Este documento discute as relações entre turismo e desenvolvimento local a partir da perspectiva da circulação humana e subjetividade. Apresenta como o turismo pode potencializar o desenvolvimento local ao mesmo tempo em que reconhece as características dos lugares, evitando sua subjugação ao mercado globalizado. Também reflete sobre como as práticas turísticas podem fortalecer as relações humanas e criar estratégias para resgatar a rua como locus de sociabilidade.
1. ANPPAS – 2004 TURISMO e DESENVOLVIMENTO LOCAL
Por Maudeth Py Braga
Cada Lugar é, a sua maneira, o mundo.(...) O Mundo,
todavia, é nosso estranho. (Santos, 2002, pp.314- 32).
O crescimento do setor terciário aliado a uma nova divisão social, técnica e
territorial do trabalho é uma tendência da economia mundial na contemporaneidade. É
nesta vertente que as atividades em turismo se inserem bem como ganham um novo
contorno. Nos anos 60, a indústria do lazer e turismo é incrementada acentuando algumas
variantes como o turismo cultural, ecoturismo etc. O Plano Nacional de Municipalização do
Turismo, nos anos 90, demarca as políticas que norteiam o setor, centrando foco nas ações
locais e envolvendo a reorganização de espaços, a questão ambiental e a gestão do
território.
Ganha realce a região turística correspondendo, segundo Rodrigues (2001), a uma
certa densidade de frequentação, serviços e equipamentos turísticos e com uma imagem que
lhe caracteriza. A noção de região é reconfigurada com outro nível de complexidade,
envolvendo a produção, a circulação e o consumo. A prevalência da circulação sobre a
produção é outra característica da atualidade seja de bens, serviços, pessoas. Milton Santos
(2002) alerta que hoje a mobilidade se tornou uma regra e se “tudo voa” um processo de
desterritorialização cada vez mais se intensifica. O lugar de consumidor seja em nome da
melhoria de serviços e produtos é uma condição quase que compulsória na malha
produtiva atual. O turismo pode recair neste jogo onde os “turistas-clientes” funcionam
como instrumental de uma cadeia produtiva. No entanto, Certeau (1994) nos possibilita
rever a questão do consumo por uma outra ótica que passa por um reinventar do cotidiano
refutando a idéia de passividade dos consumidores:
... A uma produção racionalizada, expansionista, barulhenta e espetacular,
corresponde outra produção qualificada de “ consumo “: esta é astuciosa, é
dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e
quase invisível, pois não se faz notar com recursos próprios mas nas
maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica
dominante ... (Certeau, 1994, p. 39)
2. O turismo implica na noção de distância que supõe a extensão que remete a
circulação. Em assim sendo é estreita a relação entre turismo e circulação humana. Neste
trabalho, adotaremos como âncora a circulação humana e subjetividade para discutir a
relação turismo e desenvolvimento local. É possível identificar uma proximidade da idéia
de circulação com o termo turismo que tem sua origem no radical tour do latim e no verbo
tornare significando giro e volta. Nesta linha de pensamento indagamos como a relação
turismo e desenvolvimento local pode ser entendida a partir das condições de turista-consumidor,
morador e nativo ?
Tal questionamento remete às categorias de espaço, lugar e não-lugar. Ficamos com
a assertiva de Certeau (1994) que espaço é lugar praticado, ou seja, são as ações humanas
que imprimem vida aos lugares. Nesta mesma linha estamos com Milton Santos ao pensar
o espaço como:
... conjunto de fixos e fluxos. Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem
ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as
condições ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar. ...
(Santos, 2002, p..61)
Com esta leitura de espaço, o turismo se afirma como fenômeno estruturante de
territorialidades, prática social e econômica que produz modos de vida dependendo da
intensidade e forma como se reorganiza, se recria. Tal posicionamento enfatiza a dimensão
cultural das atividades turísticas percebendo que a cultura, enquanto um recriar, é uma
forma de intermediação com o Universo. Possivelmente é por isto que se denomina “Alma
de um Lugar”: os costumes, instituições, arquitetura, configuração territorial e as
multiplicidades de formas e tempos na e da paisagem. Quais são os sentidos da paisagem
por um passante, transeunte, viajante? Que sentidos revolvem as linhas divisórias entre a
rotina e a diferença? Há um slogan que diz que: “Uma cidade será boa para o turista se ela
for boa para seus moradores”.
O turista alem de buscar um meio diferente do seu, quase sempre é atraído pela
imagem-imã do lugar. Esta imagem-imã torna as regiões litorâneas, especialmente, com a
mesma cara, serializadas em cartões-postais incrustando a naturalização da natureza como
3. mercadoria. Estes traços diferenciam as condições de morador, turista e nativo retratando
modos de pertencer, direitos políticos e os direitos de intervir na vida política do Lugar. O
valor do espaço, de acordo com Milton Santos (2002), depende das ações que ele é
susceptível de acolher. O que dizer então, das barreiras sociais e econômicas de acesso as
paisagens impostas a moradores e turistas? Há uma relação aí: acessibilidade e cidadania
que mostra a conjugalidade das práticas de turismo e efeitos que produzem nos modos de
viver. Da mesma maneira, as práticas de turismo são redefinidas pelas especificidades dos
processos sócio-culturais da localidade. Há uma grande preocupação em se repensar a
gestão contemporânea a partir dos referenciais locais e do funcionamento em rede. Tal
proposta significa revisitar as fronteiras local-global e a noção de Lugar.
Acompanhamos, mais uma vez, Milton Santos por optar pela idéia de uma
glocalidade, por acentuar os atravessamentos de forças num plano macro na cotidianeidade
sinalizando uma rede transfronteiriça dos pólos local-global. Ao mesmo tempo aposta na
Força do Lugar como contraponto aos moldes invasores de modelos globalizantes. No
âmbito do turismo, por exemplo, alguns cenários passam ter a “mesma cara” pelo
esquadrinhamento, pela reprodução de formas e modelos. Ou ainda, se as ações visando ao
“desenvolvimento” se restringem a áreas privilegiadas pelas atividades turísticas em
detrimento de outras áreas ocupadas pela população residente, acabam resultando numa
relação aparente, falaciosa, entre turismo e desenvolvimento local.
O turismo como desafio ao desenvolvimento contempla o Lugar, ou melhor, ressalta
“a vocação dos Lugares”. Neste sentido estamos tomando o lugar enquanto lugar
geográfico – é o nome de Lugar - identitário, que remete a um significado e a um
significante. Já nos referimos à imagem-imã das cidades que circulam pelo mundo.
Vivemos num mundo das imagens, ou melhor, da proliferação incessante de imagens. As
cidades, os balneários, museus, cidades são “visitadas” virtualmente num site ou nas
imagens da televisão, cinema, revistas, propagandas que tornam o mundo paradoxalmente
“disponível” e nem sempre acessível, no sentido da experimentação, do estar presente, do
vivenciar, do sentir, do acontecer. O Lugar é o acontecer solidário da vida cotidiana e cada
Lugar se define pelas existências corpórea e relacional (Santos, 2002, p.256).
4. Ao discutir o Lugar este autor introduz outro par: a tecnoesfera e a psicoesfera,
conjunto indissociável que redefinem os espaços da globalização:
A psicoesfera, reino das idéias, crenças, paixões e lugar da produção de um
sentido, também faz parte desse meio ambiente, desse entorno da vida, fornecendo
regras à racionalidade ou estimulando o imaginário. Tanto a tecnoesfera (mundo
dos objetos) quanto a psicoesfera (esfera da ação) são locais, mas constituem o
produto de uma sociedade bem mais ampla que o lugar. Sua inspiração e suas leis
têm dimensões mais amplas e mais complexas.”(Santos, 2002, p.256)”.
O Turismo então é um campo relacional caracterizado pela passagem para o turista
e pela permanência para o residente. Na categoria residente-morador podemos aí ter ainda
desdobramentos: os que nasceram no Lugar e os que vieram para o Lugar. A condição de
turista pressupõe a condição de residente: há um lugar de retorno.
“Mas num mundo do movimento, a realidade e a noção de residência do homem
(...) não se esvaem. O homem mora talvez menos, ou mora muito menos tempo, mas
ele mora: mesmo que ele seja desempregado ou migrante. A “residência”, o lugar
de trabalho, por mais breve que sejam, são quadros de vida que têm peso na
produção do homem.” (Santos, 2002, p.328).
Nosso recorte vai nessa direção de análise dos espaços e as relações neles
efetivadas, reconfigurando lugares. O espaço vital depende do sentido que atribuímos ao
entorno. No campo das relações as significações ganham mais corpo a medida em que o
sentido é compartilhado por mais atores. Quanto mais compartilhada uma rede de
sociabilidade, de conversações, mais a cultura ganha espaço de recriação. Preocupado com
os efeitos dos espaços eminentemente relacionais, transitórios e não “identitários”,
marcados pela efemeridade, Augé cunha o termo Não-Lugares:
... Vê-se bem que por “ não-lugar “ designamos duas realidades
complementares porém, distintas: espaços constituídos em relação a certos
fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos
mantém com esses espaços... (Augé, 1994, p. 87).
5. Os Lugares, no sentido das posições ocupadas, de um locus, são
relativizados já que o autor considera que a dimensão do não-lugar está contida em
qualquer lugar que seja. Alem disso, neste pensar um residente pode se sentir
circunstancialmente um estrangeiro em sua própria terra, no seu próprio território. Daí a
importância dos modos de pertencimento, de uma topofilia. Ocupar temporariamente a
posição de turista pode reavaliar a condição de residente, pode proporcionar outras leituras
de um cotidiano fazendo com que muitos retornem para seus próprios lugares “olhando” as
coisas como se fosse uma primeira vez. Neste viés da subjetividade e circulação humana, o
turismo enquanto potencializador do desenvolvimento local torna-se uma grande
possibilidade de investigação no campo das ciências humanas e sociais. A reavaliação da
localidade como referente é imperiosa no sentido de pensar que nela se superpõe
subsistemas, ações cooperativas diversas num campo plural de forças.
É preciso reconhecer o turismo em sua dimensão ética e perceber como faces de um
mesmo processo: as condições de turista e morador, a degradação social e a destruição
ambiental, a produção, a circulação e o consumo. Se a encomenda acadêmica encomenda
o olhar, vamos tomar o turismo enquanto objeto histórico, enquanto instituição e nos
posicionar enquanto agentes que consideram: que as políticas de turismo devem evitar
subjugação ao mercado globalizado reconhecendo e dando lugar às características dos
Lugares tornando o turismo como potencializador da vida; as práticas em turismo podem
alavancar o desenvolvimento no plano econômico e fortalecer as relações humanas e criar
estratégias de resgate da rua como locus de sociabilidade e não de sectarização pelo
esquadrinhamento de espaços demarcando territórios (ina) acessíveis.
Esperamos desdobrar a reflexão, aqui iniciada, em outros estudos de caráter
exploratório tomando uma região turística como recorte territorial e como espaço vivido,
contracenado perspectivas nos âmbitos do cotidiano e do turismo
6. BIBLIOGRAFIA
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Motoristas, cobradores e passageiros de ônibus.
Dissertação de mestrado. UERJ -Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, 1996.
CERTEAU, M. Invenção do Cotidiano. Petrópolis, RJ, Vozes, 1994.
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Turismo: como aprender, como ensinar. Ed. Senac, São Paulo, 2001.
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