Comunicação no VI Congresso da ANPTECRE, na Sessão Temática 11: Religião, consciência planetária e ecoteologia. Visão crítica sobre a tecnociência, a partir do pensamento de Jorge Riechmann. Breve referência à Laudato Si.
1. ANAIS do VI Congresso da ANPTECRE ISSN 2175-9685
VISÃO DA ECOTEOLOGIA, A PARTIR DE JORGE
Afonso Tadeu Murad Doutor FAJE
Resumo: A ecoteologia tem se confrontado cada vez mais com o desafio da
tecnociência. De um lado, essa possibilitou grandes conquistas para a huma-
nidade. De outro, constituiu-se com uma ideologia autojustificadora, que em
nome do antropocentrismo, incrementa processos destrutivos nos sistemas de
vida do planeta. O objetivo de nosso trabalho é descortinar uma visão crítica
da tecnociência, que sirva para estabelecer um diálogo produtivo com a eco-
teologia. Na primeira parte, apresentaremos a análise do filósofo espanhol
Jorge Riechmann, a respeito da tecnociência e seu impacto na fragilização do
mundo. Desenvolveremos os seguintes aspectos: (1) Por que á-
-se
que a biosfera é uma entidade finita, mortal, vulnerável e ameaçada pelo ex-
cesso de intervenção humana. Vivemos na época de crise ecológica global,
pois ela afeta a biosfera inteira, alcançando as dimensões do planeta. A nova
vulnerabilidade do mundo nos interpela dramaticamente como agentes morais
e cidadãos de uma comunidade política. Então, a ecologia deve ser concebida
como pensamento dos limites. A tecnociência modifica não somente a nature-
za, mas também o mundo social. Acontece uma verdadeira revolução técnico-
científica, um novo modo de produção do conhecimento e se modifica a estru-
tura da atividade científica. Trata-se de uma crescente instrumentalização do
conhecimento científico-tecnológico, para outras finalidades, além dele mes-
mo. A tecnociência se tornou uma poderosa ideologia na sociedade de merca-
do. A título de conclusão, confrontaremos brevemente o pensamento de
Riechmann com a reflexão do Papa Francisco n
compreende: (1) criatividade e poder da tecnociência, (2) Riscos do paradig-
ma tecnocrático. Com isso, esperamos estimular o crescente diálogo da ecote-
ologia com as ciências humanas, em vista de uma sociedade justa e sustentá-
ve
tema, ainda em desenvolvimento.
Palavras-chave: Tecnociência; Laudato Si; Mundo vulnerável; Ecoteologia;
Riechmann.
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INTRODUÇÃO
Muitos autores contemporâneos, de várias áreas do conhecimento, re-
fletem sobre a . Escolhermos um deles, que tem sido objeto de
nossa pesquisa em ecoteologia. Trata-se de Jorge Riechmann, professor de
Filosofia Moral na Universidade de Barcelona, poeta e literato, pesquisador em
questões ecológico-sociais e colaborador em movimentos de cidadania no seu
país. O autor, praticamente desconhecido no Brasil, tem uma ampla e comple-
n-
ção" (RIECHMANN, 2004, 2005a, 2005b).
O conjunto da obra de Riechmann fascina seus leitores/as. O autor
transita por várias disciplinas e áreas de estudo, com precisão. Recorre a mui-
tos pesquisadores, o que torna seus livros uns verdadeiros compêndios. Com-
bina conceitos com analogias criativas. Oferece sínteses e chaves de leitura
imprescindíveis para compreender o mundo contemporâneo, no horizonte
ecossocial. E, como ele mesmo diz, estimula a fazer a transição para socieda-
des sustentáveis.
Essa comunicação apresentará alguns pontos do pensamento de
Riechmann acerca dos desafios da tecnociência, em vista de edificar um mun-
aberta, delinearemos os pontos de contato com a ecoteologia, a partir do
cap.III , do Papa Francisco.
Propaga-se que a tecnociência tornou o ser humano mais forte e capaz
de enfrentar os desafios ecológicos e sociais. Sem negar todas suas inestimá-
veis contribuições, Riechmann enfatiza outro lado da questão. Para ele, a tec-
nociência se transformou numa ideologia perigosa, auto-justificadora, sem
controle social, destruidora do planeta.
A biosfera aparece então como uma entidade finita, extremamente
, ameaçada pelo excesso de intervenção humana. Vivemos na
, pois ela afeta a biosfera inteira, alcançando as dimen-
sões do planeta. A nova vulnerabilidade do mundo nos interpela dramatica-
mente como agentes morais e cidadãos de uma comunidade política (RIECH-
MANN, 2005a, p.18.98.135). Nosso tempo se caracteriza como
, pois as consequências do que fazemos ou deixamos de fazer
chegam cada vez mais longe no espaço e no tempo.
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A humanidade hoje influi decisivamente em catástrofes antes tidas
como naturais, como é o caso dos furacões. Esses se tornam mais agressivos,
devido às mudanças climáticas. Além disso, a desigualdade social, especial-
mente o abismo Norte- n-
dissociavelmente com os problemas ecológicos. Nós nos encontramos hoje
numa situação de gravidade extrema. Há uma exponencial, da-
do o aumento crescente do fluxo de energia nos processos de produção e
consumo. O ser humano está alterando a biosfera e os grandes ciclos bioquí-
micos e fisio-geológicos do planeta (RIECHMANN, 2005a, p.41-44,137).
Então, a ecologia deve ser concebida como .
Existem tecnologias tão poderosas que se classificam como intrinsecamente
perigosas, por sua desproporção com a fragilidade, falibilidade e vulnerabilida-
de do humano. Aliás, as tecnologias não são nem independentes do sistema
de valores, nem inevitáveis (RIECHMANN, 2005a, p. 51).
Cada vez mais a ciência se torna tecnológica. Por este motivo, usa-se o
i-
dade teorético-contemplativa pura e desinteressada. A tecnociência leva em
suas entranhas a modificação do mundo: é sempre operatividade, produtivi-
dade e transformação do dado. Por isso, os problemas éticos relacionados
com ela não tem a ver somente com sua aplicação, e sim com a própria base
da investigação.
A tecnociência modifica não somente a natureza, mas também
. Realiza-se um novo modo de produção do conhecimento e se modi-
fica a estrutura da atividade científica. Uma revolução praxeológica! Há uma
crescente instrumentalização do conhecimento científico-tecnológico, para ou-
tras finalidades, além dele mesmo (RIECHMANN, 2005a, p. 411-412).
O capitalismo tem a tendência estrutural à mercantilização total; a que
o valor monetário suplante a todos os demais valores; a destruir as comunida-
des sociopolíticas que dão sentido à vida moral, ao esvaziamento das bases
biofísicas e socioculturais das sociedades humanas. A produção capitalista,
inerentemente expansiva, implica crescente extração de recursos e emissão de
contaminantes. Um subsistema econômico em expansão dentro de uma bios-
fera finita produz um conflito ecológico inevitável (RIECHMANN, 2005a, p.53).
As sociedades industrializadas, marcadas pelas engrenagens da produ-
ção capitalista que tendem a mercantilizar tudo, extrapolam os limites ecológi-
cos e sociais. Apropriam-se da totalidade do espaço ecológico do planeta e
tendem a não assumir a responsabilidade por seus atos, pela via da
. Então essa se torna uma questão vital para a
ética ecológica (RIECHMANN, 2005a, p.54.179).
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PODER CRESCENTE DA TECNOSFERA
A partir de COMMONER (1992), considera-se se que os humanos vive-
mos em três mundos: (a) o natural (biosfera ou ecosfera); (b) a tecnosfera,
um sistema de estruturas artificiais inserido na ecosfera; (c) a socioesfera: re-
de de relações sociais, assim como as entidades e instituições (políticas, eco-
nômicas e culturais), criadas pelo ser humano, mas sem a consistência mate-
rial da tecnosfera (RIECHMANN, 2005a, p., p.105, nota 30 p.131).
Diferentemente dos outros animais, o humano não satisfaz suas neces-
sidades adaptando-se à natureza. Introduz entre ele e o mundo natural a me-
saímos da transformação para a criação. Leva-se até as últimas consequências
o ideal de (re)criar uma natureza sintética, incluindo o próprio corpo do ser
humano.
Sem i -se levar em
em relação à absolutização da tecnociência (RIECHMANN, 2005a, p.108-109).
A ecoesfera é resultado de um imenso e longo processo de erros e acertos,
que tornaram possível a continuidade da vida no nosso planeta.
O ser humano, como animal capaz de ação intencional, previsão e ra-
ciocínio, pode e deve realizar mudanças para melhorar a natureza. No entan-
to, dados a ignorância humana, os riscos inerentes, as distorções introduzidas
pelo modo de produção capitalista e outros aspectos das nossas relações soci-
ais, impõe-se uma atitude de prudência extrema ao intervir na natureza. Há
que se pensar muitas vezes, antes de manipular a constituição molecular dos
organismos vivos ou interferir no funcionamento dos ecossistemas. Não por-
que esses sejam sagradas ou intocáveis, e sim devido à alta probabilidade de
efeitos imprevistos.
Hoje estamos modificando a biosfera de forma que a fazemos crescen-
temente inabitável para nós. Fazemos a natureza perder certa capacidade de
se autoregular. O que está em jogo na crise ecológica não seria tanto a conti-
nuidade da vida sobre o planeta, e sim a sobrevivência da espécie humana.
(RIECHMANN, 2005a, p.109-110,122-123).
Os poderes de destruição da humanidade sobre o planeta se multipli-
caram. Hoje somos capazes de destruir muito mais do que podemos reparar
ou criar. O ser humano se transformou numa , com
terríveis consequências para a biosfera, como: (a) apropriação enorme da bi-
omassa terrestre, (b) alteração dos ecossistemas terrestres, (c) extinção mas-
siva de espécies animais e vegetais, (d) intervenção da mineração na superfí-
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cie terrestre, arrastando milhões de toneladas de sedimentos para os leitos
dos rios, (e) modificação da composição química da atmosfera.
Portanto, está em curso um grande movimento para a
, historicamente nova e de enorme importância. O poder de intervenção
das sociedades industriais sobre o planeta é incomparavelmente maior do que
todos os outros períodos da história humana. A atual crise ecológica resulta de
desajustes na interação entre biosfera e tecnosfera. Os processos lineares que
regem a tecnosfera industrial chocam-se violentamente contra os processos
cíclicos que prevalecem na biosfera. Estas absorvem cada vez mais matéria e
energia e excretam resíduos a um ritmo insustentável (= intensificação).
Prejudicar a biosfera é moralmente problemático, pois põe em risco a
qualidade de vida de bilhões de seres humanos no presente e no futuro, bem
como as centenas de milhões de seres vivos com os quais compartilhamos es-
te planeta. Eles são dignos de consideração moral por si mesmos (RIECH-
MANN, 2005b, p.92,227). Por isso, devemos nos preocupar moralmente por
sua sobrevivência e suas oportunidades vitais. P
. Tal contexto implica a questão moral, singular e irrenunci-
ável, de reconstrução ecológica das sociedades industriais, de forma que che-
guem a ser sustentáveis (RIECHMANN, 2005a, p. 114-115, 118).
Riechmann denuncia o ethos radicalmente imoral da tecnologia mo-
derna (RIECHMANN, 2005a, p. 119-122). Essa se auto-justifica assim: (a) Po-
de-se fazer tudo; tudo é tecnicamente factível. O que hoje é impossível será
viável amanhã, graças ao progresso técnico sem fim. (b) Aquilo que pode ser
feito tecnicamente, está justificado moralmente. O ideal da tecnologia sintética
pressupõe que a realidade é indefinidamente maleável e sujeita à ação huma-
na. Em contrapartida, segundo o pensamento ecológico, a realidade tem con-
sistência e estrutura, e isso impõe limites à ação humana. Um ethos otimista
sobre a atuação tecnocientífica no mundo não parece adequado para o atual
momento histórico. Melhor seria o de assombro e medo do diante
de suas próprias obras.
Segundo MANZINI (1992, p.49-50), o homem contemporâneo é um
. Pode criar na esfera local, mas não consegue controlar a glo-
bal. O sistema artificial se transforma numa segunda natureza, complexa e tão
difícil de conhecer como a primeira. Ora, se a crise ecológica é resultado de
ações coletivas humanas, temos a responsabilidade de nos dotar de meios efi-
cazes coletivos, para enfrentá-la (RIECHMANN, 2005a, p. 138). A crise ecoló-
gica, na qual está inserida a tecnociência, lança-nos para o âmbito da ética.
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CONCLUSÕES ABERTAS: CONVERGÊNCIA COM A LAUDATO SI
A reflexão sobre a Tecnociência se encontra no capitulo III da
m: ambigui-
dade da tecnociência (LS 102-105), globalização do paradigma tecnocrático
(LS 106-114), relação da tecnocracia com um antropocentrismo despótico (LS
115-121), critérios de juízo sobre a biotecnologia (LS 130-136). A posição do
Papa Francisco converge com aquela defendida por Riechmann, embora te-
nham pontos de partida distintos. Vejamos brevemente a contribuição da
, em forma de tópicos.
(a) Luzes e sombras da tecnociência: A humanidade entrou numa
nova era, em que o poder da tecnologia nos põe diante duma encruzilhada.
De um lado, essa contribui para o progresso humano em muitos âmbitos. Pro-
duz coisas belas. Se bem orientada, leva a melhorar a qualidade de vida (LS
102-103). De outro lado, confere um poder tremendo aos que detém o conhe-
cimento e o poder econômico. E tal concentração de poder, sem controle, põe
em risco a humanidade e o planeta (LS 104-105). Há um descompasso cres-
cente, pois o imenso crescimento tecnológico não é acompanhado por uma
evolução quanto à responsabilidade, aos valores e à consciência (LS 105). Isso
remete a questão fundamental: o ser humano atual carece de uma ética sóli-
da, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham limite, dentro de um
lúcido domínio de si (LS 105).
(b) Um modelo de compreensão arrasador: a tecnociência não
está colocada no âmbito instrumental dos meios a utilizar. Ela se transformou
s-
se, domínio e máxima exploração dos outros seres, reduzidos a meras coisas.
Perde-se assim a dimensão de relação. Alimenta-se a ilusão do progresso ilimi-
tado e a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta (LS 106).
(c) Impacto na vida das pessoas: O paradigma tecnocrático influ-
encia a vida dos indivíduos, o funcionamento da sociedade e meio ambiente.
muito difícil utilizar seus recursos sem ser dominado por sua lógica ferrenha.
Com isso, reduz-se a capacidade de decisão, a liberdade e o espaço para a
criatividade das pessoas (LS 108).
(d) Domínio sobre a economia e a política: Essas são direciona-
das em função da maximização dos lucros, em detrimento dos mais pobres e
dos ecossistemas. Ora, o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvi-
mento humano integral, nem a inclusão social (LS 109).
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(e) Unidimensionalidade do saber: A crescente especialização,
conduzida pela tecnociência, comporta grande dificuldade de realizar um olhar
de conjunto. O saber fragmentado leva à perda de sentido da totalidade. A
vida é reduzida às circunstâncias condicionadas pela técnica, como recurso
principal (e quase único) de interpretar a existência (LS 110).
Tanto Riechmann quanto Francisco denunciam que a tecnociência, no
formato como se impõe na atualidade, torna o planeta mais vulnerável, e a
humanidade, refém de um poder sem limites. Diante de um quadro tão gritan-
te, que alternativas se colocam? Qual a contribuição de Riechmann e da
para um mundo sustentável? O que a teologia tem a dizer? Essa é a
questão chave que desenvolveremos a seguir, na nossa pesquisa.
REFERÊNCIAS
COMMONER, Barry. En paz con el planeta. Barcelon: Crítica, 1992
TAVARES, Sinivaldo (orgs). Cuidar da Casa Comum. São Paulo: Paulinas,
2015, p.129-145.
Papa FRANCISCO. Laudato Si. Sobre o cuidado da Casa
Comum São Paulo: Paulinas, 2015.
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-------------. Todos los animales somos Hermanos
. Madrid: Catarata, 2005
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-------------. Gente que no quiere viajar a Marte
. Madrid: Catarata, 2004
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