em seguida, assegurar, em
patamares satisfatórios, o funcionamento
do sistema gerador de energia sob sua res-ponsabilidade.
BARRAGEM:
VITAL À GERAÇÃO DE ENERGIA
A idéia era fazer com que o volume acumula-do
nessa represa fosse sendo liberado aos
poucos, de forma equilibrada. Assim, regula-rizava-
se a vazão do Rio São Francisco e ga-rantindo
a geração de energia no complexo
de Paulo Afonso e em Xingó, hidrelétricas
localizadas na parte submédia da bacia.
A medida proporcionou uma vazão regula-rizada
de cerca de 2.060 m³/s no trecho en-tre
Sobradinho e o delta, principalmente de
maio a outubro. Nesse período, o rio cos-tuma
apresentar vazões reduzidas, conse-qüência
direta de uma época com chuvas
irregulares e de baixa contribuição volumé-trica
de seus tributários. Atualmente a va-zão
regularizada na foz é de 1.850 m³/s.
Não fosse a construção dessa represa, se-ria
muito difícil o equacionamento dos pro-blemas
de geração de energia no Nordeste.
Para se ter uma idéia, em outubro de 1955 –
ano considerado seco –, o São Francisco
registrou sua menor vazão: 595 m³/s, em
Juazeiro/Petrolina. Por outro lado, registra-ram-
se enchentes monumentais, como a
ocorrida em 1979, atingindo uma vazão de
18 mil m³/s, causando o vertimento de So-
25. Cidadania&MeioAmbiente bradinho, fato que assustou boa parte da
população local.
O REGIME HIDROLÓGICO
DE SOBRADINHO
Ao se analisar o regime hidrológico da re-presa
de Sobradinho desde a época de sua
inauguração, principalmente no tocante à
sua acumulação volumétrica (volumes
máximos e mínimos anuais), pode-se cons-tatar
que, no período compreendido entre
1978 e 1986, os anos foram hidrologica-mente
satisfatórios em termos de precipi-tações.
Houve acumulações significativas
e, em várias delas, a represa veio a sangrar.
Igual característica foi observada nos pe-ríodos
subseqüentes de 1990 a 1994; de
1997 a 1998 e de 2004 a 2007.
Períodos críticos de secas também são re-correntes
em Sobradinho. Eles ocorreram
de forma marcante entre 1987 e 1989, entre
1995 e 1996 e entre 1999 e 2003. Nesses
casos, a represa acumulou apenas metade
de sua capacidade útil. Em 2001, atingiu
apenas 5% desse limite. Este foi conside-rado
o ano mais seco da história do São
Francisco, tendo resultado nos raciona-mentos
e na pior crise energética vivenci-ada
até então. Tudo indica que 2008, da-das
as características climáticas em curso
(choveu abaixo da média na região), tam-bém
será seco.
Ao se analisar globalmente o comporta-mento
volumétrico de Sobradinho, con-siderando-
se principalmente os períodos
favoráveis e os desfavoráveis da pluvio-metria,
chega-se à conclusão de que a re-presa
enche em 40% dos casos. Dessa
forma, em 10 anos ela atinge a cota de
sangramento em apenas quatro.
OS SINAIS DE ALERTA
No momento atual, o que preocupa é
que no mês de janeiro a represa de So-bradinho
estava com apenas 15% de sua
capacidade útil, motivada pelo uso vo-lumétrico
na geração e na distribuição
de energia do sistema da Chesf para ou-tras
regiões do país. A partir de feverei-ro,
período no qual a represa deveria
estar com sua afluência volumétrica em
estado crescente (volumes que chegam
à represa), o que se observou foi um
quadro inverso do esperado: sua aflu-ência
mostrou-se em estado decrescen-te,
o que poderia agravar ainda mais o
quadro crítico apresentado.
RIO SÃO FRANCISCO
Nascente: Serra da Canastra em Minas Gerais, estado responsável pela
formação de cerca de 70% de suas águas.
Extensão: 2,8 mil km (entre seu nascedouro e sua foz, no pontal do Peba/AL).
Vazão média: 2,85 mil m³/s.
Característica: períodos de abundância de chuvas entremeados por períodos
de secas sucessivas.
Bacia hidrográfica: área aproximada de 640 mil km², subdividida em Alto
São Francisco (Serra da Canastra a Pirapora), Médio (Pirapora a Remanso),
Submédio (Remanso a Paulo Afonso) e Baixo (Paulo Afonso ao Oceano Atlântico).
População residente: estimada em 14 milhões de pessoas.
No portal da Chesf é possível observar
esse fato com muita clareza. No dia 22 de
fevereiro, por exemplo, a afluência da re-presa
era de 3.170 m³/s. No dia 27 havia
caído para 2.160 m³/s, numa diminuição de
cerca de 200 m³/s a cada dia. O fato sugeriu
uma falta de entendimento entre os res-ponsáveis
pela represa de Três Marias
(Furnas) e os de Sobradinho (Chesf). Por
razões que desconhecemos, os volumes
das intensas precipitações ocorridas no
Sul de Minas, naquele período, foram reti-dos
em Três Marias. Dessa forma, a libera-ção
para Sobradinho, em quantidades ade-quadas
ao atendimento dos múltiplos
usos, não foi cumprida satisfatoriamente.
A situação criada acendeu uma luz de aler-ta
na Chesf, que agiu com rapidez para mi-nimizar
as possibilidades de exaustão que
poderiam existir em Sobradinho, caso nada
fosse feito a respeito. A companhia conse-guiu
autorização da Agência Nacional das
Águas (ANA) para liberar da represa cer-ca
1,1 mil m³/s para todo o Submédio e ao
Baixo São Francisco. Esse volume deflu-ente
(que sai da represa) possibilitou a re-cuperação
volumétrica de Sobradinho
(hoje, a represa apresenta cerca de 72% de
seu volume preenchido), por tratar-se de
um valor menor do que aquele registrado
em sua afluência, estimado em cerca de 2,6
mil m³/s. No entanto, a multiplicidade de
uso das águas do São Francisco com es-ses
baixos volumes defluentes tem ocasi-onado
grandes transtornos à população
residente na bacia, principalmente àquela
que sobrevive do rio.
PISCICULTURA E IRRIGAÇÃO
PREJUDICADAS
No dia 26 de janeiro, por exemplo, um ci-dadão
em Propriá (SE) havia conseguido
atravessar o Rio São Francisco numa
moto. A piscicultura é outra atividade que
tem sido seriamente afetada. A retenção
de sedimentos no interior das represas
geradoras de energia tem interferido so-bremaneira
na turbidez de suas águas,
confundindo a fisiologia dos peixes e abor-tando
suas desovas. A redução da tem-peratura
das águas é outro fator preocu-pante,
principalmente nos locais mais pro-fundos
das represas; e isso tem trazido
sérios transtornos à reprodução e
aodesenvolvimento de algumas espéci-es.
A falta de escadas ou de canais, que
possibilitem a subida do peixe do rio para
o interior das represas, na época da pira-cema,
igualmente tem causado o desapa-recimento
do pescado no São Francisco.
O caso do surubim é um exemplo disso.
A geração de energia elétrica pelo sis-tema
da Chesf e sua transmissão para
outras localidades do país (o sistema
Cidadania&MeioAmbiente 25