1) Thereza e Tom vivem em uma antiga casa de família em Guaratinguetá, que abrigou gerações de seus ancestrais.
2) Thereza nasceu em 1935 e desde criança gostava de ler Monteiro Lobato e sonhava em ser arqueóloga, cavando o quintal em busca de artefatos.
3) Sua mãe Maria Angélica se destacava das outras mulheres locais por usar roupas e acessórios mais refinados, em estilo francês como era comum onde estud
O estudo do controle motor nada mais é do que o estudo da natureza do movimen...
Thereza e Tom
1.
2. Thereza e Tom
Projeto experimental de caráter profissional apresentado às Faculdades Integradas Teresa D’Ávila como requisito
parcial para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, sob orientação do prof.
Francisco de Assis.
Revisão: João Batista Teixeira da Silva
Projeto Gráfico e Tratamento de imagens: Sebastião Assunção de Almeida Filho
Capa: Sebastião Assunção de Almeida Filho
sobre o desenho de Tom Maia
Impressão: Tachion Gráfica Digital
B273t Barreto, Anna Laura
Thereza e Tom / Anna Laura Barreto. – Lorena, 2011.
152p.
Projeto Experimental (Graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo) –
Faculdades Integradas Teresa D’Ávila, 2011.
Orientador: Francisco de Assis
1. Livro-reportagem. 2. Perfil Jornalístico. 3. História.
4. Vale do Paraíba. 5. Thereza e Tom Maia. I. Título
CDU-070
5. D edico este livro a um herói que viveu para ensinar
as mais bonitas lições de vida e para cercar de alegria todos os que o rodeavam:
meu avô materno, Sebastião Assunção de Almeida.
Infelizmente, Deus o levou para perto de si.
Mas sei que ele está ao meu lado nos momentos em que preciso e que chamo por sua luz.
Sempre o levo na memória, porque, assim, consigo ser uma pessoa melhor.
E, com felicidade, também compartilho espiritualmente a realização de um sonho.
Vô Tião, sua neta, agora, é jornalista!
A todos os aspirantes a jornalista, que vivem contidos no desejo de se tornar escritores:
acreditem, pois a vida é ainda melhor quando fazemos dela poesia.
6.
7. Agradecimentos
Aos meus pais, aos meus avós e ao meu irmão, com amor e muita gratidão.
Ao prof. Francisco de Assis, por me confiar este trabalho,
e me orientar com sua sabedoria e amizade. Sinto-me honrada por tê-lo em meu caminho.
A Thereza e Tom Maia, por existirem
e por compartilharem comigo as lembranças de uma vida.
8.
9. Sumário
Prefácio, 11
Prólogo, 13
Apresentação, 15
Nas paredes da memória, 17
Entre lembranças e risos, 33
As histórias por trás dos livros, 49
Mais produções, mais experiências, 70
Sobrinhos do santo, 93
A parceria de uma vida inteira, 111
Prêmios, honrarias e títulos recebidos por Thereza e Tom Maia, 133
Bibliografia de Thereza e Tom Maia, 141
Referências, 151
10.
11. Prefácio
Diego Amaro de Almeida
Foi uma grande honra ser convidado para prefaciar esta obra de uma jovem autora
que trata da trajetória desses dois companheiros de Instituto de Estudos Valeparaibanos
(IEV). Pessoalmente, estou envolvido pelo tema, tendo em vista que, muito antes do
meu ingresso no curso de História, fui cativado por suas obras (nunca vou me esquecer
daquela Paraty: encantos e malassombros).
Neste livro, podemos apreciar a história de Thereza e Tom Maia, célebres filhos
de Guaratinguetá. De uma forma prazerosa, o texto, tão bem elaborado por Anna Laura
Barreto, nos apresenta importantes momentos da vida e da obra desses dois grandes
escritores que tanto fizeram e fazem pela preservação da cultura, da memória e da história
da nossa região.
Uma história interessante, curiosa e divertida. Diversão que, aliás, é uma das
marcas do bom humor de Tom Maia – sempre presente nos encontros do IEV –, aspecto
devidamente retratado neste trabalho, por meio das histórias vividas por ele e por Thereza.
Aqui, o leitor poderá conhecer o trabalho desenvolvido pelos dois, sempre com
muito empenho e dedicação, junto de outros companheiros do IEV, como os professores
Thereza e Tom
José Luiz Pasin, Francisco Sodero Toledo, Nelson Pesciotta, entre outros grandes nomes,
sempre em busca da preservação do patrimônio histórico, cultural e ambiental. Um rico
exemplo que deve ser seguido por todos.
O livro de Anna Laura Barreto tem relevância para a história valeparaibana, que
carece de estudos sobre escritores e pesquisadores da região. É necessário que sejam 11
12. conhecidos feitos como os de Thereza e Tom, e, assim, as novas gerações sejam motivadas
a ingressar nessa luta em defesa da nossa região.
Nesta obra tão bem elaborada e agradável, conheceremos sua história. Veremos o
lado humano, a infância, a família, as decisões tomadas, as amizades, as aventuras, as lutas
vividas, enfim, o caminho percorrido por esse casal que faz tanto por nossa cultura.
Boa leitura!
Diego Amaro de Almeida é pesquisador e membro do IEV.
12
13. Prólogo
Uma obra de interesse histórico e sociológico
Nelson Pesciotta
Concluinte do curso de Jornalismo, das Faculdades Integradas Teresa D’Ávila
(Fatea), em Lorena, Anna Laura Barreto aventurou-se em superar as limitações de um TCC
(Trabalho de Conclusão de Curso) para produzir um estudo mais profundo, e escolheu a
memória de um casal de Guaratinguetá formado por Tom (José Carlos Ferreira) Maia e
Thereza Regina de Camargo Maia.
Louvo-lhe a escolha por duas razões: a primeira, por permitir, com a possível
publicação de seu trabalho, a perpetuação da memória de duas pessoas que muito
bem representam a sociedade e o ideário guaratinguetaense, e a segunda por produzir
um documento que certamente servirá de ponto de partida a tantos pesquisadores
que abraçaram a estrutura das instituições que, no estreito campo do mundo familiar,
rompem barreiras para a identificação do pensamento e da ação vigentes na sociedade
Thereza e Tom
que sobrevive às transformações morais, econômicas, religiosas, educacionais e políticas
do nosso tempo.
O jornalista, pela sua curiosidade em revelar o raro e o precioso, presta um
relevante serviço social, mostrando realidades e descobrindo valores humanos. Este
trabalho, assim, é essencialmente jornalístico. 13
14. Thereza e Tom, por sua importância na vida de Guaratinguetá e por sua projeção
não só no Vale do Paraíba, conhecidos que são em todo o Brasil, pelas suas obras,
merecem ser lembrados e louvados. O percurso que percorreram é o trajeto da nossa
história regional.
Nelson Pesciotta é presidente do IEV.
14
15. Apresentação
Eu tinha lá dois ou três diferentes temas em vista. Mas nada me satisfazia. Não conse-
guia decidir que rumo daria ao meu Trabalho de Conclusão de Curso. Só tinha em mente uma
certeza: queria ser orientada pelo professor Francisco de Assis.
Foi quando comecei a persegui-lo com meus dilemas, que parecem muito grandes aos
olhos de quem está na última etapa de se concluir um curso acadêmico. Francisco, que é de
pouca idade, mas de muito conhecimento, percebeu que minha vontade era mesmo escrever
um livro, mas com um conteúdo pelo qual eu me apaixonasse. Não tardou, então, para me su-
gerir que eu fizesse um livro-reportagem sobre a vida de Thereza e Tom Maia, os historiadores
“advogados” de Frei Galvão.
Interessei-me logo de cara, e corri para contar a ideia à minha mãe. Lembro-me do que
ela falou: “Faz isso, que Frei Galvão vai te ajudar!”
Batia quinze horas quando cheguei, em 26 de março de 2011, ao número quarenta e
oito, da estreita e histórica rua Frei Galvão, localizada discretamente no centro de Guaratingue-
tá, interior de São Paulo. Lá, há um antigo casarão de esquina, grande e com requinte colonial,
intimidante por fora e gracioso por dentro. Em sua famosa sala de visitas, conheci Thereza e
Tom.
Do papel de parede às almofadas das poltronas, tudo naquele lugar parece combinar
Thereza e Tom
perfeitamente. A impressão que se tem é a de que os objetos, eles próprios, conseguem contar
histórias. Histórias que encantam os que se aventuram pelos cômodos da casa. E quanto mais eu
adentrava em suas vidas, mais eu tinha certeza de que jamais iria esquecer aquelas sinestesias.
O casal, famoso em toda a região, parece viver em sintonia de gestos, de olhares e de
palavras. Thereza fala, Tom sorri. Tom fala, Thereza completa. E as lembranças tomam o am- 15
16. biente, tornando alerta todos os possíveis sentidos. A cumplicidade é tamanha que quase pode
ser tocada. Parece que não existem mais casais como Thereza e Tom.
Thereza é fina de comportamento, tem sorriso singelo, é simpática e “extremamente
pragmática”, segundo Tom. Ele, sempre a falar, é, para a mulher, “alegre e linguarudo”, e nun-
ca se cansa de relembrar momentos que não se findam.
Ela diz que se apaixonou por conta dessa alegria, porque gostava da conversa de Tom
e adorava ouvi-lo cantarolar acompanhado de seu violão. Ele, por seu turno, diz que foi “fis-
gado” pelo pragmatismo da mulher. Enfim, foram feitos um para o outro.
Tom é artista nato. Mas também é um ótimo contador de histórias. Thereza firmou-se
historiadora desde pequena, mostrando interesse por brincadeiras um tanto quanto peculiares.
Ambos sempre foram visionários, de muitos sonhos e de muitos amigos, muitos dos quais
foram ouvidos durante a produção deste livro-reportagem.
Desvendar as aventuras de Thereza e Tom é um exercício que vale a pena.
16
19. T hereza olha para os grandes janelões de sua
casa, e se lembra de quando costumava observar as pessoas passarem pela rua. Tom faz
o mesmo. O grande e redondo espelho, fixado no alto da parede e de frente para o sofá,
reflete o casal marcado pela história. Confusos e ansiosos, vão narrando tudo de que se
lembram, saudosos do passado e orgulhosos do presente.
A casa onde vivem possui até nome: “solar Rangel de Camargo” ou “solar dos
Camargo”. Foi erguida em 1866, pelo Capitão João Baptista Rangel, tetravô de Thereza.
É feita de taipa de pilão e pau a pique, e abrigou todas as gerações posteriores da família,
já estando no sexto estágio de descendência. Conceituado local histórico, sob seu teto
Thereza e Tom
foram acolhidos príncipes, princesas, políticos, escritores, cineastas, artistas e músicos de
várias partes do Brasil.
Os pais de Thereza, o famoso político e advogado João Baptista Rangel de Ca-
margo – a quem a cidade de Aparecida deve sua independência – e a paulistana Maria
Angélica de Barros Rangel de Camargo, foram morar no casarão assim que se uniram em 19
20. matrimônio, e ali permaneceram pelo resto de suas vidas. Viveram sempre rodeados de
amigos, vizinhos e estudiosos, que promoviam um movimento constante no solar.
Thereza Regina de Barros Camargo nasceu em Guaratinguetá, no dia 11 de abril
de 1935. Ainda menina, já tinha comportamentos que direcionariam seu futuro: gostava
de fazer bolinhos de terra, lia bastante e passava muito tempo sonhando com um mundo
encantado, inspirado nas histórias de Monteiro Lobato, a quem deve as peripécias de sua
infância.
— A minha formação é toda de Monteiro Lobato. Li todos os seus livros, do
começo ao fim. Só não gostei do Aritmética da Emília — conta Thereza, que também
sonhava em ser arqueóloga no Egito, e costumava cavar o quintal de casa, na busca por
cacos antigos.
Durante as tardes, ela ocupava seu tempo apurando os acontecimentos locais.
Apoiava os braços nos janelões, e passava horas vendo o movimento na rua. Ouvia as
conversas e os causos, reparava nas roupas das senhoras e das senhoritas, espiava os na-
moricos. Depois, ia contar para as tias, já que a mãe não costumava dar muita trela a essas
conversas.
Maria Angélica dedicava a maior parte de sua rotina às orações e à leitura. Não co-
zinhava nem limpava, apenas cuidava dos empregados. Era de poucas amizades, tal como
prezavam os modos franceses da época, nos quais havia sido criada. Aliás, até suas rezas
eram feitas no idioma originário da França, fazendo com que Thereza achasse que a mãe
pensava em francês. Antes do casamento, foi catequista no Colégio Des Oiseaux, onde
estudara, em São Paulo. O educandário da elite paulistana, pela própria origem percebida
Nas paredes da memória
em seu nome, utilizava a língua de Molière em tudo, dos livros sobre o país às orações.
Mas o que realmente diferenciava Angélica das outras mulheres eram suas roupas
e seus refinados modos. Usava meias, sapatos de salto e conjuntos finos, cheios de baba-
dos e de detalhes, o que não era costume na época. Chamava a atenção. Tanto ela quanto
o marido se destacavam pela elegância. O bom gosto deveria ser de família. Afinal, ela
era neta da Baronesa Maria Angélica de Souza Queiroz de Barros, a quem é dedicada a
20 avenida Angélica, na capital paulista.
21. Se sua mãe passava as tardes rezando, a menina Thereza, toda esperta, aproveitava
o tempo livre para fazer suas brincadeiras e para ficar de butuca nas conversas do pai.
Cravava os ouvidos atrás da grande porta de madeira do escritório, localizado na parte
baixa da casa, e o escutava aconselhar clientes e políticos. Pouco entendia, mas permane-
cia atenta e cautelosa para não ser pega.
Enquanto Thereza enchia seu tempo prestando atenção no movimento do lado
de fora do solar, Tom, já moço, a observava dos fundos do sobrado onde morava, que
dava para a rua Frei Galvão, com frente para a rua Coronel Virgílio, enquanto brincava de
patins e de patinete com seus irmãos. De tão alto e irritante, o barulho das rodinhas podia
chegar aos ouvidos de Thereza, que mantinha a pose de indiferente, mas atraída pelas
brincadeiras ruidosas feitas no terreno de fundo do sobrado.
Tom – aliás, José Carlos Ferreira Maia – nasceu em 16 de janeiro de 1929, em Guara-
tinguetá. É o caçula dos seis filhos de Maria Rosa de França Cipolli Maia e Leonardo Ferreira
Maia. Seus irmãos: Antônio Carlos, Maria Virgília, Maria José, Maria Isbela e Maria Isa.
Maria Rosa é de 1892, natural de Guaratinguetá. Ainda com seis anos, foi interna
no Colégio do Carmo, na mesma cidade, saindo de lá anos depois, para cursar a escola
normal, no Colégio Conselheiro Rodrigues Alves, até hoje conhecido como Instituto. Ao
se formar professora, lecionou em Aparecida, até se casar com Leonardo, que ocupava o
cargo de diretor regional dos correios, no Rio de Janeiro.
O Dr. Camargo, pai de Thereza, e Maria Rosa, quando jovens, chegaram a ter um
namorico. Trocavam bilhetinhos, flertavam na igreja e se encontravam nas festas. Tudo
como mandava o figurino. Até que num certo Carnaval, quando era costume fazer diver-
tidas “bolas de perfume” ou “limão de cheiro”, a mãe de Tom saiu para brincar e acabou
acertando uma dessas bolas nas costas de Eduardo, avô de Thereza e pai do jovem por
Thereza e Tom
quem se interessava. A situação foi tão constrangedora que Maria Rosa saiu correndo. E
terminou a paquera.
***
21
22. Assim que se casou, Maria Rosa, mais conhecida por Zizinha, mudou-se para o
Rio de Janeiro. A posição de Leonardo era conceituada, o que lhe rendia um bom ordena-
do, mas que também exigia sua transferência, de tempos em tempos, para várias partes do
Brasil. A família viveu, depois, em São Luís, no Maranhão, em Florianópolis, no Estado de
Santa Catarina, e novamente no Rio. Por conta disso, os filhos desenvolveram um sotaque
bem peculiar, difícil de ser identificado.
Somente em 1937 é que a mãe de Tom resolveu voltar para Guaratinguetá.
Ela, o marido e os filhos foram morar no sobrado da família, junto com o famoso
Dr. Gastão de Meireles França, advogado e genealogista, que já havia sido prefeito
da cidade. Era o tio solteiro e culto que acabou por proporcionar a Tom uma bela
educação.
Tom já estava com dez anos, e nunca havia acompanhado o curso primário. Seu
conhecimento era adquirido dos costumes e dos locais por onde passou. Até aquela fase
da vida, havia somente estudado em casa, lendo, em francês, o “Qui, pour quoi, com-
ment” – semelhante à coleção “Tesouro da Juventude”, editada no Brasil – ou revistas
como Cariocas e Vamos Ler, além de jornais da época. Ele conta:
— Quando vim de Florianópolis, já tinha lido muitos livros, e sabia de muita coi-
sa. Não era merecimento, era o que tinha pra fazer.
O jovem era adepto de livros estrangeiros, que exerceram influência sobre seu
pensamento e que, no futuro, acabaram lhe rendendo ilusões e sonhos. Cercado princi-
palmente de literatura francesa, ganhou o apelido de Tom por causa de um personagem,
Tom Pouce, o Pequeno Polegar, traduzido para o português. Anos mais tarde, o codinome
Nas paredes da memória
iria se tornar marca registrada.
Tom vivia aprontando. Junto com os irmãos, fazia bolinhos de barro para jogar
na casa habitada pela família de Frei Galvão e nos descuidados que desciam aquela rua,
conhecida pelos antigos como “beco”. Quando foi fazer a primeira comunhão, não sabia
nem como confessar, uma vez que nunca tivera aulas de catecismo.
Como já era tempo, Tom precisava ingressar na escola, e conquistar um diploma.
22 Foi então que prestou seu primeiro exame de admissão na escola normal. Como resulta-
23. do da boa educação recebida em casa, conseguiu alcançar a nota oitenta e três, passando
como primeiro colocado.
Seu sotaque, no entanto, era bem diferente do habitual. Falava como carioca, mas
não exatamente igual. Isso dificultava o entendimento de todos, principalmente de seus
professores. Mas em ditados e em leituras de textos, o menino é quem se confundia. Al-
guns mestres, confirmando a pronúncia local, trocavam o som da letra l pelo r. Diziam
“porvilho”, em vez de polvilho; “vorta”, no lugar de volta, e assim por diante. E aí, como
escrever? Com l ou com r ? Tom ficava em dúvida.
***
A rotina das famílias que moravam em Guaratinguetá era bastante parecida. Todo
domingo, a missa celebrada na igreja de Nossa Senhora das Graças, às oito da manhã, era
um ponto de encontro. Nessas ocasiões, Thereza e Tom se viam e se cumprimentavam.
Ela ficava animada em ir à missa porque, depois, podia passear na praça com os pais, que
lhe compravam livros e sorvetes.
E aquele costume não mudava com o passar dos tempos. Thereza, mesmo depois
de moça, não tinha o hábito de escrever em diários nem sonhava em ter filhos. Mas era
vaidosa. Gostava de se arrumar, de tomar sol, de se bronzear. E queria usar justamente
as roupas que a mãe não gostava. Vestidos cavados e sem manga, modernos para época,
eram os seus preferidos. Nessa época, acompanhava as novenas com Maria Angélica,
para, depois da reza, continuar a dar suas voltas pela praça.
Certa vez, ela resolveu vestir um bolero branco, de manga japonesa curta, para ir à
novena de Santa Teresinha, na matriz de Santo Antônio. Dentro da igreja, o padre, rígido
Thereza e Tom
e conservador, caminhava pelos corredores, com um terço na mão, enquanto rezava alto,
junto com os fiéis. Quando avistou Thereza, com um vestido que deixava seus braços de
fora, exclamou alto:
— Quem estiver de manga curta ou sem manga, pode sair da igreja! Favor sair da
igreja quem estiver de manga curta! 23
24. Thereza insistiu em permanecer no lugar onde estava, até todas as senhoras vol-
tarem o olhar para ela. Sem opção, saiu da igreja, e foi para a casa reclamar ao pai. O
Dr. Camargo sempre ficava ao seu lado, concedendo seus desejos. E a filha, por sua vez,
possuía todas as características dele: era firme nas decisões e nas vontades, qualidades que
perduram até hoje. Assim como o pai, ficou revoltada com o comportamento do vigário.
A mãe, no entanto, continuou na novena.
Anos depois, já na faculdade, ao estudar a Inquisição, Thereza percebeu o signi-
ficado das acusações para a Igreja Católica, principalmente no período em que sequer as
famílias ousavam defender seus parentes, aterrorizadas com fogueiras, castigos e persegui-
ções. Analisando aquele cenário, lembrou-se do fato ocorrido com ela, na igreja de Santo
Antônio, e narrou a ironia aos colegas. Ironia porque um de seus ascendentes, que foi
vigário da mesma matriz, veio de Portugal justamente como representante da Santa Inqui-
sição, no início do século 19. Era o Padre Manuel da Costa Moreira, que trouxe consigo
dois “sobrinhos” – na realidade, seus filhos –, Madalena Thereza de Jesus e Francisco,
sendo esse último o futuro padre fundador de Itajubá (MG).
Mas os passeios depois das cerimônias religiosas não eram a única diversão de
Thereza. Outro lugar que ela adorava frequentar era o Cine Urânio – localizado na Praça
Conselheiro Rodrigues Alves –, ao qual as pessoas costumavam ir elegantes, para assistir
aos filmes, aparecer em público e conversar. As películas ainda eram novidade no interior.
E Thereza, como as moças da época, aguardava ansiosa a permissão para acompanhar
as sessões, sempre com os pais. Mas, para a revolta da filha, Angélica permitia apenas as
Nas paredes da memória
sessões liberadas pela cotação da Igreja, o que fazia a moça recorrer e choramingar ao pai,
até conseguir o que queria. Na hora da entrada, as luzes do cinema haviam de estar acesas,
pois só assim as pessoas podiam ser reparadas. Era como ir a um evento social. Thereza,
sempre vaidosa, adorava.
***
24
25. Guaratinguetá, 1954. Na praça central, durante as tardes, os rapazes faziam char-
me – uns encostados nas árvores, outros sentados nos bancos, outros volteando o lugar,
mais conhecido como “Largo”. Enquanto os cavalheiros permaneciam parados, as moças
caminhavam, para serem admiradas e para conquistar uma boa paquera. Tom era do gru-
po da árvore. E, discretamente, era com quem a Thereza flertava. Mas os dois eram novos,
tímidos, filhos de pais severos. Quase nunca se falavam.
Era junho. Mês de São João, uma amiga de Thereza, Marli Alves, daria uma festa
junina para comemorar seu aniversário, e pediu para Thereza sugestões de convidados.
Thereza, direta, como de praxe, sugeriu o nome de Tom.
Foi em clima de tradição, ao som de baiões, que no dia 16, do ameno mês de ju-
nho, na primeira casa da Vila Alves, Thereza e Tom tiveram a conversa que deu início a
uma longa história. A partir daí, as boas prosas foram ficando cada vez mais extensas, e
a missa das oito da manhã passou a ser frequentada semanalmente pelo casal. Na época,
não existia namoro. O fato de conversar e, em algumas raras vezes, dar as mãos, já signifi-
cava certo compromisso. Para irem além, precisava haver um noivado.
A família de Thereza ficou enciumada, já que ela era a filha única do casal. Suas
tias ficavam vigiando-a pelas janelas. Já a família de Tom fez muito gosto do relaciona-
mento, pois sua mãe tinha grande apreço pela moça. Os convites para Thereza tomar café
com bolo na casa do futuro marido eram frequentes. Ambos eram um bom partido.
Sete anos de diferença os separavam. Thereza estava, então, com dezoito anos,
formando-se professora na escola normal. Tom já tinha vinte e cinco, e estava prestes a
concluir o curso de Direito, no Rio de Janeiro.
Logo que começou a advogar em Aparecida e em Guaratinguetá, ele se decepcio-
nou com a profissão. De bom coração, tentava ajudar seus clientes, e acabava perdendo
Thereza e Tom
dinheiro. Ajudava a quem precisava. Construía casas para aqueles que as haviam perdido, e
não cobrava quando o cliente não tinha como pagar. Era um jovem advogado, de ilusões,
preceitos e princípios. Até que infelizes episódios o fizeram pensar em tudo aquilo.
Uma das casas que ele havia ajudado a construir, com a intenção de proporcionar
um lar a uma pobre senhora, foi dada a um agiota para acerto de contas. E um advogado, 25
26. sem ter recebido por seu serviço, tomou um relógio do bolso de seu cliente para garantir
o pagamento. Essas situações levaram Tom a refletir e a deixar a advocacia. Resultado:
prestou concurso para delegado.
1956. Tom se torna delegado de polícia. O namoro com Thereza já durava dois
anos, e ele, sonhador, aspirante a escritor, pensava em fugir para Paris. A ideia vinha dos
livros estrangeiros, dos quais gostava desde pequeno e que lhe mostravam a cidade luz
como a megalópole cultural do momento. Leitor assíduo dos livros e das histórias fran-
cesas, Tom sempre cultivou uma idealização mágica da vida na capital da França. Com sua
mente jovem e inquieta, queria viajar. Planejava ir para a Europa de navio, deixando tudo
e todos para trás. Só que na pacata Guaratinguetá havia Thereza. Sua doce, pragmática,
jovem, realista e decidida Thereza.
Com o apoio de sua mãe, carregando o título de delegado e certo de que esse seria
o melhor caminho a seguir, Tom foi pedir Thereza em casamento, antes de ser transferido
para delegar em Herculândia, no interior de São Paulo. Era quase certo que o Dr. Camargo
iria consentir. De terno marinho e gravata vermelha, ele foi sozinho até o solar da rua Frei
Galvão, onde a família da moça o esperava. Thereza havia avisado à mãe, que preparou a sala
de visitas para esperar o futuro genro. Para a satisfação dos dois jovens, o pedido foi aceito.
Tom começou a delegar. Chamava a atenção por ser jovem e muito bem apessoa-
do. Pelo aspecto físico e por ocupar um bom cargo, começou a ser assediado pelas moças
de Herculândia. Um médico local chegou a ir até ele oferecer sua filha em casamento,
prometendo-lhe uma casa. Obviamente, Tom não aceitou. Estava à espera de uma trans-
ferência para o Vale do Paraíba, para poder se casar com Thereza. Resistindo às paqueras,
Nas paredes da memória
e firme de sua decisão, fez o caminho de volta assim que conseguiu uma vaga em Piquete.
Dois anos após o noivado, o casamento foi marcado.
A data foi agendada às pressas, por pura teimosia de Thereza. Não havia necessi-
dade de ser tão próximo ao Natal. Mas Tom faz questão de lembrar:
— Ela era muito firme e muito pragmática.
O convite e o buquê foram feitos em São Paulo. A noiva queria as letras em alto
26 relevo, e as flores mais bonitas. A cerimônia não poderia ser realizada à noite, por conta
27. dos parentes que viriam da capital paulista. Entre os comes e bebes, dois grandes perus
foram encomendados. Não faltaram os doces: gelatina recheada, doces de frutas, molda-
dos em forma de coração, balas recheadas de coco e de licor feitas em Minas Gerais. Os
parentes paulistanos foram embora mais do que satisfeitos.
No dia 20 de dezembro de 1958, às dezessete horas, Thereza entra na igreja ma-
triz de Santo Antônio para se casar. Com os cabelos curtos e enrolados, um tradicional
vestido de rendas brancas e segurando um grande buquê feito com lírios de São José, ela
caminhou ao lado de seu pai, pelo corredor central. No altar, estava Tom, vestido em um
terno cinza escuro, complementado por uma gravata prateada.
As bodas foram celebradas pelo Padre Oswaldo de Barros Bindão, que futura-
mente viria a batizar todos os filhos do casal. E a festa foi realizada na própria casa dos
Camargo, onde também haviam se casado os pais e os avós de Thereza.
Terminados os festejos, o casal partiu para Piquete, cidade próxima, onde iria fixar
residência. Como a casa já estava pronta e mobiliada, e estava bem próximo da comemoração
do Natal, a lua-de-mel foi adiada. Só em fevereiro de 1959 é que viajaram para Angra dos Reis.
Meses depois, Tom foi transferido para a delegacia de Cunha, também na região.
O casal ficou com medo. Na época, a cidade não tinha uma boa fama: era conhecida pe-
las brigas e pelas mortes que aconteciam frequentemente. E Tom iria exercer um cargo
vulnerável às ameaças.
Certa vez, o delegado recém-chegado ganhou um presente estranho, como era de
costume de boas-vindas: uma grande cabeça de porco recheada. Thereza, com medo, pe-
diu para o marido enterrar aquilo no quintal, quando fosse madrugada, para ninguém ver.
A vida em Cunha era tranquila para Thereza, e agitada para Tom. Foi nesse período
que ela teve tempo para conhecer a cultura local e para começar a se encantar pelos festejos
Thereza e Tom
populares, do Jongo à Festa do Divino. Mas também foi quando ele se deparou com difíceis
situações para um delegado. A cidade era famosa por conta da violência, e Tom tinha de
pensar muito bem para agir. Queria, acima de tudo, zelar pela segurança da família segura.
*** 27
28. 28 de janeiro de 1960. Nasce Regina, a primeira filha. Thereza já havia engra-
vidado quando morava em Piquete, mas sofreu um aborto, no segundo mês de gestação.
Desta vez, finalmente, conseguiu dar à luz.
O choro da menina era tão intenso que Thereza tinha de passar as noites em claro
com a filha, que só dormia ao amanhecer. Mãe de primeira viagem, achava um problema
as épocas de chuva e de frio, tudo porque as fraldas precisavam ser colocadas em varais na
cozinha, próximo ao fogão a lenha, para secar.
Em Cunha, curiosos casos sempre aconteciam. Crianças recém-nascidas morriam
de tétano, porque o médico era chamado na última hora. Como o óbito ocorria sempre
uma semana depois, a doença era conhecida como “mal de sete dias”. O problema, na
verdade, é que os partos eram realizados em casa, com parteiras sem noções de higiene. A
Santa Casa era o último recurso. Corria a notícia de que lá, às parturientes e aos doentes,
era dado o “chá da meia noite”, uma espécie de veneno. Assim, poucos amanheciam vivos.
Thereza consultava, em Guaratinguetá, o Dr. Rubens Nepomuceno, famoso mé-
dico pediatra. Depois, repassava as informações para as mães que viviam em Cunha e que
não podiam ir à outra cidade. Quase sempre, as receitas eram de antibióticos, como Tetrex
e Quimicetina, muito em uso na época. Às vezes, ela receitava remédios homeopáticos,
encontrados nos livros que haviam sido da avó. Também contava com a ajuda do livro A
vida do Bebê, do Dr. Rinaldo De Lamare, que, em 1958, já estava na décima quinta edição.
Era um grande apoio para Thereza, que nunca lidara com crianças.
Em certo momento, ela chegou a pensar que havia herdado o gosto pelas receitas
de um de seus ancestrais, o boticário João Gonçalves dos Santos Camargo, que se estabe-
Nas paredes da memória
lecera como farmacêutico em Cunha, após ter deixado Campinas, no início do século 19.
Tom trabalhava enquanto a mulher tomava conta da casa. Isso durou até 1961,
quando um triste episódio aconteceu. Aliás, a gota d’água para o delegado. Um preso
ateou fogo na cadeia. Os moradores queriam deixar o culpado morrer queimado. Tom
foi contra. Não permitiu que isso ocorresse, e ainda foi a Guaratinguetá pedir socorro à
Aeronáutica, uma vez que não havia telefone em Cunha nem bombeiros na região. Mas
28 não foi possível salvar o antigo sobrado da câmara municipal nem a cadeia.
29. Depois de três anos morando em Cunha, Thereza, junto do marido, voltou para o
solar dos Camargo, onde continuaria cuidando de Regina e onde também daria à luz sua
próxima filha. Ela queria tanto ser mãe novamente que fez uma promessa para a Santo
Antônio, pedindo uma gestação tranquila, sem risco de aborto. Em 5 de fevereiro de
1962, nasceu Maria Antônia. Parto difícil, feito a fórceps. O apoio maior veio das pílulas
de Frei Galvão, tomadas no final da gravidez.
A moça que, antes, não sonhava em ter filhos, agora tinha duas meninas.
Thereza e Tom
29
30. O sobrado da rua Coronel Virgílio, em Guaratinguetá, foi habitado pela Arquivo Pessoal
família de Tom Maia
31. Arquivo Pessoal
No baile de formatura da escola normal, Thereza não deixou de usar um vestido de
mangas cavadas; Guaratinguetá, 1950
32. Pessoal
Pessoal
A jovem Thereza Antes de se casar
era vaidosa e com Thereza, Tom
gostava de trabalhou no
acompanhar as interior paulista;
sessões do jovem e bonito,
Cine Urânio chamava a atenção
em Herculândia
Reprodução
A catedral de Santo Antônio, Reprodução
O solar dos Camargo foi desenhado por Tom Maia
onde Tom se casou com Thereza,
também foi registrada em seus traços
34. Arquivo Pessoal
Na viagem que fez a Sergipe, em 1977, para desenhar aspectos do Estado, Tom foi
acompanhado de Thereza e dos filhos
35. — A Thereza não gosta, mas eu
conto muita bobagem. E eu gosto é de contar bobagem mesmo — revela Tom Maia,
ao se lembrar da vez em que visitou o alto do Rio Negro, em 2002, e foi à noite co-
nhecer uma aldeia de índios da Amazônia, localizada próxima ao Hotel Ariau. Lá,
dançou com várias índias, e só foi reparar que elas estavam nuas ao ver a foto, tirada
com flash.
Das lembranças que ainda tem, Tom cultiva especial predileção pela época em
que era esportista. Sempre jogou tênis como hobby, mas teve de parar os exercícios
depois que sofreu com ancilostomose, em 2009. Doença chamada de “amarelão”, é
Thereza e Tom
bastante conhecida no Vale do Paraíba, e ganhou desataque no Brasil após ter sido
descrita por Monteiro Lobato, no livro Urupês. Era o mal que assolava seu Jeca Tatu.
Tom passou cerca de um ano doente. Ficava cada vez mais debilitado por
conta da anemia, e os médicos não conseguiam curá-lo, por conta da dificuldade para
fazer o diagnóstico. Com a ajuda das rezas das filhas e da esposa, o “amarelão” foi 35
36. descoberto, por meio de uma endoscopia do estômago, e foi tratado com um remédio
chamado Zentel, um simples vermífugo.
Mas a paixão pelo tênis ainda persiste: durante as tardes, a televisão da sala fica
ligada nos jogos transmitidos pelos canais pagos.
Aos oitenta e quatro anos, ele parece cultivar o mesmo espírito maroto que mar-
cou sua infância e sua juventude, tempos que ele traz à tona, volta e meia, ao se lembrar
de que, mesmo ocupando um cargo importante, costumava fazer caricaturas dos que
estavam presentes para se distrair durante as audiências.
Pouco antes de se casar com Thereza, Tom ainda se arriscou em outra carreira: a
de professor. Foi dar aula na Escola de Comércio de Guaratinguerá, que funcionava na
Faculdade Nogueira da Gama. Lecionando para uma turma de rapazes, não pegou gosto
pela função, devido ao mau comportamento dos alunos, que, mesmo naquela época, não
paravam dentro da sala. Por isso, deu preferência à advocacia.
Em 1962, ele se tornou promotor público, aprovado em concurso. A mudança de
Cunha para Guaratinguetá possibilitou que começasse a carreira cobrindo substituições,
onde fosse requisitado, enquanto Thereza permanecia na casa dos pais, com as filhas pe-
quenas.
No ano seguinte, Tom conseguiu uma vaga fixa em Cachoeira Paulista, e se mu-
dou para lá com a família. Foram morar em uma casa que ficava no alto da ladeira da igreja
de Santo Antônio, a qual só era aberta em tempos de festa. Na casa onde residiam, havia
uma placa, onde se podia ler: Vila Santa Teresinha. Sua extensão ia de uma rua até outra,
Entre lembranças e risos
e a vizinhança também era rodeada por outras dessas vilas.
A casa do promotor sempre foi muito movimentada. O povo da cidade costu-
mava bater em sua porta para pedir que resolvesse problemas rotineiros ou que prestasse
algum tipo de ajuda. Sua generosidade o fez, por muitas vezes, ceder muito mais que a sua
atenção, quando, por exemplo, passou anos doando leite a uma senhora, que dependia
disso para alimentar seus filhos.
36 ***
37. Por essa época, Thereza voltou a ter abortos. Engravidava, mas não chegava a
completar três meses de gestação. Passou por isso cinco vezes, sofrendo com fortes he-
morragias. Até que conheceu o Dr. Darwin Aymoré do Prado, médico que residia em
Cachoeira. Seu diferencial: era espírita e “gênio”, no dizer de Tom.
— Ele era o melhor médico de lá — afirma Thereza.
O médico descobriu que o aborto, nas primeiras semanas de gravidez, era provo-
cado por má circulação. As veias de Thereza eram estreitas, e isso impossibilitava que a
placenta se firmasse para o desenvolvimento do bebê. O médico, então, receitou um re-
médio para circulação, o que solucionou seu problema e lhe permitiu ter mais dois filhos.
Maria Angélica, a terceira filha, nasceu em 9 de dezembro 1965. Apelidada de
Marie, é a mais calma e a mais meiga. Passou a ser chamada de “toquinho” pelo pai, por
também ser a mais nova entre as mulheres.
Três filhas, porém, ainda não era o suficiente. Como todo homem, Tom queria um
filho. E o Dr. Camargo, um neto.
— Estava entrando no mercado a pílula anticoncepcional, só que eles ainda eram
muito machistas. E essa coisa do machismo os fazia querer um herdeiro homem — recor-
da-se Thereza.
Então, em 24 de fevereiro 1970, foi a vez de Thereza dar à luz João Carlos, o
caçula da família. Dizem que seu gênio é muito parecido com o da mãe, enquanto as três
meninas puxaram ao pai. Sobre o nascimento do filho, Tom não hesita em esbravejar:
— Eu caprichei!
Regina, Maria Antônia e Maria Angélica nasceram na maternidade do Hospital
Frei Galvão, em Guaratinguetá. Como era o costume da época, durante a primeira semana
de vida das filhas, a mãe só as via na hora de amamenta-las.
Thereza e Tom
— E eu dou graças a Deus, pois só assim podia descansar — confessa Thereza,
que conseguia dormir todas as noites, sem precisar fazer esforços com a criança recém-
nascida.
João Carlos, no entanto, só passou a primeira noite longe da mãe. Precisou ficar
na incubadora até o pediatra chegar para lhe dar alta. Mas depois que foi liberado, não 37
38. saiu mais dos braços de Thereza. Tom acredita que, por causa da distância da mãe, nos
primeiros dias de vida, as filhas tenham se apegado mais a ele, enquanto o filho, por ter
sido cuidado por Thereza desde o começo, tenha puxado mais a ela.
O fato de o menino ter sido o único a nascer na Santa Casa de Guaratinguetá
também fez surgir na família o mito de que somente as mulheres nasciam na maternidade
do Frei Galvão, enquanto os homens nasciam na maternidade da Santa Casa. Mas é tudo
folclore. Naquela época, não havia recursos de ultrassonografia que permitissem desco-
brir o sexo do bebê.
Tom gostava de desempenhar o papel de pai, e muitas vezes tomava conta da
situação:
— A Thereza não sabe ninar criança. A criança abria a boca pra chorar, eu a pe-
gava e ela parava na hora. E ela pegava as crianças do lado errado — reclama.
Esse zelo teve início, na verdade, quando Regina nasceu. Tom foi dar banho na
menina, e escutou um elogio da mulher:
— Nossa, como você é jeitoso!
Caiu na conversa, e acabou ganhando a vez de dar banho em todos os outros filhos.
Thereza também se lembra que o marido costumava distrair as crianças durante
as noites, narrando contos e causos.
***
Entre lembranças e risos
Em Cachoeira Paulista, a família fixou moradia por cerca de nove anos. Voltaram
para Guaratinguetá em 1972, assim que Regina atingiu a idade para ingressar no Colégio
do Carmo. Tom continuou trabalhando em Cachoeira, mas fazia, todos os dias, o percur-
so entre uma cidade e a outra.
— Os períodos mais felizes, para mim, foram aqueles em que morei fora de Gua-
rá: em Piquete, em Cunha e em Cachoeira — confessa Tom.
Mas, como as crianças precisavam de uma boa escola, o retorno a Guaratinguetá
38 era inevitável.
39. A rotina da família permaneceu assim até 1978, quando Tom recebeu uma ligação
do presidente da estatal Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), Said Farah. Assim
que atendeu ao telefone, escutou:
— Quero que você desenhe o Brasil para mim.
Tom Maia sempre teve aptidão para o desenho. Por essa época, seus trabalhos
feitos com bico de pena já haviam ganhado fama, por conta dos cinco livros lançados
pela Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), nos quais retratou a realidade das
construções históricas do Vale do Paraíba, de Paraty e de Santos.
Com o susto provocado pelo telefonema repentino, Tom hesitou, alegando que
era promotor público e que não poderia deixar seu posto. Mas, assim que se inteirou da
proposta, largou a promotoria pública rapidamente. Ele iria ganhar o mesmo salário, só
que para viajar pelo Brasil, desenhando cidades históricas.
Em menos de três meses, já havia acertado tudo para dar início à nova jor-
nada. A primeira viagem foi para Minas Gerais, mais precisamente para São João
del Rei e para Tiradentes. A família, claro, o acompanhou. Nessa turnê, Tom teve a
possibilidade de desenhar o sobrado de Tancredo Neves, que mais tarde seria eleito
governador de Minas e presidente do Brasil, embora tenha falecido antes de assumir
este último cargo.
A história começou quando, em São João del Rei, o casal estava procurando um
bom imóvel para Tom desenhar seu interior. Pediram, então, informações a um farmacêu-
tico, que logo indicou:
— Vão ao sobrado do meu irmão Tancredo, que possui uma bela mobília na sala
de visitas.
Por coincidência, o farmacêutico era irmão de Tancredo Neves.
Thereza e Tom
Thereza deixou as crianças em uma praça, localizada em frente ao casarão, e foi
até lá. Junto do marido, tocou a campainha. Foram recebidos com gentileza. Enquanto
Tom fazia seu trabalho, Thereza permaneceu conversando o político, que mandou um
empregado servir guaraná para ela e para seus filhos, que os aguardavam do lado de fora.
— Ele foi muito simpático e receptivo — recorda Thereza. 39
40. Durante a conversa, Thereza também descobriu que Tancredo era devoto de São
Francisco de Assis, e que possuía uma coleção de imagens antigas do santo. Ele pertencia
à Ordem Terceira, e não deixava de acompanhar as procissões realizadas na cidade.
Sempre que Tom acabava de desenhar uma região, retornava à casa, juntava todos
os originais dos desenhos e ia de ônibus, com Thereza, até o Rio de Janeiro, para entregar
o material. Logo no primeiro ano em que começaram a fazer esse trabalho, conseguiram
o lançar o livro São João del Rei e Tiradentes, com nanquins de Tom e pequenos textos de
Thereza.
Pelos caminhos, a família Maia vivia aventuras, mas também passava por dificul-
dades. Foram muitas as experiências, as amizades feitas e as cidades desbravadas.
— Para chegar até Alcântara, no Maranhão, ou íamos de avião, ou íamos de velei-
ro. Fomos de avião, e o João foi conosco. Foi lindo! — afirma Tom.
— Ao descermos do avião, que era um daqueles teco-tecos, um caminhão foi
pegar a gente. Não tinha nada na cidade, nem luz. O gerador havia estourado — comple-
menta Thereza.
Em Alcântara, cidade onde as crianças brincavam ao som das cantigas de roda,
não era possível trabalhar no período da tarde. O calor era muito forte. No café da manhã,
não havia nada para comer que lembrasse os costumes do Vale do Paraíba. Só comidas
típicas, como o camarão frito. O pão vinha de São Luís, mas só quando as condições do
mar eram favoráveis. E como também por lá não tinha moeda por conta dos poucos ha-
bitantes e da falta de comércio e de progresso, Thereza tinha de conseguir o que queria a
Entre lembranças e risos
base do escambo:
— O João Carlos não comia nada. Então, trocávamos seus shortinhos e camisetas
por pencas de bananas — conta.
Nessa empreitada, o casal viajava de ônibus, de avião ou no antigo carro da marca
Ford, Rural Willys, de cor verde e branca, que pertencia a Tom e que está até hoje com a
família. O automóvel foi adquirido em 1970, ano de sua fabricação e também do nasci-
mento de João Carlos. Por isso, foi prometido ao caçula, que receberia o presente quando
40 completasse dezoito anos.
41. A promessa foi cumprida. Ajudado pelo filho, Tom ainda reformou o carro, que
até hoje chama a atenção, por onde passa.
***
1979 foi um ano produtivo. O casal conseguiu lançar mais cinco livros, em
parceria com outros cinco escritores: Tijuco e Diamantina, com Ayres da Matta Macha-
do Filho; Vila Boa de Goiás, com Bernardo Ellis; Sergipe del Rei, com José Anderson do
Nascimento; Serro do Frio: vila do Príncipe, com Miguel Lins, e Grão Pará, com Leandro
Tocantins.
Mesmo após encerrar o trabalho para a Embratur, em 1979, Thereza e Tom con-
tinuaram explorando o Brasil, e já se sentiam em casa quando chegavam ao Maranhão. O
casal tinha a sorte de poder contar com os pais de Thereza, que olhavam os netos durante
as longas viagens.
As crianças ficavam alegres com a volta dos pais. Talvez nem tanto pela saudade,
mas pela ansiedade de ganhar um presente. Maria Antônia conta que, durante essas via-
gens, o dia a dia na casa dos avós era normal. Todos estavam bem acostumados.
— A gente nem ligava muito. Ficávamos com o vovô e com a vovó, e a casa sem-
pre foi assim, movimentada — lembra.
Thereza era a responsável por separar o material utilizado por Tom na hora de de-
senhar. Se deixasse por conta dele, certamente ele iria esquecer os itens principais, como
aconteceu em algumas ocasiões.
A memória de Tom era mesmo atrapalhada.
— Ele esquecia tudo — diz Thereza, num tom de exclamação.
Thereza e Tom
Houve uma vez em que os dois foram de ônibus ao Rio de Janeiro, para lá embar-
car num avião. Passando por um viaduto, na entrada de Cachoeira Paulista, cidade onde o
ônibus, obrigatoriamente, teria de parar, avistaram João Carlos, com um paletó na mão, à
espera dos pais. No bolso do paletó, estavam as passagens de avião que Tom esqueceu em
casa. Se não fosse o filho, teriam perdido a viagem. 41
42. A dedicação pelo trabalho fez com que nunca fossem intimidados pelas dificulda-
des. Quando foram desenhar a Bahia, souberam que ninguém visitava o Pelourinho após
as quatorze horas.
— Era suicídio — diz Tom.
Na época, o Pelourinho era considerado muito perigoso e mal frequentado. Mas
Tom precisava cumprir sua tarefa. Foi até lá com Thereza, acomodou-se na sombra, atrás
de uma caçamba de lixo, e começou a desenhar. O cheiro era horrível. Depois, ainda tive-
ram de ir até uma casa de prostituição, e alugar um quarto, para que Tom conseguisse o
melhor ângulo para seus desenhos. Por sorte, não tiveram nenhum problema.
Entre lembranças e risos
42
43. Arquivo Pessoal
Em visita à Amazônia, em 2002, Tom conheceu uma aldeia indígena, no alto do Rio Negro
44. Arquivo Pessoal
O sobrado de Tancredo Neves, desenhado por Tom, em 1977, entrou
para o livro São João del Rei e Tiradentes
51. U m ano de grandes mudanças na vida de
Thereza e Tom Maia foi 1972. Mudanças que iriam trazer bons ares e novos amigos.
Thereza acabara de regressar a Guaratinguetá, para colocar os filhos na escola.
Apoiada pelo marido, decidiu voltar a estudar. Em 1952, ela havia integrado a primeira
turma de Pedagogia das Faculdades Integradas Teresa D’Ávila (Fatea), em Lorena, mas
deixou o curso no último ano, sem concluí-lo, porque se desencantou com a disciplina de
metodologia. Passadas duas décadas, o momento, agora, era propício para o reencontro
com o ensino superior.
Foi assim que, com trinta e sete anos, quatro filhos e nenhuma grande intenção,
Thereza e Tom
ela decidiu cursar Estudos Sociais, nome dado, no período de repressão ditatorial, ao
antigo curso de História. E, nada mais justo, voltou à Fatea. Para facilitar seu ingresso na
faculdade, pôde fazer uma complementação de currículo, aproveitando muito do que ha-
via cumprido na passagem anterior pela instituição. Assim, conseguiu não apenas retomar
os estudos, como também pôde concluir os dois cursos. 51
52. Tom, muito companheiro, era quem levava a mulher todas as noites para a facul-
dade, enquanto os filhos ficavam com os sogros. À época, Lorena era famosa por abrigar
um grande núcleo intelectual da região. Ali, grandes ideias e velhos pensamentos eram
transformados. Dentre seus professores, constavam os nomes de Maria de Lourdes Bor-
ges Ribeiro – folclorista nacionalmente reconhecida – e Francisco Sodero Toledo, que
viriam a ser grandes colaboradores do casal, em momentos posteriores.
Naquele ano, foi realizada a primeira edição do Simpósio de História do Vale
do Paraíba, no qual estudiosos da área se reuniram para discutir assuntos de interesses
regionais e para promover uma maior valorização dos patrimônios. Foi quando o amigo
de Thereza e pesquisador aparecidense, José Luiz Pasin, com apenas vinte e cinco anos,
teve a grande ideia de criar um instituto de intelectuais, que assumisse o compromisso de
preservar a história do Vale do Paraíba e seu meio ambiente.
Thereza e Tom logo aderiram a esse movimento. Assim, em 1973, na sede do Mu-
seu Frei Galvão, em Guaratinguetá, foi fundado o Instituto de Estudos Valeparaibanos,
identificado pela sigla IEV. Assinada por Pasin, a ata de fundação registra o seguinte:
Aos trinta dias do mês de junho do ano de hum mil novecentos e setenta
e três, na sede do Museu “Frei Galvão”, à Praça Conselheiro Rodrigues
Alves, número quarenta e oito, às vinte horas, reuniram-se professores, his-
toriadores, pesquisadores e sociólogos, com a finalidade de fundarem o Insti-
As histórias por trás dos livros
tuto de Estudos Valeparaibanos, entidade cultural, em nível superior, sem
finalidade de lucro, com sede e foro judiciário nesta cidade de Guaratinguetá,
Estado de São Paulo.
Iniciando a reunião, o professor José Luiz Pasin expôs as finalidades
principais do Instituto de Estudos Valeparaibanos, destinado a centralizar
os estudos e pesquisas sobre a região valeparaibana, congregar os estudio-
sos e pesquisadores, manter uma biblioteca, arquivo, filmoteca, hemeroteca
e mapoteca e promover simpósios, congressos, seminários, cursos, pesquisas e
52 outras promoções relacionadas com o Vale do Paraíba.
53. Em seguida foram lidos e aprovados os Estatutos do Instituto de Es-
tudos Valeparaibanos, sendo eleita por aclamação a primeira diretoria e
Conselho Administrativo para o triênio 1973-1976, assim constituídos:
Diretor: Professor José Luiz Pasin; Vice-Diretor: Professor Francisco So-
dero Toledo; Secretário: Professora Thereza Regina de Camargo Maia; Te-
soureiro: Professora Catarina Aparecida Vieira Vilela. Conselho Admi-
nistrativo: Professora Maria de Lourdes Borges Ribeiro, Doutor José Carlos
Ferreira Maia, Professora Mariza de Souza Menezes, Professor Benedito
Carlos Marcondes Coelho, Professora Terezinha Paiva de Faria, Doutor F.
A. Lacaz Netto, Professora Wania Aparecida Nogueira, Professor Paulo
Pereira dos Reis e Doutor Francisco de Assis Barbosa.
Deliberou-se, a seguir, que a sede oficial do Instituto de Estudos Valepa-
raibanos será no edifício do Centro Social de Guaratinguetá, praça Conse-
lheiro Rodrigues Alves, número quarenta e oito, segundo andar.
A instalação oficial do Instituto de Estudos Valeparaibanos será reali-
zada no próximo mês de outubro, em data a ser marcada. Como primeira
realização oficial, o Instituto de Estudos Valeparaibanos promoverá em
Guaratinguetá, em julho de hum mil novecentos e setenta e quatro, o II Sim-
pósio de História do Vale do Paraíba, relacionado com o tema “O Desbra-
vamento e o Povoamento do Vale do Paraíba – Séculos XVII e XVIII”.
Nada mais havendo a tratar, foi encerrada a reunião de fundação do
Instituto de Estudos Valeparaibanos, da qual, para constar, foi lavrada a
presente Ata de Fundação, a qual, vai pelos presentes assinada: José Luiz
Thereza e Tom
Pasin, Maria de Lourdes Borges Ribeiro, Thereza Regina de Camargo
Maia, Catarina A. Vieira Vilela, Francisco Sodero Toledo, José Carlos
Ferreira Maia, Terezinha Paiva de Faria, Mariza de Souza Menezes, Wa-
nia Aparecida Nogueira, Benedito Carlos Marcondes Coelho, Francisco de
Assis Barbosa, Paulo Pereira dos Reis. 53
54. O IEV representa, de fato, um marco na história do Vale do Paraíba. Seu cres-
cimento e a adesão de novos pesquisadores fazem com que se mantenha em constante
atividade, estando próximo de completar quarenta anos.
— O ponto forte hoje do Instituto são os simpósios que antes aconteciam de dois
em dois anos, mas que agora são promovidos anualmente — explica Nelson Pesciotta,
atual presidente do IEV, que também reforça o fato de o Instituto ter antecedido muitas
das ONGs ambientalistas espalhadas pelo mundo; afinal, já em 1973, o meio ambiente era
pauta de extrema importância nas discussões promovidas por aquele grupo.
Thereza, assim como o marido, exerceu diversas funções dentro do Instituto.
Muitas das principais atas, aliás, foram elaboradas por ela, como a do dia 29 de outubro de
1977, na qual escreveu sobre a importância da conscientização e da valorização dos bens
culturais da região, por meio de Cartas de Defesa:
Ata comemorativa do aniversário de fundação do Instituto de Estudos
Valeparaibanos. Aos vinte e nove dias do mês de outubro de hum mil e
novecentos e setenta e sete, no Salão Nobre do Museu “Frei Galvão” de
Guaratinguetá, realizou-se sessão solene de quarto aniversário de fundação
do Instituto de Estudo Valeparaibanos e posse de seus novos membros efeti-
vos e associados.
A sessão teve início às dezenove horas, aberta pelo Presidente do Insti-
As histórias por trás dos livros
tuto de Estudos Valeparaibanos, que falou sobre o significado da Carta de
Defesa do Patrimônio Cultural do Vale do Paraíba e Paraty, e da respon-
sabilidade de cada membro do Instituto no Ano de Defesa do Patrimônio
Cultural de ambos, no ano de 1978, onde a ação de todos deveria ser mais
intensa e significativa, dentro do plano de valorização de nossa terra, nossa
gente.
Em 11 de novembro de 1978, em outra reunião, Thereza, ainda como secretária,
54 deixou o seguinte registro:
55. A profª. Thereza Regina de Camargo Maia propôs que a meta da pró-
xima diretoria deve ser a oficialização do Instituto junto aos órgãos estaduais
e federais, afim de que possa atingir inteiramente seus objetivos. Assim foi
encerrada a última sessão ordinária da primeira diretoria do Instituto de
Estudos Valeparaibanos, da qual eu, Thereza Regina de Camargo Maia,
secretária, lavrei a presente ata. Guaratinguetá, em onze de novembro de
1978.
O trabalho que Thereza e Tom desenvolveram junto ao IEV é visto, pelos novos
pesquisadores, como incentivo, um exemplo de como é possível fazer a diferença quando
há propósito e paixão por determinada causa.
— A gente nunca pode esquecer o trabalho que esses primeiros historiadores tive-
ram para organizar e formar a nossa historia. Tom foi o primeiro responsável pela defesa
do patrimônio como representante IEV — diz Diego Amaro, de vinte e cinco anos, o
membro mais novo do Instituto.
***
Na Fatea, em 1972, Lourdes Borges, responsável pela cátedra de Folclore, solici-
tou aos alunos um trabalho sobre irmandades de negros. Como seus colegas já haviam
escolhido a maioria das irmandades espalhadas pelo Vale do Paraíba, Thereza optou pelos
grupos da pacata Paraty, no litoral fluminense. Foi seu ponto de partida para os estudos
regionais.
Como foco, ela elegeu as irmandades de São Benedito e de Nossa Senhora do
Thereza e Tom
Rosário. Para entender as manifestações daquele povo, foi preciso passar dias fazendo
entrevistas e pesquisas de campo, tipo de trabalho que os antropólogos chamam de etno-
grafia. Lá, escutou histórias, conheceu personalidades e desbravou uma nova cultura.
Quando o texto ficou pronto, Thereza sentiu a necessidade de imagens para ilus-
trá-lo, para dar vida à sua pesquisa. Fotografar estava fora de questão, pois era um material 55
56. caro, e demandava de muito trabalho para ficar pronto. Como gostava de desenhar, Tom
decidiu oferecer ajuda: pegou um bico de pena e começou a traçar as ruas, as construções,
os personagens e tudo o mais que fazia parte daquele cenário. Foi aí, também, que veio a
descoberta de seu verdadeiro talento.
O trabalho foi entregue. Ao recebê-lo, a professora folheou por inteiro. E sua
primeira manifestação foi:
— Nossa! Mas quem fez esses desenhos?
Surpresa com a qualidade do material, ela sugeriu que o inscrevessem no “Prêmio
Silvio Romero” de 1973, da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro do Ministério da
Educação e Cultura. Foi uma boa aposta. Além de conquistar o primeiro lugar naquele
evento, o trabalho deu origem ao livro Paraty: religião e folclore, publicado no ano seguinte,
em 1974.
O livro fez alarde. Conscientizou muitas pessoas sobre a cultura local, mostrando
quão ricas eram as tradições daquele povo. Revelou que a região, marcada como sede do
porto mais importante para a exportação do ouro no Brasil, abrigou famílias, escravos e
índios no período colonial, desenvolvendo hábitos e costumes incomuns a outros perío-
dos e a outros lugares.
Uma das descobertas mais curiosas feitas por Thereza foi a de que há, em Paraty,
quatro igrejas: a dos brancos, a dos mulatos, a dos negros e a da elite. Todas elas resistiram
ao tempo e às mudanças ocorridas nos últimos séculos.
As histórias por trás dos livros
Pelos feitos de Thereza e de Tom, o perfil da região começou a ser identificado e
traçado. Com isso, eles também passaram a criar raízes por aqueles lados, e a conquistar
novos amigos, como o historiador Diuner Mello.
Diuner, que em 2011 ocupa o cargo de Secretário de Cultura de Paraty e coordena
os principais núcleos culturais da cidade, foi parceiro do casal na fundação do Instituto
Artístico e Histórico de Paraty (IAHP). Ele é um dos que reconhecem a importância do
casal para a cidade:
— A fundação do IHAP, acredito que foi o maior trabalho, uma vez que a insti-
56 tuição vários desenvolveu trabalhos na preservação da cultura, sobre costumes, dança e
57. história. O Instituto passou a ser o depositário de publicações e ações de preservação da
memória local.
O IHAP foi criado em 1976, baseado no IEV e adaptado a Paraty. Os trabalhos
para sua fundação foram realizados, efetivamente, por Thereza e Tom Maia, juntamente
com os paratienses Diuner Mello e Annazitha de Alvarenga Corrêa. Ao nascer, o Insti-
tuto passou a ser um depositário de documentos, atuando em favor da preservação da
memória local.
— Os trabalhos de Thereza preservaram a história e o folclore, enquanto os de
Tom registraram a iconografia arquitetônica de Paraty. Ambos são de vital importância
para estudos atuais e futuros — defende Mello.
Mas a história da família Maia, em Paraty, teve início algum tempo antes. Em 1970,
Maria Antônia tinha fortes crises de bronquite. Seguindo os conselhos do Dr. Rubens
Nepomuceno, pediatra, a menina deveria passar uma boa temporada na praia, respirando
ar puro, descalça, sem fugir da chuva. Foi aí que Tom comprou uma casa em Paraty, na rua
Dona Geralda, no centro da cidade, por onde passam procissões e festas populares. Para
adquiri-la, teve de vender um carro.
Naquela época, as idas até a cidade passaram a ser frequentes. A família toda viaja-
va no Rural Willys, o automóvel que, assim que comprado, fora prometido ao caçula João
Carlos. E com todas as realizações que a cidade permitia, o casal foi fazendo cada vez mais
parte daquela terra.
Certa vez, tempos após o lançamento de Paraty: religião e folclore, Thereza viajou até
lá para participar da tradicional Festa do Divino. Quando chegou à igreja, disseram-lhe
que não havia papel vermelho para fazer as flores e enfeitar o altar. Então, ela logo sugeriu
que as fizessem com plástico. Mas ouviu uma resposta não muito amigável:
Thereza e Tom
— Imagina! No livro diz que é com papel!
Mal sabiam que era ela quem havia escrito o livro.
— As novas gerações não os conhecem e não sabem do importante papel que
Thereza e Tom desempenharam na preservação de Paraty. Mas Paraty é assim, meio ico-
noclasta. Não cultua ídolos, e isso não acontece somente com eles. A cidade não exibe em 57
58. seus logradouros públicos nenhuma estátua ou busto de personalidade local ou nacional
— argumenta Diuner Mello.
***
O ano era 1974. A segunda edição do Simpósio de História do Vale do Paraíba
propunha, como tema para discussão, a decadência das antigas fazendas que cultivavam
o café, as quais, por muito tempo, seguraram a economia do Brasil, resgatando o povo da
crise da mineração e proporcionando prosperidade para o Vale.
Thereza e Tom participaram do Simpósio, cujas atividades incorporavam uma ex-
cursão a tradicionais fazendas, que, abandonadas, estavam sendo destruídas pelo próprio
tempo. Foi quando Tom, literalmente, entrou para a história. Em meio àquelas discussões,
e por conta do passeio, despertou nele o interesse em preservar um patrimônio merecedor
de valorização. Decidido a fazer o seu papel da maneira que lhe cabia, disse a Thereza que
gostaria de desenhar as velhas construções.
Assim, durante os finais de semana, o casal passou a preparar lanches e equipa-
mentos, para ir de cidade em cidade, de fazenda em fazenda. Thereza, sempre compa-
nheira e entusiasta, o acompanhava para fazer as pesquisas e as entrevistas, conhecendo
as festas populares e a cultura local.
Quando Tom juntou centenas de desenhos das fazendas, o amigo e professor
As histórias por trás dos livros
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH-USP), Eduardo de Oliveira França, os recolheu para mandá-los a São Paulo,
e tentar um apoio da Universidade para a publicação. Meses se passaram, e nada de
Eduardo dar resposta ou mandar notícias. Interessado, o casal foi à capital atrás dos de-
senhos, quando descobriu que o professor havia sido cassado, por repressão do regime
militar, e as obras estavam todas na EDUSP, onde queriam lançar um livro usando-as
como ilustração para os textos de Sérgio Buarque de Hollanda. Como o material não
estava assinado, a própria editora não sabia quem era o autor daqueles documentos
58 iconográficos.
59. A empolgação foi imediata, e a proposta foi aceita. Reuniões foram marcadas para
acertar os detalhes. Apenas sessenta, dos duzentos desenhos mandados por Tom, iriam
entrar no novo livro. Porém, com a audácia de Thereza, cento e vinte fazendas acabaram
ilustrando as páginas. E assim foi publicado, em 1975, o aclamado Vale do Paraíba: velhas
fazendas, fruto da parceria entre Sérgio Buarque de Holanda e Tom Maia.
No Vale, o primeiro lançamento do livro foi realizado na Fazenda Boa Vista, em
Roseira, propriedade de José Luiz Pasin. Sérgio e Tom fizeram uma noite de autógrafos na
antiga senzala daquele lugar, iluminado pela luz de velas. Os convidados puderam, ainda,
saborear uma famosa canja temperada com hortelã.
Os anfitriões não esperavam a quantidade de pessoas que prestigiaram o evento.
Como a fazenda é distante de Guaratinguetá, acreditavam que seriam poucos os presen-
tes. Perceberam que estavam enganados quando boa parte dos convidados começou a
chegar, seguidos de Dom Pedro Henrique de Orléans e Bragança – membro da família
real brasileira, residente em Vassouras (RJ) –, que também fez questão de festejar os auto-
res, junto com seus familiares.
Porém, para susto e espanto de todos, a lua cheia que embelezava o céu daquela
noite, em meados de junho 1975, deu vez a uma forte chuva.
— Deu um estrondo no céu, e bateu uma tempestade. Era impossível prever chu-
va naquele tempo frio, mas deu um toró violento. Foi a nossa sorte! — lembra Tom.
Sorte, sim. Como não calcularam a quantidade de gente, eles se preocuparam se a
canja seria suficiente para todos. A chuva, foi até providencial.
A tempestade passou, a lua reapareceu. Na porta da senzala, alguém gritou:
— Houve um dilúvio no morro!
Rapidamente, Sérgio Buarque de Hollanda revidou:
Thereza e Tom
— Paulo Florençano!
Taubateano, historiador e grande amigo de Sérgio e de Tom, Paulo Camilher Floren-
çano era um convidado bastante esperado. Foi ele quem gritou lá do portão. E foi quem ins-
pirou Tom a desenhar com bico de pena, já que também era desenhista e ilustrador da antiga
revista Paulistania, além de ter usado a mesma técnica para registrar vários cenários de Taubaté. 59
60. A amizade de Thereza e de Tom com Sérgio Buarque de Holanda perdurou du-
rante anos, até sua morte, em 1982. Residente em São Paulo, ele sempre ia ao Rio de
Janeiro, para visitar o filho, um certo Francisco, de apelido Chico. Nessas ocasiões, parada
obrigatória era Guaratinguetá.
Sérgio não dirigia. Quem fazia as vezes de motorista era sua esposa, Maria Amélia.
Em Guará, costumavam pousar no Kafé Hotel, no centro da cidade, bem próximo ao
solar dos Camargo, onde jantavam e ficavam proseando durante horas.
— Aqui em casa era ponto de descanso do Sérgio. Ele era de ótima prosa, porém
só ele podia falar. Ele falava mais do que eu — assegura Tom. — E ele me pediu para
comprar o whisky Queen Anne. Toda vez que chegava em casa, sentava-se à mesa da sala
de jantar, para beber, de costas para as janelas e ao lado de sua esposa, que ia completando
o copo dele com água mineral. Quando percebia isso, ele cuspia pela janela e voltava a
colocar o whisky.
Por essa época, Chico Buarque ainda estava no começo do sucesso de sua carreira,
e sua firmação artística fazia Sérgio Buarque brincar, muitas vezes:
— Eu sou pai do Chico.
O nome do filho tornou-se uma identificação para ele, já que os mais jovens não
conheciam sua obra.
Numa das vezes em que o escritor estava em Guaratinguetá, funcionários do Kafé
Hotel foram chamar Tom Maia para acudir o amigo, que tinha caído e cortado a cabeça.
As histórias por trás dos livros
Tom correu para levá-lo até a Santa Casa. Quando chegou lá, viu que não havia médicos,
somente um jovem residente. Sem poder optar, Tom alertou ao residente:
— Cuidado com esse homem, porque ele é o pai do Chico Buarque.
O atendimento foi tão bom que, tempos depois, Sérgio mandou uma carta de São
Paulo, agradecendo pelo socorro.
A parceria na produção de Vale do Paraíba: velhas fazendas rende frutos até hoje, em-
bora não para os autores ou para seus descendentes. Ocorre que, das estâncias que ainda
restam no Vale do Paraíba, aquelas que foram desenhadas pelas mãos de Tom e que constam
60 naquele livro são as mais valorizadas. Chegam a valer em dobro, na hora da venda.
61. Para além desse volume, a parceria com a EDUSP ainda rendeu o lançamento
de mais quatro valiosas obras produzidas por Thereza e Tom Maia: Paraty (1975), Vale do
Paraíba: velhas cidades (1977), Do Rio a Santos (1977) e Recife e Olinda (1978).
O acesso a esses livros, hoje, não é muito fácil. Todos esgotados, estão disponí-
veis em algumas bibliotecas públicas e preservados em acervos particulares. Quando são
comercializados, possuem um alto valor. Em agosto de 2011, o site de compras e leilões
Mercado Livre disponibilizava um volume de Paraty, lançado em 1975, para quem se inte-
ressasse. O preço: R$ 450,00.
***
Thereza e Tom conheceram até Juscelino Kubitschek, responsável pela constru-
ção de Brasília e autor do ousado projeto “Cinquenta anos em cinco”. O encontro entre
os três ocorreu em 1976.
Naquela ocasião, o historiador e jornalista Francisco de Assis Barbosa – também
membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) –, que tinha laços de amizade com o
casal e com o político, iria celebrar seu segundo casamento. Então, convidou Tom e sua
esposa para assistirem ao matrimônio, com o seguinte pedido: levar um exemplar do livro
Vale do Paraíba: velhas fazendas para entregar pessoalmente a JK, que seria padrinho do
casamento.
A celebração aconteceu na Fazenda Engenho D’Água, em Guaratinguetá, terra
natal do acadêmico. Tom foi acompanhado de Thereza, com o livro debaixo do braço,
especialmente dedicado ao ex-presidente, que, na mesma hora em que recebeu o agrado,
parou para apreciar o trabalho do desenhista.
Thereza e Tom
Como aquela fazenda está registrada no livro, a intenção de Francisco de Assis
Barbosa, na qualidade de amigo íntimo do político, era a de entregar a JK uma recordação
do local e da ocasião.
Mesmo com o movimento da festa e com a dificuldade de manter longas conver-
sas, Tom se recorda que Juscelino, ao ver os desenhos, chegou a fazer uma recomendação: 61
62. — Você precisa fazer um livro sobre Diamantina.
— Mas eu já fiz! — retrucou Tom.
Mineiro nascido naquela cidade, Juscelino logo imaginou sua terra sendo registra-
da pelos traços de Tom.
***
Thereza não tem dúvidas de que faz suas pesquisas muito mais por amor do que
por qualquer outro motivo. E, ao longo dos anos, sempre procurou dar valor ao que real-
mente precisava ser valorizado.
Tom também tem uma certeza: escolheu desenhar com bico de pena por inspira-
ção e por dom. E até hoje mostra o quão habilidoso é com sua técnica.
— Quanto mais eu desenho, melhor fica. Depois, eu fico bobo de ver o resultado.
Acho que não fui eu que fiz — afirma ele, em tom irônico.
Muitas vezes, seus desenhos são feitos, na rua, com lápis. Só depois, em casa, é
que ele faz o contorno e o acabamento. No estojo de couro caramelo que o acompanha,
há itens dos mais variados: lápis-borracha, lapiseiras, borracha comum e canetas especiais
para desenho. Quem aponta seus lápis é sempre a esposa.
As histórias por trás dos livros
62
63. Arquivo Pessoal
O 1º Simpósio de História do Vale do Paraíba foi realizado em Lorena, em 1972
65. Arquivo Pessoal
A reunião que oficializou o IEV foi realizada no Museu Frei Galvão, em 30 de junho de 1973
66. Arquivo Pessoal
No segundo casamento de Francisco de Assis Barbosa, em 1976, Juscelino Kubitschek foi
presenteado por Tom Maia, com um de seus livros
67. Reprodução
A Fazenda Engenho D’Água, onde Francisco de Assis Barbosa se casou pela segunda vez,
foi desenhada por Tom Maia
68. Arquivo Pessoal
Quando Vale do Paraíba: velhas fazendas foi lançado em São Paulo, Sérgio Buarque de Hollanda
se reuniu, mais uma vez, com os amigos Tom e Thereza
69. Arquivo Pessoal
No Itaguará Country Club, em 1977, José Luiz Pasin discursou
durante o lançamento do livro Vale do Paraíba: velhas cidades;
Guaratinguetá, 1977
72. Anna LAura Barreto
Thereza e Tom passam muitas tardes ao lado das filhas Regina, Maria Angélica e Maria Antônia
73. N uma tarde fria de setembro, sentados à
grande mesa de madeira, no centro da sala de jantar, Thereza e Tom desfrutam da compa-
nhia das filhas, que se lembram da juventude e das viagens ao lado da mãe historiadora e
do pai desenhista. Soltam risadas, contam peripécias e se emocionam. Tudo acompanha-
do de xícaras e xícaras de café.
O sol reluz o claro cabelo de Maria Antônia – discreta, mas sempre atenta –, en-
quanto o ambiente é tomado pela personalidade efusiva de Regina, que não mede elogios:
— Crescer com esses dois foi muito bom!
Aos poucos, vários momentos vão sendo lembrados e revelados.
Thereza e Tom
— Minha mãe nunca me deixava chegar tarde em casa. Eu podia fazer o que
quisesse, qualquer curso, qualquer viagem. Mas tinha de estar em casa até às vinte e uma
horas — conta Regina, na tentativa de explicar como Thereza era rígida com horários.
Nas viagens em família, motivadas pelo trabalho do casal, enquanto Tom ficava
sentado numa cadeira de praia, com seus papeis e seu bico de pena, os filhos passeavam 73
74. pelas redondezas. Muitas vezes, Thereza dava um gravador na mão de uma das meninas,
e as levava para ajudar no trabalho de campo.
Thereza e Tom levaram os filhos para conhecer várias partes do Brasil. Proporcio-
naram a eles, portanto, uma infância de muitas descobertas.
Em 1982, a família viajava pela Bahia. Saíram todos de Rio das Contas para
ir até Mucugê, localizada numa altitude de mil metros acima do nível do mar, com
clima serrano. Cidade pacata, detém até cinquenta e dois por cento da área do Parque
da Chapada Diamantina. Para chegar até lá, era previsto, em média, dois dias. No
meio do caminho, Tom avistou uma fazenda. Não resistiu, e parou para desenhá-la.
Atrasou a viagem, e fez com que ficassem no escuro, em meio a uma estrada de terra
deserta, sem ninguém para dar informações ou para ajudar. O solo estava tão seco,
que era possível o carro atolar na poeira. Não havia nem comida nem água para as
crianças, que, de tanta sede, tiveram que tomar da garrafa reservada para completar o
carburador do automóvel.
Sem saber onde estava e qual caminho tomar, Tom decidiu seguir as estrelas.
Pediu para João Carlos ir vigiando a que mais brilhava, enquanto calculava a sua direção.
Com o conhecimento de Tom e com a concentração do filho, a família conseguiu chegar
até o destino antes que o esperado.
Em Mucugê, encontraram uma pequena sociedade cheia de costumes e de
Mais produções, mais experiências
tradições, como o licor de jenipapo, a “jenipapança”, neologismo criado por Dias
Gomes, nascido na região, e apresentado a todo o país na novela “O Bem Amado”.
Na dramaturgia ou na vida real, a bebida ficou famosa pelo seu poder de tornar os
homens mais viris.
De lá, a família seguiu viagem para Xique-Xique de Andaraí. Todas essas cidade-
zinhas pertencem ao rico coração da Chapada Diamantina. Chegando a Xique-Xique, as
crianças se encantaram. As construções de toda a cidade eram de pedras. O lugar dava
a impressão de estar abandonado. Apenas um casal morava ali, em um antigo sobrado.
Havia um tanque d’água, também de pedra, mais parecido com uma caverna, que, quando
74 chovia, acumulava e filtrava a água, restrita no local.
75. Mas essa realidade nem sempre foi assim. Por conta da extração de pedras pre-
ciosas, houve tempos em que aquelas casas ostentavam muitos sinais de riqueza. Foram
abandonadas quando acabou a mineração.
— Em Xique-Xique e em Mucugê, as mulheres chegavam a ir à missa de chapéu
e luva, tamanho o luxo que tinham — explica Thereza.
Ao sul da Bahia, outra cidade curiosa visitada pela família foi Cairu. Lá, eles não
tinham onde se hospedar, pois não havia hotel. E também não havia onde comer. O padre
é que costumava receber os turistas em seu convento, mas justo naqueles dias estava fora,
tratando de problemas de saúde. A família ficou sem abrigo. Uma senhora, vendo a situação,
ofereceu-lhes o porão de sua casa e alguns colchões velhos. Assim, tiveram onde dormir,
durante os dois dias em que permaneceram no lugar, com direito a tomar banho frio de
balde – uma novidade para as crianças – e a boas comidas oferecidas pela vizinhança.
***
Tom voltou a exercer seu cargo de promotor público – do qual se afastou a pedido
da Embratur, em 1978 – a partir de 1980, permanecendo no posto até 1993, quando se
aposentou.
Já Thereza, por ser aluna destaque do curso de Estudos Sociais, assim que se for-
mou foi chamada para substituir a professora Lourdes Borges. Durante aproximadamente
cinco anos, lecionou na Fatea. Em 1973, ainda fez pós-graduação em Metodologia da Pes-
quisa Histórica, na Faculdade Salesiana de Lorena – atual Universidade Salesiana (Unisal)
–, para complementar o conhecimento em sua área de atuação.
O professor Francisco Sodero, que convive com Thereza há mais de três décadas,
Thereza e Tom
desde que foi seu professor na Fatea, reconhece, na ex-aluna, um dom natural para a pro-
fissão de historiadora.
— A Thereza se destacava como aluna. Ela tinha um diferencial, tanto que, no fi-
nal do curso, já havia publicado um livro — diz Sodero, referindo-se ao livro Paraty: religião
e folclore, que deu início a outras publicações. 75