O documento descreve o projeto "Panacéia Viajante - Circulação do Espetáculo Dorotéia", contemplado pelo programa BNB de Cultura e BNDES. O projeto levou a peça Dorotéia, do Grupo de Teatro Panacéia Delirante, para as cidades de Valença e Santo Amaro, além de oferecer oficinas e bate-papos. O texto detalha a adaptação da peça para os novos espaços, a escolha da equipe e os desafios enfrentados.
Cá entre nós conversações sobre desejo e desvio em dorotéia (por milena flick)
Botando o Pé na Estrada - Projeto de Circulação do Grupo Panacéia Delirante
1. PROGRAMA BNB DE CULTURA – EDIÇÃO 2011 –
PARCERIA BNDES
PROJETO: PANACÉIA VIAJANTE, CIRCULAÇÃO DO ESPETÁCULO
DOROTÉIA.
JANE SANTA CRUZ
BOTANDO O PÉ NA ESTRADA
Artigo apresentado ao Programa BNB
(Banco do Nordeste) de Cultura e ao
BNDES (Banco Nacional de
Desenvolvimento), resultante do
projeto Panacéia Viajante, Circulação
do Espetáculo Dorotéia.
Salvador
2011
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2. BOTANDO O PÉ NA ESTRADA (artigo por Jane Santa Cruz)
RESUMO
Panacéia Viajante- Circulação do Espetáculo Dorotéia é o primeiro projeto de
circulação do Grupo de Teatro Panacéia Delirante. Contemplado pelo programa
BNB de Cultura – Edição 2011/ parceria BNDES, foi uma grande escola. Nele
desenvolvemos habilidades que só a prática possibilita. Habilidades que não se
apreende em academia ou em curso de teatro. Colocar o “pé na estrada” elevou o
nível de entendimento da responsabilidade artística do grupo e o interesse pela
busca de um diálogo mais claro e intimista com o público.
Durante as próximas linhas serão compartilhados os motivos que estimularam o
grupo e os resultados alcançados com a experiência do projeto. Observando os
emergentes e registrando os impactos que o projeto ocasionou em sua gerencia de
grupo, na relação com outros profissionais e por fim, com o público.
Palavras-chave: Motivações. Pré-Produção. Projeto. Equipe Artística. Execução.
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3. BOTANDO O PÉ NA ESTRADA
“Afina tua arte.”
Jerzy Grotowski
No início do segundo semestre de 2010 as atrizes do grupo Panacéia Delirante
finalizavam, sob orientação da professora Hebe Alves, a pesquisa intitulada Da
Negação do Amor: Um Estudo da Anatomia Emocional das Personagens da
peça Dorotéia de Nelson Rodrigues, desenvolvida no âmbito do Programa de
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) a mais de dois anos.
O resultado principal dessa investigação previa, também sob direção da professora,
a montagem do espetáculo Dorotéia, do autor brasileiro Nelson Rodrigues.
O grupo, traçando um caminho cada vez mais consistente em sua investigação do
comportamento feminino em cena, estréia em Salvador, no mês de agosto, no
Espaço Cultural da Barroquinha. Entretanto, durante o percurso dessa mesma
pesquisa, surgiram novas vontades, novos desejos que apontavam novos caminhos
para o espetáculo. As atrizes agora sentiam a necessidade de compartilhar a
pesquisa, colocando em prática a experiência adquirida durante esse caminho. O
Panacéia Delirante queria colocar o “pé na estrada”, mais que isso, o grupo se
propunha a aplicar os logros e reflexões experimentados com o desenvolvimento do
projeto compartilhando com outras pessoas, porém de forma mais pessoal, mais
íntima.
Nesse mesmo período, o Panacéia é comunicado sobre uma capacitação que o
Banco estava oferecendo para a elaboração do Edital BNB de Cultura, parceria
BNDES. Uma nova etapa do projeto se inicia com a elaboração da proposta de
circulação. O grupo passou pela capacitação e decidiu que aquela era a
oportunidade de compartilhar sua pesquisa.
DECIDINDO QUAL RUMO SEGUIR
O Núcleo Gestor de Produção, composto pelas atrizes do grupo Camila Grilera,
Jane Santa Cruz, Lara Couto, Lílith Marques e Milena Flck, pela diretora e
orientadora Hebe Alves e por Lucas Modesto que além de assistente de direção,
assina as funções de sonoplasta e designer gráfico do espetáculo, se constituiu com
o intuito de dar embasamento à elaboração do Conteúdo Programático do Panacéia
Viajante. Esse Núcleo foi a voz decisiva do processo. Afinado, partiu para
desenvolver a tríade que conduz o projeto: Espetáculo Dorotéia, Oficina Corpo
Delirante, Discurso Atuante e Bate-papo Cá Entre Nós. Foi decidido por fim, que
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4. seria confeccionada uma cartilha, para ampliar o alcance do efeito produzido pelo
contato físico por meio dessas atividades que propiciassem a difusão das
informações para um círculo maior de pessoas.
ADAPTANDO DOROTÉIA NOS ESPAÇOS
Em linhas gerais, Dorotéia se passa dentro de uma casa habitada por mulheres. As
irmãs Flávia, Maura, Carmelita e Das Dores, (filha natimorta de Flávia) vivem em
estado de clausura. Essas mulheres são acompanhadas por uma maldição familiar.
Na noite de núpcias devem sentir a náusea, uma espécie de enjôo nupcial. E nunca,
jamais, devem ver homem. Essa maldição-tradição acompanha a família por
gerações inteiras desde que “sua avó amou um homem e se casou com outro”.
A história se passa no dia em que Das Dores espera pela chegada de seu noivo,
Eusébio da Abadia, que será trazido por D. Assunta da Abadia, sua mãe. Assim,
Das Dores, enfim poderá sentir a náusea e morrer em paz e reafirmar o pacto
familiar. Porém, para a surpresa de todas, ao tocar a companhia da porta, são
surpreendidas com a presença de Dorotéia, uma prima que não seguia os costumes
familiares.
Dorotéia é o contrário de tudo que a tradição da família defende. É linda e para a
vergonha das primas, trabalha como profissional do sexo. Dorotéia tenta voltar ao
seio familiar e apela às suas primas. Mas para que seja aceita terá que se
desvincular de tudo que sua linda imagem representa para essas mulheres cuja
feiúra é exaltada como símbolo de virtude.
Dorotéia é um espetáculo adaptável. Na concepção, Hebe opta pelo palco, seminu.
O preenchimento do tablado fica a cargo das atrizes, que, trocam de papéis, em um
jogo caleidoscópico. Além disso, o palco recebe a simbologia de quatro acessórios:
O jarro, o aviso, representa a força masculina. Funciona como um alerta para que
essas mulheres se protejam da materialidade do sexo oposto, da figura do homem
que é tão execrada pela família; O véu é como uma placenta que envolve a
personagem natimorta Das Dores; O Leque, proposto na encenação, é acionado
com um movimento de mãos e utilizado sempre que uma atmosfera ou uma
movimentação de perigo é manifestada. E um par de all stars que na encenação
representa o personagem Eusébio, noivo de Das Dores.
Cinco atrizes, quatro elementos cênicos. A grande preocupação era a iluminação. A
luz do espetáculo, diferente dos acessórios, determina e sugere complexidade de
artifícios, pois junto às atrizes, a iluminação é o que delimita as atmosferas da cena.
Sabia-se que seriam adaptações difíceis.
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5. Comungando com um dos objetivos do BNB e BNDES em contemplar regiões que
não tem a facilidade do acesso a arte, bem como da carência que sofre a maioria
dos espaços culturais do interior da Bahia, foram escolhidas as cidades de Valença
e Jequié, que depois foi substituída por Santo Amaro, por serem também cidades
que comportam aparatos técnicos que contemplam necessidades básicas que da
encenação.
OFICINAS: CORPO DELIRANTE, DISCURSO ATUANTE
Durante as reuniões do projeto, foram levantadas múltiplas possibilidades de
ementas para as oficinas. Nesse processo de definição, é natural que haja choques
de ideias, causando impasses processuais. Contudo o próprio processo e as
motivações que mobilizam o grupo resolvem.
O grupo já tinha definido o público-alvo: mulheres com ou sem experiência teatral
maiores de 14 anos. Faltava definir ementa e conteúdo programático das aulas.
Essa decisão veio de forma natural, depois que as cinco atrizes viajaram para Lima
no Peru onde conheceram e conviveram com as atrizes do Grupo de Teatro
Yuyachkani, algumas fundadoras do Proyecto Madalena, composto por integrantes
oriundos de vários países que desenvolve trabalho acerca de questões relacionadas
a mulher. O Panacéia, encantado e totalmente identificado com o projeto, adquiriu
um livro onde as atrizes discorrem sobre seus anos de experiência de trabalho com
as mulheres das comunidades. O trabalho das atrizes Yuyas, como são
carinhosamente conhecidas, trata de delicadeza, de auto-estima. Depois de estudar
o manual e de aplicar no próprio grupo os exercícios sugeridos, o Panacéia
encontrou por meio dessa delicadeza, um caminho para tratar de questões cuja
abordagem exige atenção e cuidado. Assim, Nascia o Corpo Delirante, Discurso
Atuante.
BATE-PAPO CÁ ENTRE NÓS/ CARTILHA: CÁ ENTRE NÓS- UMA CARTILHA
INFORMATIVA PARA A MULHER
É do perfil do Panacéia Delirante, o pensar sobre o seu fazer artístico. O grupo
compreende a importância da escuta, da fala e do compartilhar em sua formação
artística. Em todas havia a necessidade de um espaço de diálogo com o público.
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6. Geralmente esses espaços eram coordenados pelo próprio grupo ou por Hebe
Alves. Entretanto, para o Panacéia Viajante o grupo e Hebe resolveram verticalizar a
discussão sobre os temas levantados pelo espetáculo.
Durante o processo de montagem do espetáculo alguns profissionais deram sua
colaboração, mas uma profissional em especial teve presença fundamental na
condução do bate-papo que aconteceria ao final dos espetáculos de cada
temporada nos locais visitados, contribuindo para o entendimento de aspectos
relacionados à sexualidade feminina: a educadora sexual Maria Paquelet..
O bate-papo intitulado Cá Entre Nós, conduzido por Paquelet, discorria sobre temas
relacionados à saúde da mulher, a educação sexual, higiene, direitos, entre outros.
A condução do Cá Entre Nós sempre foi uma preocupação para a equipe que não
queria simplesmente tocar superficialmente nos temas gerados pelo espetáculo. É
importante ressaltar que apesar dos avanços em relação à tecnologia, da facilidade
que as pessoas têm ao acesso as informações, o projeto se insere na rotina de
pessoas que ainda vivem em tradições que acreditam que o homem tem direitos sob
as mulheres e contar com a presença profissional de Maria Paquelet foi como
interagir com uma interessante fusão entre conteúdo e delicadeza.
APAIXONANDO A EQUIPE
A espinha dorsal do projeto Panacéia Viajante - Circulação do Espetáculo Dorotéia
foi concebida pelo Núcleo Gestor. Estávamos apaixonados. Faltava-nos, contudo,
conquistar e apaixonar os demais colaboradores técnicos.
Partimos para definição da equipe a começar pela produção executiva seguido da
sonoplastia, iluminação, ação pedagógica (Cá Entre Nós) e registro.
Para a produção executiva convidamos a produtora Elaine Pinho que acompanha o
trabalho do grupo desde a primeira temporada do espetáculo Dorotéia, em agosto
de 2010. A produção executiva estava encarregada pelo contato com as cidades,
pelo acompanhamento da produção do material gráfico, relação com os apoiadores,
com o teatro, hotel, transporte de equipe e divulgação dos eventos propostos pelo
projeto. Porém, dentro de cada cidade, a equipe contou com o trabalho do assistente
de produção local Claudio Damasceno.
Lucas Modesto foi outro nome importante para a realização do Panacéia Viajante.
Braço direito e esquerdo da diretora Hebe Alves, o Panacéia Delirante o considera
como parte do grupo. É o único homem que acompanha quase que diariamente a
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7. equipe. Ele está totalmente inserido no processo de trabalho do grupo. Além de
fazer parte do Núcleo Gestor e do trabalho com a direção, Lucas assina toda arte
gráfica de Dorotéia. Também é o profissional responsável pela sonoplastia de
Dorotéia. A trilha assinada pelo diretor musical Luciano Bahia e Hebe Alves age,
assim como a luz, quase que como outro personagem em meio a dinâmica do jogo
cênico.
Para a iluminação, quesito que tanto preocupou a direção e as atrizes, o projeto
contou com dois profissionais de alto nível, Eliedson Vicente (Elinho), em Valença e
Fernanda Paquelet em Santo Amaro da Purificação, essa ultima também
responsável pela concepção geral da luz do espetáculo desde sua estréia.
Esses profissionais tiveram como desafio adaptar a luz do espetáculo em espaços
carentes de um bom equipamento de luz, driblando as dificuldades a fim de garantir
a aplicabilidade de recursos exigidos pela concepção.
SOB REGISTRO
No registro de todo esse processo, contamos com a parceria do fotógrafo José
Cabaleiro, profissional que também acompanha o espetáculo desde sua estréia.
Além de fazer o registro fotográfico de todas as cidades, José Cabaleiro levou para
as mesmas, uma exposição de fotos do espetáculo Dorotéia. As fotografias foram
tiradas na segunda temporada em Salvador que aconteceu em janeiro no Teatro
Espaço Xisto Bahia. Vemos no trabalho de registro um meio de reforçar através de
imagens, o que é defendido nas ações do projeto.
DIREÇÃO
Hebe Alves foi como uma bússola no projeto. Os direcionamentos dela atestaram o
porquê de sua importância na formação de novos artistas. Não foram poucas as
provas que a equipe teve que superar. Entretanto, sempre encontramos na
condução de Hebe, os caminhos mais apropriados a seguir.
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8. O PÚBLICO
Muitos aspectos fazem desse um projeto de sucesso. Mas o principal deles talvez
venha por intermédio da percepção da riqueza que foi conviver com pessoas que,
apesar de viverem no mesmo estado do grupo, vivenciam culturas e por vezes
tradições diferenciadas. O projeto tem como objetivo alcançar a compreensão, ou ao
menos, estimular a reflexão do público em relação às questões ligadas ao feminino.
Nelson Rodrigues, conhecido também como Anjo Pornográfico, expõe em seus
textos a putefração de uma sociedade ancorada em costumes que beneficiam a
ideia de supremacia do homem nas relações sociais. Ele se mantém atual; assim,
decidir levar a montagem de um texto seu para o interior compreendia arcar com as
conseqüências advindas desta decisão.
Sabíamos que poderia ser difícil conquistar a confiança das mulheres inscritas nas
oficinas. Precisávamos dialogar e fomos surpreendidas com os pedidos de ajuda,
com histórias de superação e necessidade de valorização. O público das cidades
das quais passamos manifestou diversas vezes o seu pedido de atenção. Atenção
que sugere desde mais diálogos sobre os temas que o projeto aborda e que foram
identificadas por elas em seus cotidiano, a ações que tratem da necessidade de
valorização e muitas vezes desenvolvimento de seu potencialidades.
COMUNICAÇÃO
A Comunicação é a última atividade proposta pelo projeto Panacéia Viajante. É a
consolidação do trabalho pelo projeto durante todo o ano de 2011. Na Comunicação
acontece a explanação de tudo que foi pensado para o projeto: os riscos, as metas
atingidas, os impactos causados pelo projeto. É um retorno que o grupo
soteropolitano dá a sua cidade dessa experiência. Para tal, o grupo volta para onde
toda essa história começou, a Universidade Feral da Bahia.
DESENVOLVENDO NOVAS HABILIDADES
O Edital BNB de Cultura parceria BNDES abrange todas as áreas artísticas com
braço também nas artes integradas. Tem como um dos objetivos contemplar e
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9. difundir produtos artísticos nas cidades que tem o IDH (Índice de Desenvolvimento
Humano) na média ou abaixo da média.
Para o Panacéia Delirante possibilitar o acesso a arte é uma missão. Projetamos
nossos projetos pensando no contato com o público como um todo. A experiência
com o Panacéia Viajante - Circulação do espetáculo Dorotéia, nos fez afirmar
essa responsabilidade.
Viajar com um espetáculo exige uma atenção mais trabalhada. Demanda saber lidar
com os emergentes que vão ocorrer durante o percurso e transformar as
dificuldades em oportunidade de expansão e crescimento.
Trabalhar com a equipe do projeto contribuiu e muito para o amadurecimento do
Grupo Panacéia Delirante, que seguramente estará mais apoiado nos princípios
defendidos por nos desde nossa formação. Tanto no trabalho com o jogo cênico,
bem como na relação com os profissionais e com o público elevaram e solidificaram
os princípios que parte do respeito. Respeito à obra, respeito aos profissionais
envolvidos, respeito ao público, respeito ao teatro. Oficio que Camila Guilera, Jane
Santa Cruz, Lara Couto e Lílith Marques, escolheram, ou foram escolhidas, para
dialogar e contribuir para o desenvolvimento da sociedade.
REFERÊNCIA
Cadernos de registros do Laboratório Abierto- Encuentro Pedagogico com el Grupo
de Teatro Yuyachani, 2011, Lima- Peru.
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