O documento é um relato autobiográfico de uma mulher comum que fala sobre sua vida, crenças e relacionamento com Deus. Ela descreve que não passou por grandes tragédias, prefere a humildade e tem medo da velhice. Acredita que Deus é mais bonito quando visto de perto, em sua fragilidade e intimidade.
2. Não, não sou uma
sobrevivente da Guerra de
Canudos. Também não
sofro na carne os estigmas
de Cristo. Não tenho
notícias de que eu
descenda de algum santo,
nem tampouco tenho freira
ou padre na família. Sou
mulher comum, de estirpe
duvidosa, afeita às
estranhezas diárias e
avessa aos sabores
quaresmais.
3. Sou mulher de poucas
palavras. Por vezes tenho
medo, por vezes tenho
coragem. Não gosto dos
extremos. Prefiro a
humildade das pequenas
medidas. Não coleciono
selos, nem tenho segredo
escondidos no armário. Não
reservei manias para
exercitar na minha velhice.
Já chega o que vem com ela
sem que eu peça. Ser velha é
o mesmo que ser criança.
4. Ando necessitando as
mesmas coisas que os
recém-nascidos. Só não
tenho coragem de pedir.
Em noites de chuva forte
acendo uma vela e invoco
os santos, como no
passado: São Jerônimo,
Santa Bárbara! Os santos
diminuem o medo. Se é que
para o medo possa existir
alguma solução.
5. Em dias de calor sinto ainda
mais os desconfortos da idade.
O tempo avança os territórios
da felicidade, transmuda a
paisagem, reconfigura os
espaços, descolore a tela. Vejo
da minha janela a constante
atuação da ferrugem sobre as
estruturas que sustentam os
meus significados. É a vida se
desfazendo aos poucos, em
grãos, centímetros, partículas
miúdas, mas constantemente.
6. Os ipês com sua coloração
rosada já anunciam mudanças.
A vida não sabe esperar.
Florescer no inverno é coisa de
quem armazena diferenças
estranhas. Rosa é um homem
memorável. Tivesse eu uma
ousadia sobrada da juventude
e já lhe abriria as portas de
minha casa para que entrasse
com suas duas trouxas de
roupas e seu violão colado ao
peito.
7. Eu só sei pensar alto. Viver
não. A altura da vida não
corresponde à altura do
pensamento. Pensei muito
mais do que vivi. Quis muito
mais do que realizei. Vivi
baixo, pensei alto. Não
importa. O que quero é este
amanhecer cheio de
graciosidade, quero este ipê
florido em tempos de secura.
Quero a vida generosa neste
espaço onde quase nada me
desperta o sorriso.
8. Experimento o silêncio de Deus
e só assim me convenço de sua
existência. Gosto de Deus é
por causa de sua fraqueza. Eu
o reverencio é por causa de
sua estranha forma de
carecer, de necessitar, de ficar
pequeno.
Andei pelos pastos e Ele andou
comigo. Na hora da sede, a
água dividida. Na hora do
almoço, a marmita repartida.
Mulher e Deus, sentados na
mesma planície, sob as
agruras do mesmo cansaço.
9. Deus é bonito quando visto
de perto. A glória ofusca a
revelação. O trono, a
exaltação, o brilho das
representações velam sua
verdadeira beleza. Ele é
bonito é no avesso da sua
divindade, lá na intimidade,
quando entra na cozinha da
minha casa, aconchega-se
aos pés do fogão à lenha e
reclama das dores nas
pernas.
10. Texto extraído do livro “Mulheres de aço e de flores”
de Pe. Fábio de Melo
Música:
Formatação: Vera Lúcia de Siqueira
verinhaescorpios@gmail.com
Receba belos slides clicando:
http://br.groups.yahoo.com/group/castelodossonhos
Sensual
12.06.2013