1. Entrevista LIA PICCI RAFAELA PIETRA
Do Jornal ao Carnaval
A jornalista que virou carnavalesca por amor, defende a Industria do Carnaval como
uma maneira de impulsionar a profissionalização no setor carnavalesco.
O
carnaval, a maior expressão da
cultira e da felicidade brasileiras
é visto com paixão por Lia Picci.
A jornalista que deixou a profissão
para fazer aquilo que gosta, conta como
se afastou do jornalismo policial em
busca de novos desafios, aventurando-
-se no mundo da arte do povo, da cultura
e da alegria. Motivada pela necessidade
de utilizar sempre sua criatividade, a
também artesã se viu disposta a revolu-
cionar o trabalho, desenvolveu formas
de facilitar a máquina carnavalesca e
ajudou a transformar a festa em trabalho
e vida para muitas comunidades paulis-
tanas. Defendendo a profissionalização
do carnaval, Lia Picci nos fala sobre o
desenvolvimento do enredo, as difi-
culdades, as responsabilidades de uma
Agremiação Carnavalesca, o dinheiro e
a quantidade de pessoas envolvidas para
levar um bom carnaval para a avenida.
Nesta entrevista, poderemos conhecer
melhor este mundo, ouvindo as palavras
de alguém que defende o carnaval como
modo de vida.
Antes de se tornar carnavalesca, você
trabalhava com jornalismo. Como
você se envolveu com o carnaval? Eu
sempre quis trabalhar com uma área
cultural do jornalismo, e na época em
que eu trabalhei as opções eram de
jornalismo social, político ou policial.
Existia sim o lado cultural, que eu fiz
em criticas de cinema, teatro, literatu-
ra, mas que ao final das contas nunca
me satisfizeram.
Daí surgiu a idéia de trabalhar com
carnaval?Na verdade eu só optei. Fui
me envolver em alguma coisa mais
feliz, mais bonita, com um lado cultu-
ral mais alegre e mais saudável. Eu já
tinha um curso de artes plásticas, sou
artesã e trabalhei com isso anos, aliás, “O carnaval nunca
faço muito disso ainda hoje e recebi
um convite de uma escola de samba me decepcionou!”
para desenvolver um enredo e dese-
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2. Entrevista LIA PICCI
nhar os figurinos do carnaval de 1984.
“Na Escola de bingos beneficentes, shows de bandas
Foi na Escola de Samba Imperador
do Ipiranga que eu me apaixonei pelo
Samba Imperador, nacionais e até mesmo internacionais,
promovem almoços e apresentações
mundo do carnaval. institui a contratação diversas, sempre com o objetivo de
arrecadar fundos para garantir as
Você diz que optou por algo mais feliz,
isso significa que antes não era feliz
de pessoas da despesas durante o período pré carna-
valesco.
no jornalismo? Não, de modo algum.
Quando achei que tinha feito tudo o
comunidade como Falando em números, quanto uma esco-
la de samba pode contribuir para o mer-
que podia na área cultural eu parti
para a área policial e trabalhei nisso trabalhadores de cado de trabalho? Hoje, uma escola de
durante quase 5 anos. No decorrer samba como a Mocidade Alegre, uma
deste período, você vai tomando horário integral e de nossas grandes escolas de São Pau-
contato com o pior lado das pesso- lo, emprega em torno de 300 a 400
as, e isso foi me deixando mais fria, criei alguns cursos pessoas para entregar um carnaval,
fazendo com que as cenas se tornas- utilizando-se de aderecistas, alegoris-
sem quase naturais, perdendo o real para facilitar o nosso tas, marceneiros, pintores, costureiras
significado. É a isso que me refiro. entre tantos outros. Acho que são bons
próprio trabalho. E números, não?
E por isso saiu do jornalismo policial?
Também. Eu tinha filhos, pequenos,
não podia mais lidar com aquilo, mes-
deu certo. ” E como se desenvolve um carnaval?
Bom, enquanto jornalista que eu ainda
mo sem querer me afastar totalmente sou, sem dúvida, eu sempre busco a
do contato com o povo, da cultura, e com a qualidade do trabalho executa- informação e a história das coisas, e
nem da notícia. As coisas começaram do ou assina-se um contrato estipulan- como carnavalesca eu analiso os fatos,
a me fazer mal, e ameaçavam não do um valor único, pago de uma só as características históricas do mo-
só a minha saúde, como minha vida vez, ao término ou durante o período mento ou do personagem. Faço uma
também. de execução do carnaval. Normalmen- pesquisa aprofundada com relação a
te esse valor é suficiente para que o datas, locais, fatos pitorescos, tudo o
E como surgiu essa paixão pelo carna- profissional mantenha-se dignamente que seja interessante e importante no
val? Me apaixonei porque tudo me durante o ano. tema. A partir daí, com toda a infor-
exigia muita criatividade para a trans- mação reunida, eu começo a dividir
missão da informação cultural de boa Você diz que o carnaval além de alegria em fazes e vou criando, ou recriando
qualidade. As possibilidades de levar também leva cultura. Como? O car- os fatos através de figuras, desenhos,
a história e a própria cultura para uma naval transforma a informação em cores, contando a história de maneira
parte da população que muitas vezes algo bonito, em lazer. Faz com que visual. Daí é só juntar tudo e colocar
não tem acesso a isso me fascinava. A a história e a cultura façam parte da na avenida.
literatura é uma parte da cultura que o festa, daquele momento de descontra-
povo dificilmente acessa, ou por falta ção, fazendo com que o povo guarde Da maneira como você fala parece fácil.
de tempo ou por desinteresse mesmo. aquilo, leve na lembrança e transmita Não é tão simples, o carnaval na ave-
O carnaval possibilita o acesso a esse a outros. nida é uma história de anos, contada
tipo de informação mesmo que ele em 60 minutos e que leva em torno de
não tenha oportunidade de ir a um Pensando em valores, como uma 6 meses ou mais para ser construída.
museu, conhecer a vida de uma perso- Agremiação se mantém no resto do ano Envolve muitas pessoas, é um traba-
nalidade importante, etc. em que a verba não está disponível? lho árduo e difícil, mas extremamente
Depende da Agremiação. As gran- gratificante. O carnaval parece somen-
É possível então, encarar a profissão des escolas geralmente dispõem de te diversão, mas é também profissio-
de carnavalesco como modo de vida? É mais recursos, conseguidos através nalização em um mercado de trabalho
possível sustentar-se assim?Sim, sem de eventos contratados, patrocínio sempre em expansão. Os profissionais
dúvida. Um bom carnavalesco não de empresas privadas, apresentações utilizados na confecção do carnaval
trabalha apenas na época do carnaval. no exterior, shows e etc. As escolas vão desde engenheiros até os mais
Geralmente, cria-se um forte vínculo menores, tem mais dificuldades, na- simples empurradores das alegorias
entre a Agremiação e o carnavalesco, turalmente, mas numa escala menor
transformando-o num funcionário de acabam fazendo mais ou menos as A profissionalização do carnaval é algo
tempo integral. Dessa forma, estabe- mesmas coisas.Utilizam suas quadras que temos visto na mídia nos últimos
lece-se um salário mensal, compatível e barracões para promoverem festas, anos. Como você acha possível desen-
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3. volver isso? Acredito que seja neces-
“Muita gente acha Qual o papel que uma escola de samba
sário criar cursos que profissionalizem que o carnaval pode desempenhar na sociedade, além
as pessoas que trabalham no carnaval. do fator profissionalizante? O papel
Essas pessoas geralmente são de
baixíssima renda ou estão desempre-
mudou, que deixou mais importante que uma Agremiação
Carnavalesca pode e deve desem-
gadas e aproveitam a oportunidade
para aumentar o orçamento familiar.
de ser cultural para penhar na sociedade é o cultural. As
escolas de samba e blocos carnava-
Isso deveria se tornar uma profissão,
pois atrai muitas pessoas e elas se
ser empresarial. lescos tem o poder de levar a cultura
ao povo da maneira mais simples e
tornam indispensáveis, mais até que
os próprios carnavalescos, dentro das
Acham que isso agradável que existe, através do lazer.
No carnaval, aprendemos muito nos
agremiações. divertindo. Outro fator muito im-
descaracterizou o portante e que defendo muito são os
Isso significa carteira de trabalho as- projetos sociais que as Agremiações
sinada pelas Agremiações? A profis- carnaval. Eu não desenvolvem. Quando se trabalha
sionalização da mão de obra utilizada no carnaval, percebemos o poder
no carnaval abre um novo nicho de concordo. O carnaval que o povo unido tem. Uma maneira
trabalho que pode abrigar uma grande maravilhosa de utilizar esse poder é o
parte de famílias carentes, além de mudou sim, mas pra desenvolvimento de projetos sociais
desenvolver e promover a arte, a cria-
tividade e a cultura. Porque não? muito melhor. ” como acesso a médicos, dentistas,
palestras com profissionais gabarita-
dos para a população jovem, cursos,
Quanto a sua experiência no carnaval, oficinas de arte, tudo o que possa con-
o que as instituições podem fazer para carnaval. tribuir para o desenvolvimento social
contribuir com essa profissionalização? e cultural daquela counidade. Isso é
Quando eu entrei no carnaval, não A idéia de uma “Indústria do Carnaval” muito importante.
havia o habito de se contratar pessoas te agrada então? Muita gente acha que
especializadas para esse trabalho. o carnaval mudou, que deixou de ser Conhecemos as grandes agremiações,
Tudo era feito pela comunidade, nas cultural para ser empresarial. Acham mas como vivem os blocos carnavales-
horas vagas. Todos participavam. Isso que isso descaracterizou o carnaval. cos e as escolas de menor visibilidade?
criava grandes problemas. Logica- Eu não concordo. O carnaval mudou É mais fácil trabalhar com elas? As
mente que todos faziam com muito sim, mas pra muito melhor. O espetá- escolas menores e blocos carnavales-
carinho, mas mesmo assim as coisas culo hoje tem muito mais qualidade cos têm suas dificuldades, geralmente
não corriam como deviam, respeitan- visual, os artistas se dedicam a esse financeiras, mas por outro lado, essas
do prazos e outras imposições do tra- trabalho são pessoas da mais alta Agremiações são mais unidas, suas
balho. Na Escola de Samba Imperador competência, reconhecidos mundial- comunidades participam muito ativa-
do Ipiranga, eu institui a contratação mente. Claro que não devemos virar mente dentro delas pois não há apenas
de pessoas da comunidade como as costas para a tradição do carnaval, o objetivo de ganhar dinheiro traba-
trabalhadores de horário integral, com que é lindíssima por sinal. lhando para o carnaval. Não acho que
salário, alimentação, transporte, etc. seja mais fácil ou mais difícil traba-
Criei alguns cursos ministrados por Então não há motivos para afastarmos lhar com elas pois o trabalho é muito
mim e outros profissionais fora do a idéia de uma boa empresa carnava- parecido. Obviamente se ganha menos
período do carnaval para facilitar o lesca, funcionando realmente como dinheiro mas a compensação pessoal é
nosso próprio trabalho. E deu certo. uma indústria da arte? Veja, o carnaval muitas vezes maior. Convive-se mais
do RJ é o maior espetáculo da terra com a comunidade, faz-se amigos
Você acredita então que as Agremia- e atrai pessoas do mundo todo. O para a vida toda. Eu gosto muito
ções devem investir mais nisso? A carnaval de Parintins é a prova da e nunca me recusei a fazer o meu
escola de samba deve sim agir como competência artística do brasileiro, trabalho numa escola pequena mesmo
uma empresa criando oportunidades transformando a cultura indígena num que por vezes não tenha tido nenhuma
e auxiliando no desenvolvimento da espetáculo de beleza incomparável. remuneração. Ganhei muito mais que
sua própria comunidade. Hoje, nos Nós mesmos contamos com a ajuda dinheiro, ganhei pessoas maravilhosas
carnavais que faço, emprego durante de alguns desses profissionais de que fizeram uma enorme diferença na
pelo menos 6 meses muitas pessoas Parintins nos carnavais de São Paulo minha vida. Ganhei amigos que leva-
que todos os anos voltam como uma e Rio de Janeiro e aprendemos muito rei para sempre. Gente a quem ajudei
equipe. Isso é gratificante para mim com eles. Tudo é uma questão de se e que me ajudou muito. O carnaval
e extremamente vantajoso para o enxergar o lado bom e útil das coisas. nunca me decepcionou!
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