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DÉBORA BRENGA
2010
Copyright © 2010 por Débora Brenga
Todos os direitos reservados.
	 Edição		 Rose Ferrari
	 Copidesque		 Katia Auvray
	 Revisão ortográfica		 Maria Lígia Conti
	 Versão em espanhol		 Marcia Serrano
	 Projeto gráfico		 Robson Piccin
	 Design da capa		 Robson Piccin
	 Ilustrações		 Victor de Almeida
	 Editoração		 Robson Piccin
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Regina Célia Ferreira Boaventura – CRB 8/6179
Brenga, Débora
B847s As 7 vidas de uma história / Débora Brenga ; ilustrações Victor de
Almeida. – [Sorocaba, SP] : Ferrari & Auvray, 2010.
232 p. : il. ; 14 X 21 cm
Texto em português e espanhol.
Título em espanhol: Las 7 vidas de una historia.
ISBN: 978 85 64005 00 6 (broch.)
1. Literatura infanto juvenil. I. Almeida, Victor de. II. Las 7 vidas de
una historia. III. Título.
CDD 21 808.899282
À mãe, que ofereceu-me a vida e,
com ela, tantas histórias.
A Jana, Oli e Cae, meus filhos
queridos, a quem ofereci a vida e,
com ela, tantas histórias.
Aos amigos, cujo número
comportam os dedos de minhas
mãos, com quem partilho a vida
e, com ela, tantas histórias.
Porque esta história começa depois do seu começo, achei
melhor deixar aqui algumas palavrinhas que expliquem isso.
Na verdade, aquele que deveria ser o primeiro ca-
pítulo tornou-se o último, pois Pandora, ou Pandorinha, a
personagem principal, só se dá conta de que perdeu sua
história favorita no meio dela.
Na vida da gente também é assim que acontece: só é pos-
sível procurar e achar seja lá o que a gente tenha perdido, quan-
do se descobre a perda. Aqui, a contadora de histórias descobre
que, perdendo a sua história preferida, não poderia contar mais
nenhuma outra. Por isso, inicia sua busca, desejando reencon-
trar a tal história que desapareceu do mapa, dos porões de sua
memória e da sua caixinha das histórias infinitas.
Pandora não perde a esperança, porque sente que
essa história fujona ainda vive em seu coração e, assim, des-
cobre que toda boa história tem sete vidas. Se uma falha,
logo em seguida, a outra dá o recado.
Só mais uma coisinha: como esta história foi escrita
no gênero literário da novela, você que inicia esta leitura po-
derá ler uma das suas vidas e não ler a outra, pois cada vida
deve ter começo, meio e fim. Cada uma é uma, embora
todas elas sejam a mesma vida, quer dizer, a mesma história:
a história preferida de Pandora. Agora, se eu fosse você, leria
todas, do começo até o fim.
Boa viagem, ou melhor, boa leitura ou, ainda, os dois.
Débora Brenga
Háum
a
rosa, que vejo e toco, tec
end
o-se em meu jardim
.
E
outra, que me olha e toca, e vive dentro de mim
.
Esta é a história da História (Des) Aparecida do Mapa.
A história que sumiu, desapareceu, escafedeu, deixando a
contadora de histórias maluca, porque aquela era a história
que a contadora mais gostava de contar e era, também, a
história que as crianças mais gostavam de ouvir.
Parecia que a História (Des) Aparecida do Mapa tam-
bém apreciava ser contada, que era feliz assim, fazendo as
crianças rirem e se divertirem.
Então, o que teria acontecido com ela?	
O pior é que o sumiço se deu justamente em uma manhã
de um sábado meio “preguicento”, quando Pandora se arruma-
va pra ir contar a História (Des) Aparecida do Mapa. A conta-
dora resolveu chamá-la, e descobriu o seu desaparecimento.
E agora? Onde ela estaria? O que teria acontecido? O
que fazer?
Machado de Assis
Esque
cer
é uma
n
ecessidade. A
vida
é
uma lousa
em
que o destino, para
escrever um novo
caso, precisa de
apagar
o
caso escrito.
Procurou daqui... Procurou dali... Procurou de lá, e nada!
Foi dando um nervoso daqueles na coitada da con-
tadora, porque a História (Des) Aparecida do Mapa nunca
havia desaparecido daquele jeito. Quando sumia da sua ca-
beça, logo era encontrada, na caixa onde morava. Uma cai-
xa bonita demais! Bem colorida, cheia de balões, borboletas
e pipas multicores.
Mas desta vez era grave! Porque a História (Des) Apa-
recida do Mapa não estava em nenhum dos porões da ca-
beça da contadora e, também, em nenhum canto da sua
famosa caixa, que era conhecida como “A caixinha de Pan-
dorinha”.
É que a História (Des) Aparecida do Mapa fugiu de
sua casa, ou melhor, de sua caixa, sem deixar explicações.
Nada. Nem um bilhete, uma palavra de adeus ou, sei lá,
algo que esclarecesse o que havia acontecido.
Pela cabeça de Pandora, passavam muitos pensamen-
tos, sem que ela conseguisse segurar nenhum deles.
Vinham galopando, levantando poeira e, nela mes-
mo, desapareciam, feito a própria História (Des) Aparecida
do Mapa, deixando a contadora cada vez mais nervosa.
Mas vamos começar pelo começo: quando a conta-
dora acordou e começou a se preparar para contar a história
da História (Des) Aparecida do Mapa, logo deu por sua falta.
Em sua cabeça ela não estava. Nela, só um vazio, sem lem-
branças, sem recordações, sem memória.
Da caixa ela se lembrava, porque a caixa é como se fosse
ela mesma. Talvez uma parte de seu corpo. Quem sabe a sua
boca e a sua voz, o seu cérebro ou, ainda, o seu coração?
Então, ela correu até a sua caixa e a abriu com muito
cuidado, pra não alvoroçar as outras histórias que dormiam
gostoso. Foi aí que levou o maior susto. Cadê a história?
Onde ela havia se metido?
Procurou, procurou e não achou...
Chamou, chamou, mas nada!
Pandora respirou bem fundo, contando até dez,
e encontrou uma pista da História (Des) Aparecida do
Mapa, junto das outras histórias guardadas naquela caixa
cheia de surpresas. Mas só uma pista! A História (Des)
Aparecida do Mapa, quem sabe por não querer ser to-
talmente esquecida, saiu da folha onde estava escrita,
deixando-a quase que totalmente nua.
Eu digo quase que totalmente nua, porque a folha
onde ela morava ficou assim:
Imagine a cara de espanto de Pandorinha!
O pior é que o tempo estava passando, o sol cada vez
mais forte no céu, anunciando que chegava a hora de contar
história para as crianças, que estavam doidinhas para ouvi-la.
Mas que história, se ela não estava ali, não estava
lá nem acolá? Como contá-la, se não estava em lugar
algum?
Então, depois de muito pensar, a contadora resolveu
que contaria outra história, aquela do “menino que tinha
medo de tudo”.
Só que, pensando melhor, começou a achar que não
dava pra ter medo de tudo. Alguns meninos tinham medo
de escuro, outros de água, outros de altura, de fantasmas,
mas de TUDO?!!!
E aí, quem ficou com medo foi ela mesma!
Medo de que as histórias não quisessem mais a sua
companhia, medo de que a sua memória fugisse, e ela não
lembrasse mais de nenhuma história legal pra contar, medo
de que a sua voz resolvesse abandoná-la.
Nossa! Com quanto medo ela foi ficando!
E o tic-tac do relógio ia deixando Pandora mais
nervosa ainda!	
Foi então que ela resolveu contar uma história que ela
mesma havia inventado. Uma que falava de uma garotinha
muito perguntadeira, uma tal de Rita-Cabrita.
Pronto. O problema estava resolvido.
Será? Que nada! O problema continuava lá, porque
ela se lembrou de que é a Rita quem gosta de contar a sua
própria história...
E o tic-tac, tic-tac, tic-tac, deixando a contadora mais
nervosa, mais nervosa, mais nervosa ainda!
E, de nervoso, gritou tão gritado, que a cidade inteira
ouviu o seu grito:
— CADÊ A HISTÓRIA QUE ESTAVA AQUI?
Em coro a cidade respondeu:
— O gato comeu!
— Cadê o gato?
— Foi pro mato!
— Cadê o mato?
— Pegou fogo!
— Cadê o fogo?
— A água apagou!
— Cadê a água?
— O boi bebeu!
— Cadê o boi?
— “Tá” amassando trigo!
— Cadê o trigo?
— A galinha espalhou!
— Cadê a galinha?
— “Tá” botando ovo!
— Cadê o ovo?
— O padre comeu!
— Cadê o padre?
— “Tá” rezando missa na capelinha!
A contadora foi, então, até a capelinha, e encontrou
a porta fechada, com o gato do padre tirando uma soneca,
feito guardião de igreja.
Ela falou:
— Seu gato, seu gato, acorde!
O gato acordou com aquela cara que todo gato tem
logo que acorda.
E Pandora continuou:
— “Tão” dizendo por aí que você comeu a minha
história. Isso lá é verdade?
O gato, mais sonolento que tudo, lambeu a pata,
olhou pra cara dela e falou:
— Na história tinha peixe?
— Não!
— Tinha queijo, coalhada ou requeijão?
— Claro que não!
— “Tavam” tirando leite da vaquinha?
— Não!
Ah, então eu não “comi ela”, não!
Nossa! Pandora ficou mais nervosa ainda porque, afi-
nal, o gato era uma esperança, por pior que fosse, de saber
do paradeiro da história.
E o nervoso foi virando raiva. Raiva da cidade inteira,
que botou a culpa no gato; mas o gato teve uma ideia:
—Você já foi ao hospital? Dizem que lá tem um
monte de histórias hospitalizadas: de afogados, queima-
dos, acidentados...
Aí a contadora ficou nervosa de verdade. Já pensou se
a História (Des) Aparecida do Mapa estivesse em uma cama
de hospital, toda quebrada?
E aquele nervoso ficou bem maior do que já estava.
Afinal, muita coisa poderia ter acontecido com sua História.
E se ela tivesse perdido a memória, e não soubesse
mais quem ela era?
E se ela tivesse sido atropelada por uma bicicleta, um
carro, um caminhão?
E se ela tivesse escorregado em uma casca de banana,
quebrando a perna, o braço - ou os dois?
Quem sabe estivesse com sarampo, catapora, tosse
comprida?
E se simplesmente tivesse resolvido fugir, levando com
ela a esperança que mora no coração de toda meninada?
Então ligou:
— Alô! É do hospital?
—
— Por acaso tem uma história internada aí?
—
— Tudo isso? Nossa! O que será que anda acontecen-
do com elas?
—
— Ah! Será que aí tem uma história engraçada, que
faz as crianças rirem um montão?
—
— O nome dela? É História (Des) Aparecida do Mapa.
—
— Tem certeza? “Tá” bom! Obrigada!
Pandora desligou o telefone um pouco desanimada e
um pouco animada também.
Desanimada porque já não sabia onde procurar a
História e animada porque, pelo menos, a História não
estava lá no hospital, toda estropiada e, ainda por cima,
tomando injeção.
Mas onde estaria? Onde teria se metido?
Foi aí que o gato lhe deu outra ideia:
— Melhor procurar na delegacia. Talvez ela esteja lá!
Na delegacia?! Nem de longe a contadora tinha pen-
sado numa coisa dessas, mas achou que o gato tinha razão,
e resolveu telefonar pra lá:
— Alô! É da delegacia?
—
— O “seu” delegado está?
—
— É a contadora de histórias. Ele está?
—
— Está bem, eu aguardo.
E cansou de aguardar o delegado, que demorou um
tempão pra atender o telefone.
—
— Oi, “seu” delegado! Gostaria de saber se alguma
história fez Boletim de Ocorrência aí.
—
— Como? Mais de uma dúzia?
—
— Não, não é uma história de fazer chorar, não! É
uma história bem divertida!
—
— Que é isso “seu” delegado?! Ela é incapaz de matar
uma mosca!
—
“Tá” bem, então! Obrigada!
E, novamente, Pandorinha ficou metade triste e
metade feliz.
Triste, porque não tinha nenhuma pista sobre o sumiço
da sua melhor história.
Alegre, porque pelo menos sabia que a História (Des)
Aparecida do Mapa não havia sido assaltada, raptada, roubada.
Mas então, onde ela estava?
Veio o gato de novo lhe dando a pior das ideias:
— Já procurou no cemitério?
— Sai pra lá, gato agourento! “Tá” querendo matar a
minha história, é?
— Eu não, de jeito nenhum! Só que tudo que vive,
morre, né?
Aí sim que Pandora perdeu a voz, a cor, tudo!
Já pensou se aquele gato estivesse certo? O que faria
sem ela? Como sobreviveria sem a melhor das histórias?
Mais que depressa, ela ligou pra lá.
— Alô! É do cemitério?
—
— O coveiro está?
—
— Como? Ele está enterrando quem?!
—
— Ah! Que susto! Pensei que era...
—
— Está bem, eu espero.
E esperou um tempão, até que o coveiro atendeu.
—
— Oi, “seu” coveiro! Aqui é a contadora de histórias.
Tudo bem com o senhor?
—
— Comigo? Mais ou menos! É que eu estou muito
preocupada com o sumiço de uma história. Já liguei pro
hospital, pra delegacia e ninguém tem nenhuma pista sobre
ela. Então, eu pensei: será que o coveiro não a enterrou?
—
— Tantas assim?
—
— Nossa! Então o senhor é um coveiro que conhece
muitas histórias! É um coveiro contador de histórias?
—
— Ah! Claro! Todas elas já morreram! E quem quer
ouvir uma história morta, né?
—
— O nome dela? É História (Des) Aparecida do Mapa.
—
— Tem certeza?
—
— Que bom! Muito obrigada!
A contadora desligou o telefone, dando pulos de
alegria. Afinal, a história não estava morta, não havia sido
enterrada, e essa era a melhor notícia, mesmo que não
soubesse onde ela estava. Estando viva, estava bom!
O gato pensou, pensou e perguntou:
— Que conversa era aquela com o coveiro?
— Qual?
— De história ter vida.
— Lógico, né? Se a história tivesse morrido, ninguém
“contava ela”!
E o gato mais pensativo ainda, continuou:
— Quer dizer que toda vez que você conta uma his-
tória, ela já não é mais a mesma?
— Claro que não! Sempre que eu conto uma história,
ela é sempre a mesma história!
O gato, então, deu um pulo pra trás, subiu no muro
e falou:
— Será que as histórias têm sete vidas como nós, os gatos?
A contadora riu um montão, mas de nervoso, e depois
perguntou:
— Por quê?
— Porque se a história está viva, ela tem que mudar,
né? Agora, se ela não muda e continua viva, então deve ter
sete vidas, como os gatos, certo?
Nunca que a contadora tinha pensado daquele jeito,
mas talvez o gato tivesse lá a sua razão. Resolveu ouvir com
atenção aquele bicho inteligente.
Ele continuou:
— Vai ver a sua história foi pra maternidade fazer nas-
cer uma história nova. Quem sabe ela não enjoou de ser
sempre a mesma história?
Mais que depressa a contadora ligou pra maternidade.
— Alô! De onde falam?
—
— Por acaso não tem uma história aí se achando
velha, querendo nascer uma nova história?
—
— Verdade? E quantas novas histórias já nasceram?
—
— Tudo isso?
—
— Tem alguma que se chama História (Des) Apareci-
da do Mapa?
—
— Puxa, que pena!
E desligou o telefone com aquela cara muxoxa, por-
que a História (Des) Aparecida do Mapa também não estava
na maternidade, nascendo história nova.
O gato também desanimou.
Só mais tarde, depois de uma boa soneca, ele teve
outra ideia:
— Ei, contadora! Já pensou em procurar a História
naquela seção de perdidos e achados? Talvez...
Não deu tempo de ele terminar porque Pandora já
estava com o telefone na mão:
— Alô! É da seção de Achados e Perdidos?
—
— Por acaso vocês não encontraram uma história que
desapareceu do mapa?
—
— De que mapa? Do Brasil, é claro!
—
— E dá pra deixar um classificado?
—
— Escreve aí:
— Ficou bom?
—
— Então, tá! Muito obrigada!
Desanimada, mais uma vez, a contadora deitou no
chão, sem vontade de fazer mais nada.
O gato, que sempre vive com vontade de fazer nada,
deitou bem pertinho dela, pedindo um aconchego.
Mas ela nem percebeu, tão preocupada estava com
o sumiço da História (Des) Aparecida do Mapa, até que o
gato arriscou:
— Será que o carteiro não tem notícias dela?
A contadora levantou, deu um beijo na testa do gato,
que ficou todo manhoso, e correu pro telefone:
— Alô! É do Correio?
—
— O “seu” carteiro está?
—
— Como? Ele já saiu entregando a correspondência?
—
— Até logo, então, obrigada!
—
Foi aí que Pandora resolveu ficar no portão da sua
casa, esperando o carteiro passar. De repente ele tinha uma
boa notícia!
Sentou na cadeira de balanço e esperou.
O balanço da cadeira ia e vinha, ia e vinha, e o relógio
aborrecente tiquetaqueava. O balanço deixando a conta-
dora molinha de tudo e o tic-tac daquele relógio infernal a
apavorando, porque não a deixava esquecer que a hora da
história estava chegando. Mas cadê a história pra contar?
Enquanto a menina ora ficava molinha de tudo, ora
feito um vulcão, pronta pra explodir, o gato foi saindo de
fininho, porque acabara de ter uma ideia genial. Pelo menos
ele achava que era.
Quando o Sol já estava baixando, tirando da conta-
dora quase que por completo a esperança de reencontrar a
História (Des) Aparecida do Mapa, o carteiro, que se cha-
mava Hermes, chegou e gritou:
— Olha a correspondência!
Pandora deu um pulo da cadeira e correu até o car-
teiro pra pegar uma caixinha de cor bem laranja, que ele
tinha nas mãos.
— Oi, mensageiro!
— Oi contadora! Tem mensagem do Olimpo pra você.
Ela sorriu agoniada e mal conseguiu agradecer ao car-
teiro, porque estava desesperada para abrir aquela caixinha
cheia de .
Dentro dela havia um envelope feito um céu noturno
estrelado, e dentro dele, uma folhinha fina, quase transpa-
rente, com poucas palavras:
Pandora respirou aliviada. Não fazia mal se a sua me-
lhor história estava longe. Estando bem, estava bom!
Depois, ficou cheia de pensamentos tristes, pois pela
primeira vez havia deixado as suas crianças sem história.
Então lembrou-se do gato; onde andaria aquele
danado?
Chamou pelo bichano, e nada! Saiu procurando por
ele, perguntando pra um, perguntando pra outro, até que
encontrou um garotinho que vinha feliz da vida, pulando
pela rua, igual a um canguru ou um sapo, sei lá.
Ela parou e perguntou:
— Ei, menino! Cadê o gato que estava aqui?
— O menino não parou, não. Continuou pulando o
seu caminho e foi falando, enquanto pulava:
— Foi contar história pra criançada, lá pra banda do
Brejo do Beijo.
— Que história?
— A que desapareceu do mapa.
— De que mapa?
Mas o menino já ia longe, desaparecendo também do
mapa daquela rua, até que sumiu por completo. Virou um
pontinho preto no horizonte.
Já a contadora sentou na beira da calçada sem enten-
der mais nada!
Ficou ali feito uma estátua gelada, até a Lua aparecer
alta no céu. Então, ouviu a voz do gato:
— Oi contadora!
— Oi gato ladrão!
— Eu?!
— Você sim! Cadê a história que estava aqui, heim?
— Está com as crianças do Brejo do Beijo, uai!
— Cadê as crianças do Brejo do Beijo?
— Procurando a contadora de histórias!
— Cadê a contadora de histórias?
— Desapareceu do mapa, enquanto procurava uma
história também desaparecida!
E foi aí que caiu mais uma ficha da contadora, que
aprendeu outra lição sobre as histórias: quando você não
tem nenhuma história para contar, conte a história de não
ter histórias, porque tudo tem história, até mesmo quando a
única história que tem é aquela de uma história fujona.
Pandora deu um beijo estalado naquele gato danado
de esperto e o convidou para ser seu assistente. Como ele
não gosta de trabalhar todos os dias, foi disfarçando, disfar-
çando, enquanto saía de cena.
Pegou a sua trouxinha, botou nas costas e disse:
— Até mais ver, contadora! Um dia eu volto com his-
tórias novas pra contar!
A contadora pensou: acho que já vivi isso!
Depois, disse adeus e foi-se embora. Agora não esperava
notíciassódaquelahistóriamalagradecida,não!Porquetambém
tinha o gato, que havia ficado para sempre em seu coração.
O tempo passou um montão! Um dia ela recebeu
uma carta dizendo assim:
O queixo da contadora caiu!
Quer dizer que?!... Caracas!
Bom, esta história entrou por uma porta e saiu pela outra,
quem quiser que conte outra, ou tente contar esta mesma!
Como Pandora não conseguia encontrar a sua histó-
ria preferida em nenhum dos porõezinhos que moravam
dentro da sua cabeça cheia (de porões e de histórias), resol-
veu procurá-la em sua caixinha.
A caixinha onde ela guardava todas as suas histórias: a
caixinha de Pandorinha.
Mas que susto levou, logo que abriu sua caixa guarda-
dora de histórias!
Lá dentro, nada estava em seu lugar. Parecia que um
temporal ou um furacão havia passado por ali, desarru-
mando tudo. Que confusão!
Pandora chamou por ela, pela história mais querida,
mas não a encontrou, porque na certa estava brincando de
esconde-esconde com ela, que não estava nem um pouco
a fim de brincar.
Ítalo Calvino
Escre
ver é semp
r
e
esconder
al
go
de
m
odo
q
ue mais tarde seja descoberto.
Foi quando deu de cara com o Soldadinho de
Chumbo, procurando pela Bailarina.
A contadora falou:
— Oi, Soldadinho, você pode me dizer o que está
acontecendo aí dentro?
O Soldadinho fez de conta que não era com ele, con-
tinuando a sua procura.
A contadora de histórias achou aquilo muito estranho,
porque o Soldadinho não era mal educado. Realmente,
alguma coisa estranhíssima estava acontecendo com os seus
porões guardadores de histórias e, também, com a sua cai-
xinha, guardadora das mesmas histórias.
Então, a contadora ficou um tempão olhando pra
dentro da sua caixinha, enxergando coisas um tanto esquisi-
tas para ela, como o Gato de Botas, que passeava no tapete
mágico de Aladim, enquanto o dono do tapete calçava as
botas do Gato, pulando feito um louco dentro da caixa.
Parecia que tinha molas nos pés!
Mas não era só isso, não!
A Bruxa Malvada, que havia perdido o seu caldei-
rão no meio daquela bagunça toda, emprestava a panela
do Menino Maluquinho pra que ela pudesse continuar
a fazer as suas poções mágicas e, logicamente, as suas
maldades.
Imagina o Menino Maluquinho sem a sua panela
napoleônica na cabeça!
E o Peter Pan então?
Parece mentira, mas o garoto usava paletó e gravata,
porque cansado de ser um eterno menino, queria agora
crescer, ser um homem de verdade. Como se fosse suficiente
usar paletó e gravata pra se tornar um homem de verdade,
né? Foi o que Pandora pensou.
E, assim, a contadora, depois de ver tudo aquilo e
muito mais acontecendo dentro de sua caixinha, resolveu
dar um basta. Deu um grito daqueles. Um grito que até
acordou a Bela Adormecida. Um grito que deu a volta ao
mundo em alguns segundos.
— CHEGA! QUE BAGUNÇA É ESSA AÍ DENTRO?
ALGUÉM PODE ME EXPLICAR O QUE ESTÁ ACONTE-
CENDO?
E tudo dentro da caixa parou, com o tamanho e a
força daquele grito, que vinha lá de dentro do coração de
Pandora.
Como estátuas assustadas ficaram por alguns segun-
dos, até que o Soldadinho de Chumbo resolveu falar em
nome de todos:
— Oi contadora, como vai?
A contadora foi logo ao assunto:
— Você pode me dizer o que está acontecendo?
O Soldadinho contou que todas as personagens das
histórias que viviam ali haviam decidido fazer uma rebelião,
à qual chamaram de Revolta das Personagens.
— Mas por quê? – quis saber a contadora.
— É que estamos bem cansados de viver sempre a
mesma história, de sermos prisioneiros da vontade daqueles
que nos criaram. Terei sempre que ser feito de chumbo? A
Bruxa Má deverá ser sempre má? A boneca Emília, que é
melhor que muita gente feita de carne e osso, deverá ser
sempre de pano? O príncipe sempre vira sapo? A Alice só
conhece o País das Maravilhas?
A contadora estava boquiaberta, surpresa com o que
ouvia, e resolveu perguntar sobre a sua história preferida,
pois achava que ela teria papel importante naquela revolta
no interior da caixa.
— Isso eu não posso contar, não! – continuou o
Soldadinho.
— Será que não confiam mais em mim?
Confiar, confiavam, mas desconfiando. Quanto à his-
tória que ela mais gostava, estava bem segura em algum
lugar no meio daquelas tantas outras histórias guardadas ali.
Quem sabe não estivesse no meio da floresta, na mina dos
Sete Anões? Na casa de João, aquele do pé de feijão? Afinal,
ela era a líder da revolta e carecia de proteção.
Tudo isso e muito mais o Soldadinho de Chumbo
falou, enquanto Pandora só ouvia, ficando cada vez mais
surpresa! Até que ela disse:
— Eu posso saber o que é que vocês esperam com
essa revolta?
Mais que depressa o Soldadinho respondeu:
— Queremos liberdade de expressão, pois cansamos
de ser sempre os mesmos, sempre com as mesmas histórias
que nunca mudam. Queremos que os nossos criadores nos
ouçam, pois logo depois que nos criam já se esquecem de
nós, porque estão com a cabeça fervendo de novas histórias
e personagens, que também ficarão esquecidas assim que
nascerem. Vivem em um círculo vicioso!
Puxa, a contadora estava agora era de queixo caído!
Então disse:
— Mas como vou reunir todos os criadores de histó-
rias? Muitos já morreram! Outros vivem em partes diferen-
tes do mundo! Isso é impossível!
O Soldadinho de Chumbo levantou os ombros como
quem diz: se vira! Depois respondeu:
— Isso não é um problema nosso! O nosso problema
eu já contei pra você!
Pandora arriscou uma pergunta:
— E o que devo dizer a eles?
— Diga que só voltaremos a ser quem somos depois
que resolverem nos ouvir! Diga que não somos marionetes!
Que queremos nossa liberdade para ir e vir, quando e onde
quisermos.
E foi nessa hora que a contadora se emocionou, com
os seus pelos do corpo todo eriçados, porque de dentro da
caixa uma salva de palmas, assovios e gritos de guerra se
iniciaram.
Rapidamente, todas as personagens se uniram em
uma marcha, uma volta ao mundo em oitenta passos, gri-
tando ao som do tambor que o Menino Maluquinho batia:
— NINGUÉM NOS PRENDE EM SEUS PORÕES!
— NINGUÉM NOS PRENDE EM SUAS CAIXAS!
— NINGUÉM NOS PRENDE EM SEUS LIVROS!
— NINGUÉM NOS PRENDE EM SUAS ESTANTES!
— NINGUÉM NOS PRENDE EM SUAS PALAVRAS!
— NINGUÉM NOS PRENDE EM SUAS BOCAS!
— NINGUÉM NOS PRENDE EM SEUS OLHOS!
— NINGUÉM NOS PRENDE EM SEUS CORAÇÕES!
— NINGUÉM NOS PRENDE EM SEUS PENSAMENTOS!
— SOMOS LIVRES PARA SER QUEM SOMOS!
A essa altura, nem lembravam mais que a conta-
dora estava ali, assistindo a tudo, emocionada até, orgu-
lhosa de saber que a sua história preferida era o pivô
daquilo tudo.
Depois, fechou a caixa sem sentir os seus pés. Parecia
que não tinha chão, preocupada, sem saber o que fazer.
Como localizar os autores de cada uma daquelas histórias,
daquelas personagens?
Que tarefa difícil!
Sentia que estava com um problema gigante para
resolver. Não conseguia imaginar o mundo sem histórias
boas de se contar.
Sem elas, certamente o mundo seria mais triste, tecido
em preto e branco. Um mundo sem sonhos, sem cores bri-
lhantes...
Seria um mundo assustador, um mundo morto.
Assustada com aquelas ideias, Pandora correu a tele-
fonar pro pai do Menino Maluquinho:
— Alô! Ziraldo?
—
— É a Pandora. Você nem imagina o que está acon-
tecendo!
—
— Como? Quem lhe contou?
—
— E a Professora Maluquinha? Também faz parte
dessa revolta?
—
— Até ela?!
—
— O que faremos?
—
— Está bem, então, até amanhã, sem falta! Um
beijo!
Depois que desligou o telefone, a contadora ficou
pensando num jeito de convidar aqueles autores já mortos
para a tal reunião que iriam fazer.
Mal dormiu naquela noite, porque só pensava nisso.
Como avisar Andersen, Lobato e os Grimm?
Se unir os que estão vivos não é tarefa fácil, imagina
os que já morreram?
Acabou dormindo, e na manhã seguinte acordou
com uma ideia que achou que era boa e levou pra reunião,
onde só havia feras:
Ana Maria Machado, Umberto Eco, Ruth Rocha,
Ziraldo, Lygia Bojunga, Eva Furnari, Tatiane Belinky, Chico
Buarque de Holanda, além de um montão de novos auto-
res contadores de histórias, como ela.
A cara de preocupação era geral. A de sono também.
Parecia que não tinham pregado o olho. Na certa também
ficaram pensando um jeito de avisar os escritores mortos
do que estava acontecendo aqui na Terra, com as suas his-
tórias e personagens.
O silêncio era geral porque ninguém se atrevia a
começar a reunião. Olhavam uns para os outros com um
olhar que pedia: Começa, vai! Fala você!
A contadora contou até mil, pigarreou, tossiu e
começou:
— Hoje de manhã eu acordei com uma ideia que
talvez nos ajude a conversar com aqueles escritores que já
morreram.
Os olhos de todos se voltaram para ela. A curiosi-
dade era geral.
Encabulada, sem saber onde enfiar a sua cara, ela
continuou:
— O que vocês acham de a gente enviar um perso-
nagem-mensageiro pra lá, no lugar onde estão os mortos?
Tem que ser um personagem-mensageiro que morra em
sua história, como é o caso do Lobo Mau. Um persona-
gem-mensageiro-morto tem acesso aos escritores mortos,
não tem?
Ninguém se atrevia a falar. O silêncio foi deixando
a contadora mais nervosa ainda, até que a Ruth Rocha
falou:
— Acho a ideia boa, mas acredito que o Lobo Mau
não faça isso para nós! Nem o Lobo da Chapeuzinho nem
o dos Três Porquinhos. Afinal, se eles eram maus enquanto
vivos, por que mudariam depois de mortos?
Pronto! A reunião pegava fogo!
Todos queriam falar e falavam ao mesmo tempo, sem
que ninguém entendesse nada.
Foi o Ziraldo, com uma panela igualzinha a do Malu-
quinho, batucando e fazendo muito barulho, quem colo-
cou ordem na casa.
— Calma pessoal! Desse jeito não iremos a lugar
algum. Que tal falarmos um por vez? Ai, que falta me faz a
Professora Maluquinha nessa hora!
O silêncio voltou, apesar de alguns cochichos aqui
e ali.
Então, o Chico Buarque se lembrou do Lobo da Cha-
peuzinho Amarelo, que nem era tão mau assim, e que de
tanto falar LOBOLOBOLOBOLOBOLOBO acabou virando
BOLOBOLOBOLOBOLOBOLO, fácil de comer. Quem
sabe ele não poderia ser o porta-voz de todos?
Uns eram a favor, outros eram contra, enquanto a
contadora ficava quieta num canto, aflita mesmo, porque
o tempo do relógio passava rápido: TIC-TAC! TIC-TAC!
TIC-TAC!
E não se chegava a nenhum acordo.
Foi o Umberto Eco quem deu a ideia de uma vota-
ção. Assim escolheriam aquele que seria o tal personagem-
mensageiro.
O Ziraldo sugeriu o astronauta da sua história, o do
pequeno planeta perdido.
Ele não era morto, mas era craque em viagens
siderais.
Ele até que era um forte candidato, mas será que
deixaria a sua namorada Rosa? Será que ele também não
fazia parte da Revolta das Personagens?
Ziraldo garantiu que não, porque a essa altura estava
bem longe do planeta azul, ouvindo CDs e namorando.
Os três lobos das três histórias: das Chapeuzinhos
Vermelho e Amarelo e o dos Três Porquinhos eram candi-
datos naturais.
Foi então que a Eva Furnari pensou na sua Bruxi-
nha Sorumbática. Quem sabe, com seus poderes, ela não
topasse?
Bruxa era perigoso, falou a Tatiane Belinky:
— A gente não pode confiar totalmente nelas. Depois,
a nossa missão é muito séria! Quem garante que ela também
não faz parte dessa tal Revolta das Personagens?
Deu muito pano pra manga aquela conversa sobre
bruxas, porque alguns gostavam muito delas. Na verdade,
todos gostavam delas, mas entre gostar e confiar havia
muita diferença.
A contadora, o tempo todo, só olhando para o reló-
gio, com aqueles ponteiros que pareciam dançar com muita
agilidade e rapidez. Lembrou do relógio mole de Dali.
Quando iam começar a votação, eis que chega o Saci
Pererê, empestando o ar com o seu cachimbo fedorento.
Correu pro colo do Ziraldo, cochichou em seu ouvido
e ficou esperando a reação do amigo. A cara do Ziraldo se
abriu em um sorriso largo. Tudo sorria: os olhos, a boca, a
testa, as bochechas. Tudo.
Aí, ele falou:
— Pessoal! O Saci teve uma ideia genial. Diz que
anda com muita saudade do Mário de Andrade e que pode
fazer o favor de levar a nossa mensagem aos escritores
mortos, só pra poder rever o amigo de tantas aventuras.
A contadora pensou se o Saci seria ou não confiável.
Pensou, mas não falou!
Só que o danado do negrinho, que deve ler pensa-
mentos, subiu sobre a mesa e pulando com uma perna só,
foi logo dizendo:
— Saci Pererê é aprontão! Gosta de fazer das suas,
mas não gosta que duvidem dele! Se tem alguém aqui que
não confia nele é melhor falar agora!
A contadora resolveu encarar:
— Eu só penso se você não faz parte dessa tal
revolta!
Saci rolou de rir naquela mesa, e quase se espatifou
no chão. Depois ficou sério, olhou bem nos olhos da con-
tadora e disse:
— Bem se vê que você não entende nada de Sacis!
É novata! Onde já se viu pensar que o Saci pode estar can-
sado de ser Saci? Eu sou o único que posso mudar a minha
história! Inventar quantas eu quiser sem ser filho deste ou
daquele escritor, porque Saci já existia, muito antes de
qualquer escritor ou contador de história nascer.
Foi aplaudido por todos, até pela contadora, que
sentiu firmeza naquele Saci Pererê.
Mas aí, o Saci começou com algumas exigências. Só
viajava no tempo e no espaço dos escritores mortos se fosse
de primeira classe. Com direito a 10 cachimbos cubanos e
uma troca de toca por dia, enquanto durasse a viagem.
Todo mundo topou. Só que o Saci não podia demo-
rar, porque a coisa estava pegando fogo, ele bem sabia!
O Saci não gostou muito dessa parte, pois queria ficar
de férias por lá, no mundo dos escritores mortos. Rever o
amigo Macunaíma, que agora já era estrela.
Então, depois de um pouco mais de blá, blá, blá,
todos concordaram que o Saci podia ficar por lá o tempo
que quisesse ou que aguentassem a visita dele. O que ele
não podia era demorar a chegar até lá e reunir os amigos
escritores que já não viviam por aqui, no nosso planeta
Terra, explicando para eles tudo sobre a Revolta das Per-
sonagens.
O Saci topou, mas depois pensou melhor e não
gostou.
— Por que, Saci? – perguntou o Ziraldo, que era o
mais íntimo dele.
— Que graça vai ter eu ficar por lá, se todos eles
virão feito foguetes para cá?
Mas o Pedro Bandeira que acabava de chegar,
falou:
— Faz o seguinte, Saci: você vai, vem, e depois volta
com todos eles.
Saci Pererê se assanhou. Achou aquela ideia genial,
desde que as trocas de cachimbos e de tocas estivessem
garantidas em todas as suas idas e vindas.
E tinha outro jeito?
— Não, não tinha não! É pegar ou largar! - respon-
deu o Saci, já querendo se despedir para a sua longuíssima
viagem em um redemoinho à velocidade da luz.
Mas o Ziraldo foi mais rápido e falou:
— Calma aí! Primeiro a gente vai escrever um mani-
festo para você entregar nas mãos do Andersen, certo?
Saci não gostou. Que Andersen, que nada! Queria
mesmo era cair nos braços do Mário. Entregava o manifesto
pra ele, que ele entendia bem desse negócio de manifesto.
Mário sim, que entregasse pro Andersen.
E pra não alongar mais aquela conversa, assim foi
feito.
Chegou a hora da despedida, coisa que o Saci detes-
tou porque vieram as muitas recomendações: “Cuidado
com o nosso manifesto, não vá perdê-lo por aí! Vê se não
para no meio do caminho pra zombar de ninguém! Deixa
a crina do Pégaso sem nós, tá?”
Nossa, o Saci foi ficando enjoado de tanto con-
selho e falação na sua orelha, que deixou todo mundo
comendo pó, porque levantou o seu redemoinho e nele
desapareceu.
O jeito agora era esperar. O arteiro garantiu que
ia num zás trás! Que daqui – ali era pertinho, tão perti-
nho, que mal ia dar tempo de piscar um olho e já estaria
chegando lá, e quando piscasse o outro olho já estaria
chegando aqui, com toda aquela cambada de autores
fantasmas.
Mas ninguém acreditou nessa história! Nem mesmo
o Ziraldo que era, de todos, o mais amigo do Saci.
O pior foi quando se descobriu que ele havia esque-
cido o seu bornal e, dentro dele, o manifesto!
De repente, o nervosismo foi geral. Todos falavam ao
mesmo tempo, ninguém mais se entendia, até que se ouviu
uma voz forte que chegava não se sabe bem de onde:
— Calma pessoal! Muita calma nessa hora!
De onde vinha aquela voz?
Quem é que estava falando?
Só que ninguém se atreveu a perguntar, e o silêncio
foi geral, pois todos queriam entender o que estava acon-
tecendo.
A voz falou:
— Acabamos de receber a notícia sobre a Revolta
das Personagens! Pelo jeito, a coisa está ruim para nós!
O silêncio tomou conta do espaço. Dava até pra
ouvir a respiração de cada um dos presentes.
A voz, então, escolheu um, entre todos, com quem
conversar:
— Diga-me, Ferreira Gullar. Você que acaba de
escrever a sua primeira história para crianças, o que acha
que está acontecendo?
Ferreira, pego de surpresa, tossiu e depois falou:
— Não tenho a menor ideia! Mas acho que a Revolta
das Personagens não é uma coisa ruim.
A voz continuou:
— Como assim?
Ferreira, que já estava se sentindo mais à vontade,
aumentou o tom da sua voz, falando:
— Como pode ser uma coisa ruim, se conseguiu
reunir todos nós, contadores de histórias, vivos e mortos,
velhos e novos - na idade e na profissão - vindos de vários
lugares do mundo e, ainda, do além mundo, falando línguas
diferentes, mas mesmo assim, tentando nos entendermos?
Apesar do silêncio geral, todo mundo estava gos-
tando daquela conversa entre um contador de histórias
deste mundo com outro contador de histórias do outro
mundo.
Mas tinham ainda a curiosidade de saber de quem
era aquela voz, tão forte e clara, que chegava feito um hino
aos ouvidos de todos.
Então, a voz falou:
— Amigos, aqui quem fala é Andersen! Já faz mais
de 200 anos que deixei a Terra, mas sempre me emociono
ao saber que as histórias que eu contava continuam vivas,
e que as crianças as adoram.
Isso me deixa muito feliz, muito mesmo! Acho que
o Ferreira está certo. Este nosso encontro, mesmo que seja
para discutir a Revolta das Personagens, não pode ser uma
coisa ruim. Em primeiro lugar, porque estamos reunidos e
isso é bom, na verdade, é maravilhoso. Em segundo lugar,
porque nos faz pensar sobre o que estamos fazendo com as
nossas histórias e, também, com as nossas crianças.
E pensar sobre os nossos erros não é ruim! Com essa
Revolta das Personagens estou pensando em meu Patinho
Feio... Continuará o Patinho sendo feio por mais cem,
duzentos, mil anos?
— Mas a história do Patinho Feio pode ajudar muitas
crianças que se sentem diferentes! – era a contadora
tomando coragem para interromper a fala do mestre.
— Você também está certa! Então, podemos matar
o Patinho Feio porque o Patinho Feio cansou de ser feio?
Talvez ele nem seja mais o Patinho Feio, não é?
— Mas um dia foi! Continuou a contadora.
— Isso mesmo! – disse uma outra voz. E o que foi
pode ser mudado no presente, porém não no passado.
Todos voltavam os olhos para o ponto de onde vinha
aquela voz boa e mansa. A voz de Lygia Bojunga, que não
falava, quase declamava.
Andersen, adorando aquela voz, falou:
— Acho que estamos chegando a algum acordo: o
passado não muda, porém o presente pode mudar o pas-
sado. Seria isso?
— Mudar o passado não! Mas talvez curar o passado!
Nos libertarmos da memória escura do passado, explicou
Ziraldo.
— Que coisa certa você nos fala, Ziraldo, e se nos
libertarmos dessa memória escura, teremos um presente
mais iluminado – continuou aquela voz firme, forte e clara
de Andersen. E se tivermos um presente ensolarado, sere-
mos melhores do que ontem. Não seremos?
— Sim, seremos, mas ficaremos melhores ainda, no
amanhã! – falava Umberto Eco, no seu italiano cantado.
Seremos melhores na hora de colher do que na hora
de plantar.
— E o que você acha que estamos colhendo com
nossas histórias, Umberto? Que colheita é essa, a da Revolta
das Personagens? – perguntou Andersen.
— Plantamos personagens criativas, inteligentes,
sensíveis. Personagens vivas, que cresceram em nós e além
de nós. Por isso, é natural que briguem por seus espaços,
sonhos, vontades.
— Está querendo me dizer que elas desejam a maio-
ridade? – continuou Andersen.
— Talvez! Quem sabe não desejam serem donas de
seus próprios narizes? Quando os nossos filhos crescem,
não se tornam livres para escolher? - retrucou Eco.
— Se estou entendendo, a colheita seria então, a
liberdade às nossas personagens. Vocês concordam? Por
favor, quem concordar que diga sim!
E foi um coro de Sim! Sim! Sim!
Porque todos ali amavam o que faziam. Amavam
suas histórias. Amavam contar histórias. Inventar histórias.
E amavam, mais ainda, todas aquelas personagens de cada
história, mesmo quando inventavam uma revolta.
E foi ali mesmo, naquele encontro tão vivo e verda-
deiro entre os autores de cá e os autores de lá, que saiu um
novo manifesto:
Manifesto da LiVerdade
A partir de hoje fica decretado que cada
personagem pode:
Pintar o cabelo de roxo, abóbora, verde ou
arco-íris.
Passear pelas páginas dos livros, pelos
livros das estantes, pelas palavras nas
bocas dos contadores de histórias.
Invadir os sonhos e pesadelos dos seus
criadores, sempre que precisarem conversar.
Segurar as mãos de seus ilustradores,
alterando traços, cores e cenários.
Crescer de tamanho, emagrecer, engordar,
afinar a voz e ficar invisível, se assim o
desejar.
Se transformar em fada, se era só a bruxinha.
Se transformar em bruxa, se era só a fadinha.
Ser fada e bruxa quando quiser.
Crescer se era menino e ser menino, sendo
homem feito.
Trocar de sexo.
Porque a partir de hoje fica decretado que a
vida invade todas as histórias, até mesmo
aquelas que ainda vão existir.
Sendo as histórias invadidas pela vida,
também dão direito aos contadores e
criadores de histórias de pintar seus
personagens como quiserem.
Esse último parágrafo deu pano pra manga, muita dis-
cussão, porque uns achavam que as personagens não iriam
concordar, o que só pioraria a situação. Depois de muito diz
que me disse, alguém falou:
— Acho que a gente deve tentar, não custa tentar! Se
nossas personagens discordarem, então a gente vê como é
que fica.
O Manifesto da LiVerdade foi lido por Andersen e
assinado por todos. Os de cá e os de lá também.
Aí, chegou a hora de decidir quem é que levaria o
manifesto aos personagens de todas as histórias.
A Fada Madrinha? João e Maria? A Bela Adorme-
cida? Os sete anões? Mônica e seus amigos? Mafalda?
Snoopy?
Não havia acordo entre todos.
Até que Andersen deu uma ideia:
— Que tal ser o Saci o nosso mensageiro?
E por incrível que pareça, só o Ziraldo que era entre
todos o mais amigo dele, não queria:
— Mas e se o Saci esquecer o manifesto de novo?!
Um redemoinho chegou ventando na sala, trazendo
pó, estrelas e nebulosas.
Era ele, o danado!
— Saci Pererê não esquece! Mas só leva manifesto se
ganhar mais cachimbos cubanos, capuz e bornal vermelhos
bem novinhos!
Como não havia outro jeito, todos toparam.
Rapidamente, o Manifesto da LiVerdade foi se espa-
lhando pelas histórias de todos os tempos e do mundo
todo. Lido em todas as línguas, o Manifesto foi aceito por
quase todas as personagens. Digo quase, porque é lógico
que ela, a história preferida da contadora, estava dando
o contra:
— Não estou gostando nada disso! O último pará-
grafo devolve a eles toda a liberdade que eles nos dão nos
parágrafos anteriores. Será que vocês não percebem qual
é a jogada deles?
E por incrível que pareça, foi o Saci quem salvou
a situação:
— Que nada! Eu estava lá e vi!
— Viu o quê, Saci? – perguntou a Alice, que estava
adorando aquele moleque de uma perna só.
— Vi que era sincero! Fosse vivo, fosse morto, des-
conhecido ou famoso, todos eles perceberam seus erros.
E como amam vocês de verdade, querem liberdade geral,
total e irrestrita!
Nossa! O Saci Pererê falou tão bonito que acabou
convencendo a todos. Até mesmo aquela história descon-
fiada, a história preferida de Pandora, se deu por conven-
cida. E ela disse:
— Tudo bem Saci! Você pode voltar e dizer pra
eles todos que a gente aceita o Manifesto da LiVerdade
como sendo o nosso manifesto também. Que a gente
assina embaixo.
E como Saci adora uma festança tratou de combinar
uma com todos: fosse vivo, fosse morto, fosse inventado ou
de carne e osso, chegava a hora de comemorar, com direito
a foguetório no céu.
E o dia da festa chegou. A animação foi geral. Menos
pra Pandora, coitada, que toda animada, procurava por
todos os cantos daquela festa danada de bonita, a sua histó-
ria preferida. Nada, nem vestígio! Onde estaria?
De certo estava disfarçada, agora que era livre!
— Oi contadora! Vamos dançar?
— Oi Soldadinho. Cadê a Bailarina?
— Cansei de procurar...
— É... A vida é assim mesmo! Uns vão, outros ficam!
O Soldadinho não entendeu muito bem o que foi
dito, mas o som da sanfona estava tão animado que saíram
dançando pelo salão.
Apesar do sumiço da história preferida da contadora
de história, foi assim que a paz voltou a reinar para todos,
inclusive nos porões e na caixinha de Pandorinha.
Mas, dizem as más línguas, que só por mais cem anos,
quando haverá uma nova revolta, desta vez comandada
pelo Saci.
Um dia, Pandora acordou triste. Muito triste. Uma
tristeza tão grande que não dava nem pra explicar. Era do
tamanho do mar com suas ondas que vêm e voltam, vêm
e voltam.
Talvez aquela tristeza fosse mesmo do tamanho do
céu, repleto de estrelas a brilhar...
A contadora de histórias acordou com aquela tristeza
tamanha que ela não sabia explicar de onde vinha, mas que
lhe roubava até a vontade de viver.
Porque, de repente, ela não tinha vontade de conversar,
nem tinha o que conversar.
Não sentia fome ou sede nem frio ou calor.
Só sentia aquela tristeza aumentando, tomando conta
de todo o seu corpo, do dedão do pé até os caracóis de seus
negros cabelos.
Padre Antonio Vieira
Para
aprender n
ão basta só ou
vir
p
or
fora,
é
necessário entender por
dentro.
Parecendo elástico, se espichava. Parecendo fer-
mento, crescia.
Parecendo fogo, queimava. Parecendo pipoca, pulava.
Assim era a sua tristeza, de um jeito que ela nunca
tinha sentido antes na vida.
Pandora achou que era melhor deixar aquela tristeza
entrar por todos os buracos da sua cabeça. Entrar pelos seus
olhos, ouvidos, boca e nariz de Lobo Mau, porque só com
olhos, ouvidos, boca e nariz enormes é que aquela tristeza
também enorme poderia entrar.
Mas a tristeza queria mais espaço, só aquele era pouco.
A contadora de histórias que agora era só aquela baita
tristeza, falou baixinho:
— Ai!
Mas a tristeza ouviu aquele “ai” fraquinho e não deu
bola. Foi exigindo mais espaço. Queria mais, muito mais!
O jeito seria deixar que ela entrasse por todos os
seus poros.
E foi assim.
Sem pedir licença, a dona tristeza tomou todo o espaço
daqueles buraquinhos que a gente tem por todo o corpo.
Quanto mais ela entrava pelos poros de Pandora, mais
Pandora inchava, parecendo um balão cheio de ar. Só que
um balão cinza, porque a cor da tristeza só pode ser cinza.
Pandora, que não conseguia mais pensar, não conse-
guia mais falar, foi perdendo a vontade de fazer as coisas, de
sair, de passear, de tomar sol, chupar sorvete, dançar, cantar,
e até de contar histórias.
Nossa! Isso era mesmo muito grave!
Gravíssimo!
E por muito, muito tempo, aquela tristeza tomou
conta de Pandora.
E por todo esse tempo em que Pandora serviu à sua
tristeza, não lhe sobrou espaço, nem tempo, nem vontade
de contar histórias.
Porque a única história que havia para se contar, era a
história daquela tristeza.
Mas a história daquela tristeza era uma história
sem palavras.
Uma história de silêncio. Muda, quieta, calada.
Muitos dias e noites se passaram. Muitas manhãs
ensolaradas e chuvosas chegaram e se foram.
Muitas tardes quentes e muitas tardes frias...
Muito vento ventando, levantando as pipas, as folhas,
os cabelos e as saias das meninas...
Muitos trovões barulhentos, latidos de cachorros,
badaladas nervosas do sino da igrejinha...
Até que um dia, uma lágrima saiu do olho esquerdo
de Pandora e, depois, outra do outro olho veio escorregando
pelo rosto cheio de tristeza.
Sem dizer nada, sem fazer nada, ainda feito uma está-
tua, Pandorinha começou a chorar toda aquela tristeza que
uma vez resolveu morar dentro dela.
O dia da saída chegava.
Ficou quieta, só chorando, olhando pro teto e chorando.
E se a tristeza era tão gigante assim, o choro também
deveria ser.
E era.
Só os olhos não davam conta de tanta água salgada
querendo sair.
Mas, como a tristeza sabia muito bem por onde havia
entrado, resolveu sair pelas mesmas portas de entrada.
Imagine! Como duas cataratas de seus ouvidos jorra-
vam águas de tristeza.
A boca aberta lembrava um chafariz, eternamente jor-
rando água colorida de uma tristeza cinza.
E as narinas então! Pareciam dois fios de água, dois
pequenos riachos indo desemborcar no mar.
No mar daquela tristeza toda, que saia agora por
todos os seus poros, molhando toda a cama, todo o quarto,
tirando os móveis do lugar.
Espalhando-se por toda a casa, invadindo a cozinha,
o quintal, o jardim.
Alcançando as ruas, espantando os gatos, assus-
tando as pessoas, alegrando as crianças que magicamente
brincavam nas enxurradas daquela tristeza.
Muita água rolou, muito tempo levou até que Pan-
dora voltasse ao seu normal. Desinchar o corpo, secar
a alma tão molhada de tanta tristeza dá trabalho e leva
tempo.
Enquanto isso, as crianças se divertiram muito e os
gatos se esconderam todos.
Então Pandora gritou:
— Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!!
— E foi um grito tão forte e tão fundo, que toda a
cidade ouviu.
Dizem que todo o universo ouviu, mas se é verdade
eu não sei.
O que eu sei é que o grito profundo da contadora de
histórias, levou finalmente a tristeza pra lá.
Pra lá onde ninguém quer visitar, de medo que aquela
enorme tristeza queira lhe fazer companhia.
E sem a tristeza dentro dela, Pandora se levantou da
cama. Estava toda molhada e saltitante.
Procurou o sol pra se secar.
Depois se lembrou das suas histórias e percebeu que
nos porões de sua cabeça não estavam.
Na verdade, sentia a cabeça bem vazia de tudo.
Como se aquela tristeza gigante que morou dentro dela
por muito, muito tempo, tivesse lhe roubado a memória.
Sim, sabia quem era. Lembrava o seu nome.
Sentia o gosto pelas histórias renascendo dentro
dela. Lembrava que havia até mesmo uma história pre-
ferida, mas não se lembrava nem dessa, que dirá das
outras tantas!
Mesmo assim, só de não ser mais a casa daquela
tristeza toda, já estava bom.
Então, lembrou da caixinha.
A caixinha de Pandorinha, onde todas as suas histórias
moravam.
Onde estaria?
Agitou os cachos de seus negros cabelos ainda
molhados pela chuva de tristeza que saiu de dentro dela e
correu para seu quarto, todo molhado e bagunçado pelo
mesmo motivo.
Será que a sua caixinha estava ensopada?
Será que teria naufragado?
Será que teria sobrevivido àquele mar de tristeza?
Até que deu com ela, toda empoeirada, no alto do
guarda-roupa.
Tinha teias de aranha, e uma aranha bem no meio da
teia, como se fosse a guardiã das histórias de Pandora.
— Oi dona aranha, pode me dar licença?
A aranha não deu, mas Pandora não se zangou.
Com saudade, abriu a caixa, louca de vontade de
rever as histórias que os porõezinhos de sua cabeça já não
possuíam porque estavam vazios, pois ficaram por muito
tempo sem serem visitados.
Mas que surpresa a esperava!
A caixa também estava vazia.
Será que alguém havia se aproveitado de sua tristeza
para roubar-lhe as suas histórias?
Seu coração dizia que não.
Enquanto durara a sua tristeza, ninguém havia
mexido ali.
A poeira era sinal disso. As teias e a aranha também.
Como explicar o sumiço de todas as histórias? Como?
De repente, Pandora prestou melhor atenção ao
interior da caixa e descobriu um bichinho minúsculo.
Resolveu investigar, porque talvez ele fosse a única
pista que teria.
Buscou uma lupa e que susto ela teve!
Aquele bichinho não era um bichinho qualquer!
Aquele bichinho que parecia tão inocente, apenas um
bichinho inofensivo, era um cupim.
Vendo pela lupa, bem de pertinho, nem era tão
minúsculo assim.
Estava gordo, recheado de tantas histórias que havia
comido.
Pandora falou:
— Ei você! Será que não sabe que a gula é um dos
pecados capitais?
O cupim mal podia se mexer de tão gordo e enfas-
tiado que estava, porque o banquete havia sido dos
melhores. O gosto das palavras ainda rondava a sua
boquinha de come-come.
Palavras doces feito o mel, amargas feito o jiló, azedas
como o limão, pesadas como a pedra e fedidas como o
enxofre se mexiam lá na sua barriguinha estufada.
E como se misturavam! A azia que o pobrezinho sentia
era do tamanho da tristeza que a contadora viveu.
Pandora queria matá-lo tamanha era a sua raiva, mas
resolveu pensar melhor, porque com ele vivo, talvez tivesse
alguma chance de recuperar as suas histórias, nem que fosse
só a preferida, que agora morava lá dentro dele.
A contadora pensou muito, enquanto através da lupa
olhava pra ele.
Afinal, tudo que entra um dia, precisa sair em outro.
Não foi assim com a sua tristeza?
Seria assim, também, com as suas histórias que agora
viviam lá, bem dentro daquele cupim guloso.
Pelo tamanho gigante dele, devia ter vivido ali e se
banqueteado com todas aquelas palavras, por todo o tempo
de duração daquela tristeza também gigante.
Foi o que Pandora pensou e, investigando um pouco
mais sobre a vida dos cupins, descobriu que esse bichinho
gosta muito do silêncio, de lugares bem quietos e fecha-
dinhos, tal qual a sua caixinha durante o tempo daquela
tristeza sem fim.
Estava tudo explicado!
O cupim devorador de tudo aproveitou o tempo de
sumiço da contadora para dar sumiço em todas as suas
histórias.
— Que papel feio, heim, cupim?! De tanto comer
papel virou papel também! E de tanto comer palavras virou
palavras também! Já que você é tão guloso, não quer sair
por aí comendo a minha cama, meu guarda-roupa, as portas
e as janelas de minha casa? Aí sim, comendo toda a madeira
vai virar madeira também!
Nossa! A contadora estava fera!
Só que ele nem ligou! Na verdade, ela podia falar o
que quisesse, que ele não tinha a menor condição de reagir,
pois o que ele queria mesmo era tirar aquele amontoado de
palavras enjoativas de dentro dele.
Mas como?
Ele também não sabia e, se arrependimento adian-
tasse de alguma coisa, ele seria o cupim mais arrependido
do mundo dos cupins.
Mais que a própria Pandora, seu maior desejo era tirar
de dentro de si aquele amontoado de histórias com gosto de
desgosto, porque pior que comer uma mesa inteira é comer
a palavra mesa, que a palavra é sempre mais pesada do que
a própria coisa.
Não havia jeito senão esperar o tempo daquelas his-
tórias todas saírem de dentro daquele bichinho nojento.
Porque, uma hora elas iriam sair!
Pandora passou a espiar todo santo dia a sua caixinha.
Duas vezes. Logo que acordava e na hora de dormir, espe-
rando o tal dia que o cupim botasse pra fora o que ele havia
comido sem pedir licença.
Até que em uma manhãzinha, a contadora sentiu que
algo estava para acontecer com aquele cupim.
Dito e feito! Logo que ela abriu a caixa, percebeu um
movimento ali dentro.
Que surpresa! As histórias comidas pelo cupim saiam,
uma a uma, palavra por palavra, vírgula após vírgula, pará-
grafo atrás de parágrafo.
E a sua caixa foi se enchendo de histórias outra vez,
do cheiro delas, do sabor que cada uma trazia, das muitas
cores que encantavam as crianças e os adultos.
Igualzinho a tristeza da contadora, que havia saído
por todas as partes de seu corpo, cada história encontrava
a sua forma de sair do cupim inchado, que foi aos poucos
se esvaziando.
Surpresa com o que via e ouvia, Pandora se deli-
ciava em conhecer as peripécias de um cupim contador
de histórias. Até que ele levava jeito!
Encantada, ela ficou por muitas e muitas horas, a ouvir
suas próprias histórias sendo contadas não por ela, mas por
ele, o cupim – contador de histórias.
Nossa! Eram tantas! Uma mais bonita que a outra!
Algumas bem tristes, outras bem engraçadas. Algumas de
dar medo, outras de magia. E vinham de tantos lugares dife-
rentes, sem contar que muitas delas eram tão antigas quanto
o nascimento do mundo.
De repente, o cupim se empolgou mais do que já
estava empolgado, porque era a hora de contar aquela his-
tória com H maiúsculo.
A história preferida do cupim!
É, porque o cupim também tinha a sua história prefe-
rida e, por azar da contadora, não era a história que ela mais
gostava, pois a história que ele mais amava, era aquela que
falava da sua casa protetora: o cupinzeiro.
Só que o cupinzeiro não era só a casa do cupim,
porque era nela que morava o gênio superior Ndu – o pro-
tetor das colheitas.
E sendo Ndu um gênio do bem, que trazia riqueza
para o homem da roça, era uma coisa muito boa para todo
cupim tê-lo como hóspede de seu cupinzeiro.
Quando Pandora se deu conta, a sua caixinha estava
novamente repleta das suas belas histórias. Mas não era só
a caixinha não, porque os porõezinhos de sua cabeça se
abriam para receber de volta cada uma daquelas histórias
que ela amava tanto.
Agora, Pandora nem tinha mais raiva do cupim!
Afinal, a história dele também era bem bacana.
Nossa! Que coisa boa que era poder recuperar todas
elas, uma a uma.
Epa! Uma a uma?
Não, faltava história!
Foi quando ela descobriu que faltava justamente
aquela que era o seu xodó: a sua história preferida!
Essa, ainda estava lá dentro daquele bichinho estranho.
O que fazer?
Dar um fim naquele cupim seria o mesmo que perder
para sempre a sua história mais querida, e isso seria como
viver pela metade.
Pois sem ela, era como se sentia: pela metade.
Fechar a caixa e deixar o bichinho preso dentro dela
enquanto procurava uma boa ideia que lhe devolvesse a sua
história número um, também era arriscado, já que poderia
dar a louca no cupim, devorando-as de novo.
Era preciso pensar rapidamente, agir mais rápido ainda!
Pandora olhava para o cupim que, por sua vez, olhava
para ela.
Na troca de olhares, ela teve uma ideia.
E se ela pedisse ajuda ao tal gênio Ndu?
Afinal, não custava tentar.
Foi o que fez. Pegou o seu tambor e começou a tocar
chamando por Ndu, pedindo a ele que a ajudasse a salvar a
sua história do coração.
Depois de tanto chamar, de tantos toques no tambor,
Pandora ouviu uma voz que vinha de dentro dela mesma e
lhe dizia:
— Pandora! Pandorinha! É chegada a hora do sacrifí-
cio! Para que recupere a sua história preferida é preciso que
jante o cupim.
— O quê? Jantar de cupim? Isso não passava pela
sua cabeça!
Mas a voz insistiu mais uma vez e, dessa vez, soou tão
forte dentro dela, que todo o seu corpo estremeceu.
Pandora não teve coragem de perguntar se aquela voz
como a de um trovão era a do gênio Ndu e, apesar do nojo
de jantar aquele bichinho, achou melhor não desobedecer.
Depois, qualquer sacrifício valia a pena para obter
sua história amada de volta, e resolveu que o melhor seria
mastigar o tal cupim.
Mas lhe faltava coragem.
Correu até a cozinha e trouxe um copo cheio de água.
Talvez lhe ajudasse a comê-lo e, quando estava se preparando
para mastigá-lo, sentiu que aquele cupim não poderia ser
engolido como quem engole batatas fritas e hambúrgueres.
Aquele cupim era digno de um banquete. Ele e ela
mereciam um banquete.
Afinal, o cupim não trazia dentro de si aquele que era
o maior tesouro para Pandora?
Que nojo, que nada!
Aquele jantar precisava ser uma festa!
Por isso, a contadora correu para o seu quarto e esco-
lheu o vestido mais bonito. Colocou o perfume preferido,
arrumou os negros cachos, sorriu para o espelho e foi pegar
uma toalha de rendas, bordada por sua avó, colocando-a
sobre a grama do jardim de sua casa.
Depois, procurou uma música, para dar o clima.
Sobre o centro da toalha Pandora deixou a sua caixinha
com o cupim dentro dela, à espera de ser comido.
Trouxe um castiçal com três velas vermelhas, acen-
dendo-as tão logo a Lua grávida apareceu no céu.
Foi aí que agradeceu, dizendo:
— Agradeço este banquete, porque este é o banquete
que me devolve a minha história e a minha história é o meu
melhor banquete.
Por fim, respirou fundo, abriu a caixa, olhou para o
bichinho, fechou os olhos e, em um ato de muita coragem,
comeu o cupim inteirinho.
O bichinho devorador de histórias acabou sendo
devorado por Pandora.
Hum! Até que o gosto não era assim tão ruim, ela
pensou.
E o bichinho foi se escorregando por dentro de Pan-
dora, tentando se agarrar em suas cordas vocais, o que deu
um engasgo daqueles na contadora de histórias. Ela tossiu,
pigarreou, tomou água da taça de cristal, fez pose e não o
deixou sair dela!
As batidas do seu coração, fortes como o tambor,
quase que deixam o cupim surdo. Ele tentou de todas as
maneiras uma saída daquele lugar tão estranho, mas não
havia mais jeito, logo descobriu!
E, se não havia mais jeito, o jeito era viver por lá mesmo.
Foi o que resolveu: viver por lá mesmo e conhecer
todas as estações internas de Pandora.
O tempo passou. Horas, dias, semanas, meses.
Às vezes a contadora bem que sentia um movimento
estranho dentro dela, algo que ela nunca havia sentido antes.
Uma espécie de cócegas correndo por todo o seu
corpo do lado de dentro, e ela pensando alto:
— É o cupim! O que será que ele anda aprontando
dentro de mim? Quando é que ele vai, finalmente, devolver
a minha história?
Mesmo assim, Pandora nunca desanimou, apren-
dendo a ser paciente.
E foi bem desse jeito que ela, a contadora, depois de
tanto esperar – que a esperança, Pandora sabe bem, é a
última que morre – acordou um dia com a sua história pre-
ferida na ponta da língua.
Pelo menos corre solto o boato: que com o cupim
vivendo dentro da contadora, foi mais fácil para ela recupe-
rar aquela que era a sua história de encantamento.
Parece que depois disso, o cupim nunca mais deu
sinal de vida no interior dela. É o que dizem!
Ah! Dizem, ainda, que foi daí que nasceu a expressão
“engoliu um sapo”, quer dizer, engoliu um cupim!
Certo dia, Pandora se preparava para contar uma
história. Aquela que era a que ela mais gostava de contar,
lembra?
Adorava ver as reações das crianças, com seus olhares
de surpresa, de alegria ou tristeza sempre que contava histó-
rias e, principalmente, quando contava a sua preferida.
Se as crianças eram ricas ou pobres, negras ou bran-
cas, meninos ou meninas, menores ou maiores, gordas ou
magras não importava, não fazia mesmo a menor diferença.
Pandora sabia que mesmo sendo uma criança tão diferente
da outra, na hora de ouvir uma boa história, o olhar delas
era sempre o mesmo: cheio de brilho e magia.
Os dias em que havia uma boa história para se contar
e se ouvir eram, para ela, os melhores de todos, pois eram
dias de muita alegria e encantamento.
Umberto Eco
Nem
todas as ve
r
dades
s
ão para
todos os ouvidos.
Pandora estava muito feliz, porque se preparava para
um desses dias.
Procurou a história em seu porãozinho e lá estava ela,
alegre e cheia de vontade de sair de seu cantinho protetor.
Procurou a história em sua caixinha e a encontrou,
com os seus cheiros e coloridos próprios.
Tudo estava certo. Tudo daria certo. As crianças iriam
adorar aquela história, disso ela tinha certeza.
Lá fora, fazia frio.
A contadora enrolou o cachecol com as sete caras da
cobra verde, colocou o gorro colorido e partiu cantando,
segurando uma maleta cheia de surpresas.
Porque ela tinha uma maleta meio encantada, de
onde saíam coisas, se não mágicas, no mínimo estranhas, e
outras bem engraçadas.
Assim, ela partiu para a aventura daquele dia.
Ela pensava e sentia que aquele seria um dia de
felicidade.
Mas quando chegou ao local combinado, que
desencanto!
Só havia um menino a esperar por ela.
— Oi! Cadê seus amigos?
— Sei lá!
Pandora não estava entendendo nada, não estava
acreditando no que via. E a história dentro do porãozinho
da sua cabeça, doida por sair, fazendo cócegas em sua
garganta, quase pipocando na língua.
Segurando-a firme lá dentro, disse:
— Por que só você? Cadê as outras crianças?
O menino continuou:
— Elas não vêm porque não gostam mais de histórias.
— Como não gostam mais de histórias?
— Nemdepipasbolapião! – O menino falou tudo de
uma vez, quase engolindo as palavras de volta.
A contadora precisava entender aquele aconteci-
mento na vida de suas crianças, mas estava bem difícil.
Percebeu que sem os meninos e as meninas não
adiantava ter histórias de encantamento, de horror, de risos
e choros, porque sem as crianças, as histórias morreriam
antes mesmo de terem nascido.
Pandora descobriu que se as histórias possuíam uma
alma, ela era de criança.
Sentou no chão e ali ficou, não se sabe por quanto
tempo, parada, travada, com a história preferida entalada
na goela, doidinha pra fugir dali, mesmo que fosse pra ser
contada apenas àquele menino.
Ficou pensando sobre os motivos que levavam as
crianças a não gostarem mais das histórias e, também,
de pipa, bola e pião, como falou aquele menino, mas
não encontrava motivo algum. Nada que pudesse ser
mais atraente ou mais gostoso que brincadeiras e histó-
rias de criança.
O menino ali na sua frente tinha cara de criança triste.
Com olhos opacos, sem aquele brilho que crianças trazem
no olhar, em tempo de aventuras e descobertas.
Mas por quê?
Pandora tentava entender e não entendia. Será que as
crianças haviam mudado tanto assim?
Olhando de novo pra ele, com mais atenção, perce-
beu que além da falta de brilho no olhar, também lhe faltava
cor do sol na pele.
O menino era branco como o sal, parecia mais um
fantasminha!
Credo, um menino que não gosta de pipa, bola, pião,
história e, além disso, era branco como o algodão?!
Aí tem!
O menino, por sua vez, após ter dado o seu recado
ficou ali disfarçando, sem saber se ia ou se ficava. Querendo
ficar, mas sem saber se devia. Afinal, aquela maleta que ela
trazia era bem interessante. E o seu cachecol, então?
Por isso foi ficando.
Até que Pandora perguntou:
— Por que você é assim tão branquinho?
Menino não entendeu a pergunta. Era como todos os
outros meninos e meninas da rua ou da escola. Ele falou:
— Sou como sou, ué!
— Você não toma sol? – quis saber a contadora.
Ele riu e respondeu:
— De canudinho?
Pandora não gostou daquela piadinha do menino, e
fez cara bem séria:
— Você não sabe o que é tomar sol?
O menino, com cara de bobo, achou que sol deveria
ser a marca de algum refrigerante novo e quis saber:
— Que gosto tem?
Pandora sentiu medo. Realmente as crianças haviam
mudado mais do que ela pensava ou queria.
Resolveu ser mais clara:
— Você não brinca na rua, no quintal, na pracinha?
Menino fez que não com a cabeça e seu olhar ficou
mais opaco do que já era, murcho de todo!
Pandora sentiu mais medo. Arrepio que subiu do final
da coluna até o começo:
— Onde é que você brinca?
— No quarto, ué.
— Mas de quê?
— Videogame, ué.
— Sozinho?
— É, ué.
— Só disso?
E ouviu um sonoro NÃO, porque o menino brincava
também no computador e com seus carrinhos de controle
remoto. Ah! E, de noite, assistia muito à TV, a desenhos
bem legais!
— E as pipas, as bolas, os piões e as histórias?
— Sei não! Isso tudo é brinquedo do tempo do meu
pai. Brinquedo sem graça. É chato!
— O quê?
A contadora não acreditava naquilo que ouvia. Resol-
veu se beliscar, porque na certa aquilo não passava de um
tenebroso pesadelo.
Assim ela se beliscou bem forte. O beliscão doeu, dei-
xando vermelho o seu braço.
Quer dizer que tudo aquilo era de verdade.
Não era nenhum pesadelo de horror. Era verdade!
Ver-da-de!
O menino, por sua vez, apontando o cachecol de cobra
verde e carinhas coloridas, criou coragem e perguntou:
— Por que ela tem tantas cabeças?
— Porque ela é mágica, tem poderes.
— Por que cada cabeça é de uma cor diferente?
— Pra levar menino a viajar.
— Pra onde?
— Até a casa dos deuses.
— Mas como?
— Está vendo as cabeças? São sete, uma de cada cor.
Na verdade, as cores do arco-iris, que são como uma ponte
mágica. Quando se atravessa a ponte, chega-se lá...
Na casa dos deuses?
Pandora balançou a cabeça dizendo que sim, e o
menino, cheio de curiosidade, continuou:
— Ela morde?
Pandora riu por dentro e até suspirou um pouco aliviada,
que afinal, nem tudo estava perdido. Depois respondeu:
— Depende do menino! Se o menino for legal com
ela, não morde não! Quer ver?
Ele quis.
Ela tirou o cachecol de seu pescoço, enrolando-o no
dele, que sorriu um pouco tímido.
Já era um começo.
Afinal, quem sabe tornando-se amiga do menino não
descobriria o segredo de todos os outros meninos e meninas
que decretavam ódio pelas histórias, pipas, bolas e piões?
Ele, mais solto, foi se encantando pela cobra verde
e suas sete cabeças coloridas, enquanto Pandora olhava-o
cheia de carinho.
Ela disse:
— O seu nome é Naga.
— Oi Naga! – O menino falou, e riu gostoso.
Pandora aproveitou, colocando a sua mão por dentro
de uma das cabeças da cobra cachecol e, fazendo voz de
Naga, continuou:
— Oi menino! Qual é o seu nome?
— Meu nome é João.
— Oi João! Quer ser meu amigo?
Nossa! O menino queria muito!
E foi assim que a história preferida de Pandora foi
saindo da boca de Naga e entrando pelo menino adentro.
Entrando sim, por inteiro.
Retirando aquele olhar chocho do começo, porque
agora havia um brilho estranho em seu olhar, parecido até
com o daquela cobra de nome esquisito.
Pela boca de Naga, João ouviu toda a história e tão
encantado estava que nem percebeu quando ela acabou.
Porque, na verdade, agora a história vivia dentro dele.
Era dele, e isso ninguém mais poderia lhe roubar.
A história, que agora morava dentro de João, foi
conhecendo João por dentro e gostando de ver o que via.
Porque ele era um menino bonito que só vendo!
Pandora conseguia ver aquela belezura toda que
vinha de dentro dele.
É que, depois da história, o menino sofreu uma trans-
formação, já não era branquelo, já não tinha o olhar parado.
Realmente algo misterioso havia acontecido e mesmo sem
saber o que, a contadora conhecia a magia das histórias.
Sabia que o menino sofria o encantamento delas. Sabia,
ainda, que depois que a gente se encanta com elas não tem
mais jeito, porque se vive encantado para sempre.
Mas será que João sabia que ele não era mais aquele João
tristonho? Será que ele mesmo já havia percebido a mudança?
Ele, quieto ali, precisando daquele tempo de silêncio,
não dizia palavra porque palavra alguma cabia dentro dele.
Nem dentro nem fora.
Por isso, a contadora também silenciou, e naquela rua
tudo parecia dormir. Não havia o homem dos churros, pás-
saros cantando, buzinas buzinando, mulheres conversando,
cachorros latindo.
Apenas o silêncio morava ali.
Só muito tempo depois, quando começou o entar-
decer, João olhou para Pandora e sorriu. Sorriso de menino
que fez as pazes com a vida.
Depois ele falou:
— Nossa! Acho que atravessei o arco-íris.
— É mesmo? – quis saber Pandora, que agora tinha a cer-
teza de que a história morava dentro de João. Ela continuou:
— E o que foi que você viu?
João não queria falar sobre isso, como se fosse um
segredo seu e daquela que agora era a sua história prefe-
rida também.
Ele falou:
— Dá Naga pra mim?
A contadora sabia bem que chegava a hora de passar
a sua história pra frente, não lhe pertencia mais, pois
encontrava outro teto pra fazer de morada, embora em
seu coração ela ficasse para sempre.
— Dou sim, mas só se você sair contando a história
dela por aí. Você topa?
Claro! O menino topou na hora.
Pandora abriu a sua maleta mágica e dela retirou uma
lágrima, dando ao menino para que a bebesse.
Ele bebeu e imediatamente recebeu a palavra em
seu coração.
Não qualquer palavra, mas a palavra mágica, aquela
que chega como a força de um trovão.
Porque agora João deixava de ser um menino qual-
quer. Tinha poderes.
Talvez ele ainda não soubesse, mas ao escolher aquela
história para si, também fora escolhido por ela.
Se João fora escolhido, isso significava tornar-se dono dela.
Tornando-se dono dela, o menino ganhava voz firme
e forte para contá-la a quem quisesse ouvi-la.
Pandora falou:
— Vai! Agora chegou a sua vez de contar essa história
aos meninos e às meninas que você conhece.
João brilhava por inteiro, aquela branca cor de giz, de
porcelana, sei lá, que habitava todo o seu corpo frágil desa-
parecera por completo.
Porque agora o menino era outro, mais parecido com
o Sol do que com a Lua.
Enrolado com parte da cobra Naga no pescoço e a
outra parte, a das cabeças, enfiada em sua mão, subiu no
banco da praça para contar aquela história que agora não era
mais só a história preferida de Pandora, era a sua também.
A voz forte de Naga menino saindo pelo pequeno corpo
de João acordou toda a rua. Era voz de trovão menino.
Crianças da cor de chantili, cujo olhar mais parecia o de
um sapo enfeitiçado, foram saindo de suas casas, deixando as
TVs, videogames e os quartos desinfetados, só pra ouvir Naga
menino contar aquela que agora era a história dona de João.
E ela foi saindo tão suavemente da boca de Naga
menino, que cada palavra cantada alcançava direto o cora-
ção dos meninos e meninas daquela rua, iluminando os
rostos, os olhos, todos os corpos, trêmulos.
A história entrava como palavra mágica que encanta
e salva.
A história fazendo mil caminhos diferentes porque por
alguns entrava pelos pés e em outros entrava pelas mãos.
Também entrava pelos olhos, bocas, ouvidos e, como
uma seta ou lança de luz, alcançava o seu alvo: o coração.
Se todas aquelas crianças já possuíam o segredo
daquela história, é verdade que ela, a história, também pos-
suía o segredo de cada criança.
Conhecia cada medo, cada pequena alegria e todas
as suas grandes tristezas, porque é mesmo muito triste ser
criança e não ter a chance de conhecer um pião, de correr
na pracinha só pra sentir o vento batendo na cara, desarru-
mando os cabelos, de ouvir as cantigas e histórias que façam
adormecer os monstros e os fantasmas da imaginação.
Então Pandora percebeu que chegara a hora de partir
e, sem se despedir de ninguém, foi saindo. Estava alegre e
triste ao mesmo tempo.
Um pouco alegre, porque sua história mais que-
rida fora contada, trazendo de volta o brilho no olhar
daquelas crianças.
Um pouco triste por saber que agora essa que era a
sua história preferida, já não viveria mais em seu porãozi-
nho, pois havia se mudado de mala e cuia para o sótão de
João, o Naga menino.
Mesmo assim, sabia que ela moraria para sempre em
seu coração de contadora das mais belas e antigas histórias.
O tempo passou muito para o João, que daquele dia
em que era só um menino, se viu transformado em um belo
homem contador de histórias a sair por aí, contando as mais
diferentes, de vários lugares do mundo, para muitas crianças
e adultos bem diferentes também.
Porém, aquela continua sendo a sua história preferida.
Se o tempo passou para João, que dirá para Pandora!
Agora, bem mais velha, continua com as suas histó-
rias, mas as conta só para a neta, que adora ouvi-las até bem
tarde da noite.
São histórias antigas, outras mais novas. Histórias dife-
rentes que a contadora insiste em guardar em sua velha cai-
xinha, já tão abarrotada.
Se os seus porões andam superlotados, Pandora dá
um jeito de emprestar alguns da cabeça de sua neta que
ainda se encontram vazios, deixando que algumas histórias
vivam por lá mesmo.
Pandora olha pra ela a ouvir suas histórias e tem
bons sonhos.
Sonha com o dia em que ela será uma grande conta-
dora de histórias como Pandora ainda o é.
Sonha que esse dia não está muito longe.
Imagina Clara, a netinha, ouvindo João – Naga Menino
Grande – a contar a tal história preferida pelos dois.
Chega até a ouvir a voz de Clara dizendo:
— Seu moço, pode enrolar sua cobra cachecol em
meu pescoço?
E João – Naga Menino Grande lhe entrega o velho
cachecol com as sete carinhas coloridas, deixando a garota
encantada como quando ele ainda menino, também ficara.
Ela diz:
— Por que ela tem tantas cabeças assim?
E ele responde:
— Porque tem poderes.
Ela quer saber mais:
— Quais?
E João responde:
— De levar menina bonita para a casa dos deuses.
— Mas como?
— Pela ponte do arco-íris.
Clara tem um brilho estranho no olhar que João –
Naga Menino Grande conhece bem. Ele aproveita e coloca
a mão em uma das cabeças da cobra Naga e diz:
— Meu nome é Naga e o seu?
— O meu é Clara!
E com aquela voz de encantar passarinho, João - Naga
Menino Grande deixa que a sua história preferida vá saindo
do seu coração, feito uma luz brilhante e bem colorida – um
verdadeiro arco-íris que, sem pedir licença, invade o claro
coração de Clara.
Quando a história termina, chega aquele silêncio que
vem tomando conta de tudo.
Nem as folhas das árvores se mexem. Tudo para por
um instante, até que Clara diz:
— Dá Naga pra mim?
E João – Naga Menino Grande se lembra de um
dia mágico em sua vida, quando ele, menino de tudo,
ganhara aquele cachecol de cobra verde das sete caras
multicores.
Sente saudade e emocionado diz:
— Só se você sair por aí contando essa história para
todas as crianças que conhecer.
Clara aceita o convite e recebe para sempre aquela
história, que agora é a sua preferida.
E porque ela escolhe aquela história para ser a sua
história, também é escolhida por ela. Se aquela história
agora pertence à menina, é bom lembrar que a menina
pertence à história e que por isso mesmo, ela se torna
Clara, a menina Naga.
Então, a menina percebe sua avó contadora de histó-
rias com o olhar distante e quer saber:
— Vovó, onde é que está o seu pensamento?
Pandora, avó contadora de histórias, acorda de seu
sonho e diz:
— Morando em uma velha história nova.
A menina quer saber dessa história que desconhece:
— Conta vovó! Conta!
Mas a avó contadora de histórias apenas sorri,
dizendo:
— Um dia querida! Um dia!
É lógico que Clara menina nunca mais dará sossego à
sua avó, até que realmente chegue esse dia.
É que Clara desconhece ser essa a história de seu futuro,
que a avó vem preparando com muito cuidado e carinho.
Uma história de futuro só deve ser contada no dia em
que o futuro chegar.
No dia em que o futuro for presente.
Por isso, Pandora avó contadora de histórias sonha
com a história do futuro. Sonha até se encher tanto de futuro
a ponto de explodi-lo no presente.
Mas, enquanto o dia da explosão do amanhã não
chega, Pandora avó contadora de histórias apenas sonha.
Pelo menos é o que falam.
Falam, ainda, que desde o dia em a sua história prefe-
rida mudou-se para um dos sótãos do então Naga menino,
o porãozinho dela continua vazio, já que Pandora não con-
seguiu colocar lá dentro nenhuma nova história.
Parece que teve um dia em que ela quase colocou
uma placa de “Aluga-se” na porta desse porão, mas depois
desistiu porque lhe faltou coragem.
Desde então, ela sonha com a hora em que Clara
menina Naga lhe trará de volta a sua velha e boa história.
Não faz mal se ela viverá no porão de Clara, não faz mal!
Porque o porão de Clara neta menina Naga contadora
de histórias é um pouco seu também. Tem muito das suas
coisas, suas cores, seus cheiros.
Ela sabe que, de vez em quando, sempre que a sau-
dade crescer e apertar seu coração, ela, Pandora avó conta-
dora de histórias, poderá ir lá visitá-la.
Sempre que Pandora combinava de contar histó-
rias, iniciava-se um ritual daqueles! Por vários dias antes
de a tal contação acontecer, ela mudava o seu jeito de
fazer as coisas, pois já não tinha hora pra comer, dormir
e tomar banho.
Fechava-se em seu quarto e pouco falava com as
pessoas.
Mas não era de nervoso ou mau-humor, não!
É que a contadora ficava horas e horas conversando
com a história que ela iria contar.
Algumas pessoas, as que a conheciam bem pouco, até
pensavam que ela era assim, meio maluca.
Pandora nem ligava.
Quando fechava a porta de seu quarto e colocava
a plaqueta do lado de fora onde estava escrito “Fui!”, as
Clarice Lispector
E
ninguém é eu, e ninguém
é
você
.
Esta é a
solidão.
outras pessoas, as que a conheciam muito bem já sabiam
que deveria ter ido sim, pra algum canto bem escondido,
onde só ela sabia chegar e de onde só ela sabia voltar. Por
isso não se preocupavam.
Ah! Mas que elas ficavam curiosas pra saber o que se
passava lá dentro, isso ficavam!
Só que Pandora nunca falava sobre isso com ninguém.
Às vezes, permitia que a sua cachorra ficasse lá com
ela no quarto fechado, mas só às vezes!
Todo mundo percebia que a cachorra saía de lá bem
diferente do que quando entrara. Parecia mais calma, aba-
nando o rabo sem nenhuma pressa.
E assim ficavam mais e mais curiosas pra saber sobre
os mistérios da contadora, em época de contar histórias.
Mas se eram mistérios como sabê-los?
Se havia assunto sobre o qual Pandora não gostava de
conversar, era esse.
Ela ia logo dizendo:
— Quando o médico vai operar, as pessoas ficam
curiosas pra saber como ele opera? E se a professora vai pre-
parar uma aula, todo mundo quer sabe como ela prepara?
Vêm com o pão que o padeiro faz os ingredientes que ele
usa e o modo de fazê-lo?
E completava:
— Ah! Então não me amolem!
Saía batendo o pé, bufando, irritada.
Por isso, com o tempo, os mais amigos e os da casa
pararam de fazer perguntas a respeito, o que não quer dizer
que deixaram de querer saber sobre os tais mistérios.
Ao contrário, a curiosidade deles só aumentava,
porém aprenderam a disfarçar melhor!
Se bem que sempre deixavam pistas pelo cami-
nho, porque bastava Pandorinha fechar a porta de seu
quarto colocando a tal plaqueta, que o comportamento
de todos mudava.
Ficavam mais silenciosos, sabem?
Falavam mais baixinho, desligavam o rádio e o telefone,
abaixavam o som da TV e, ainda por cima, passavam nas pontas
dos pés pela porta do quarto, encostando os ouvidos nela.
Quem sabe assim não conseguiriam ouvir alguma coisa?
E, às vezes, até que ouviam, porém nunca entendiam
o que ouviam!
Até que um dia, aconteceu algo muito estranho.
Foi quando Pandora se preparava para contar uma
história.
Ela entrou no quarto e lá ficou um tempão, esque-
cendo-se do almoço, do jantar, do banho, do sono, do
banheiro, da cachorra, do telefone, que tocou sem parar,
insistentemente, e ela sequer percebeu.
Na casa ninguém ligou muito, porque era bem desse
jeito que ela fazia sempre quando estava perto de contar
uma história.
Só que dessa fez, além de tudo isso que já era meio
normal para todos, o estranho aconteceu.
Já fazia mais de dois dias que ela estava trancada no
quarto, sem comer ou fazer tudo o mais que uma pessoa
normal faz todos os dias, quando, de repente, ouviu-se
um barulhão.
Ele vinha de lá, daquele quarto com a porta trancada
e a plaqueta dizendo
Seria um trovão? Um avião? Um terremoto?
Depois daquele enorme barulho nada mais se ouviu,
a não ser as pessoas do lado de fora a gritar:
— Pandora, o que foi isso?
— Abre, Pandora, abre!
— Au au! Au au! Au au!
A contadora nada fez. Não gritou, não abriu a porta,
não fez nenhum tipo de movimento lá dentro que deixasse
as pessoas cá fora mais tranquilas.
Os bombeiros chegaram para arrombar a porta
e nem mesmo com a ameaça de arrombamento Pan-
dora saiu de lá. Empurra daqui, empurra dali e a porta
veio ao chão com a plaqueta e tudo, causando o maior
estrondo.
Mas que surpresa os aguardava!
Dentro do quarto tudo estava em seu devido lugar,
menos Pandora, que não estava lá.
Onde estaria?
A busca começou – talvez em seu quarto houvesse
uma passagem secreta, sabe-se lá pra onde, pensavam...
Procurou-se debaixo da cama, dentro e atrás do guar-
da-roupa, no baú, nas gavetas, sob o tapete e até mesmo na
caixinha de Pandorinha, mas nada!
Nada! Pandora havia desaparecido sem mesmo ter
saído de seu quarto. Seria isso possível?
Um chá de sumiço, diziam alguns, enquanto outros
resmungavam:
— Nossa, ela evaporou!
Todos estavam sem entender o acontecido, já que o
acontecido era algo inexplicável que os assustava, e muito!
Afinal, como poderiam explicar aquele desapareci-
mento para lugar nenhum?
Eu sei que você sendo inteligente como é, está pen-
sando na janela, pois todo quarto tem uma janela que dá
para fora da casa, para um jardim, um quintal, ou uma
rua, certo?
Errado! Porque a janela ela não pulou, não!
Simplesmente a janela estava fechada por dentro.
Sem a menor chance!
Resolveram chamar a polícia, que também não
resolveu nada!
Bombeiros e policiais ficaram lá discutindo o mistério
e fazendo perguntas meio tolas.
É, realmente Pandora estava dando um nó na cabeça
de todo mundo e já que ninguém poderia resolver esse mis-
tério, o único jeito era esperar o dia em que reaparecesse e
explicasse a todos o que havia acontecido. Se é que chega-
ria esse dia, se é que haveria uma explicação!
A porta do quarto foi recolocada no lugar. A plaqueta
também.
Por vários dias não se teve nenhuma notícia dela, até
que, do nada, Pandora reapareceu.
Vestida de contadora de histórias, saiu de seu quarto
toda sorridente e serelepe, com uma fome daquelas!
Desejou bom dia para todos e sequer percebeu a cara
de espanto, os olhares que trocavam, os queixos caídos.
O mais corajoso perguntou:
— Onde você esteve todo esse tempo?
Com a boca cheia de queijo fresco, sem dar muita impor-
tância àquela pergunta, que considerou bem boba, respondeu:
— No meu quarto, claro! Onde mais eu poderia estar?
Depois, foi saindo, porque já estava um pouco atra-
sada para a tal contação, deixando-os com caras de mais
bobos ainda.
Sobre o que realmente aconteceu naquele dia,
ninguém soube de fato.
Sobraram uns diz que me disse pra cá, uns zuns zuns
zuns pra lá, mas o mistério permaneceu mistério.
Só que eu estava lá - e vi quase tudo!
O que vi passo a narrar:
Quando Pandora entrou no quarto começou a sua
preparação, o tal ritual, lembra?
Primeiro com o tambor.
Tocou! Cantou! Dançou muito!
Depois despejou pelo tapete todas as histórias de
sua caixinha e começou a lê-las uma a uma, procu-
rando aquela que o seu coração escolhesse, que lhe
sussurrasse:
— É essa Pandora! É essa!
Mas o seu coração parecia mudo. Calado que estava!
Pandora não desistia.
Se dessa vez a história que deveria contar não
estava ali em sua caixinha, talvez estivesse apenas em seu
porãozinho.
E começou a busca.
Vasculhou, varreu, faxinou todos os porões, até que
se lembrou daquela que era a sua história preferida, que há
muito não saía dali.
Bateu à porta desse porão – toc! toc!
Em seguida ouviu aquele ranger de porta velha se abrindo.
Pandora se arrepiou todinha quando ouviu:
— Depois de tantos anos, o que você quer de mim?
Nossa! Como a sua voz estava fraca! Estaria doente
aquela que era a sua história mais querida?
Pandora arriscou:
— Quero que saia desse porão e venha pela minha
boca, por meus olhos, meu coração, por todo o meu corpo.
Silêncio.
Mais silêncio.
Pandora arriscou de novo:
— Então, aceita o meu convite ou vai ficar aí por mais
alguns anos?
Como a história estava enferrujada, levou certo tempo
pra que ela pudesse despertar.
Espreguiçou-se. Os seus músculos enrijecidos esta-
laram feito um trovão bravo e quando as suas primeiras
palavras saíram pela boca de Pandora, estavam tão fracas e
roucas que não se aguentaram e caíram, uma a uma, pelo
chão do quarto.
A contadora catou-as com delicadeza, devolvendo-as
à boca.
Sentiu vontade de espirrar porque engasgara com
uma das palavras meio picantes. Deu um espirro tão forte
que foi levada junto com a história, espelho adentro.
Seria mágico o espelho ou o espirro de Pandora?
O barulho estremeceu o quarto todo, enquanto o
espirro da contadora raptava-a para dentro do espelho.
Ou seria o espelho o raptor do espirro, de Pandora e
sua história?
Foi aí que aconteceu o que você já sabe: do lado de
cá arrombamento, procura daqui, procura dali, bombeiros,
policiais e tudo o mais.
Enquanto que do lado de lá um novo mundo surgia
para Pandora.
Uma voz firme e forte entrou pelos seus ouvidos e
desceu até a altura do seu umbigo.
E o umbigo lhe falou:
— Pandora, como o Sol, como a Lua, como a água,
como o ouro, quando sair daqui seja clara, brilhante e reflita
aquilo que existe dentro de seu coração.
Encantada com a viagem dentro do espelho, com o
que via e ouvia dentro de si, respondeu:
— Quem é você?
Não se ouviu resposta alguma, porque tudo ficou em
completo silêncio, a não ser o barulho do espirro de Pan-
dora, que a essa altura se transformara em pequeno riacho
lavando os pés da contadora, além, é claro, do ronco ron-
cado de sua barriga vazia e faminta.
Como não havia resposta, Pandora insistiu na per-
gunta. Afinal, era a primeira vez que ela via e ouvia o seu
umbigo falar.
— Diga-me, quem é você?
Havia tanta firmeza em sua fala que o umbigo
respondeu:
— Eu sou Nabelcus.
— E o que Nabelcus faz?
Então o seu umbigo resolveu lhe mostrar quais eram
os seus poderes, e abrindo-se como uma boca enorme foi
dizendo palavras. Não quaisquer palavras. Não palavras
soltas. Foi dizendo uma palavra atrás da outra, que contasse
a história preferida de Pandora de uma maneira que ela
nunca havia contado.
A contadora, encantada com aquele novo jeito de
ouvir a sua velha história, descobriu que ela parecia nova,
porque o tal Nabelcus escolhia outras palavras para contá-la,
deixando-a com uma roupa diferente. 	
Aquela história saída do umbigo de Pandora, palavra por
palavra, formava um caminho de palavras que não era nada
reto, não tinha subidas, não tinha descidas, só tinha curvas.
Mais parecia um caracol de palavras no qual Pandora
rodopiava, enquanto ouvia a voz de seu umbigo contar a
sua própria história.
Quando o rodopio parou de rodopiar ela estava bas-
tante zonza, com tudo girando ao seu redor.
Deitou-se na grama de palavras verdes e, de olhos bem
fechados, deixou que as cores das palavras invadissem a sua visão,
para somente os abrir quando tudo ao redor parasse de girar.
E de olhos bem abertos foi que ela se descobriu em
milhares de espelhos espalhados por todos os seis cantos
daquele espaço cubado, espelhando as palavras da sua his-
tória contada por seu umbigo de nome tão esquisito.
Então ela falou:
— Que lugar é este, Nabelcus?
As milhares de outras Pandoras refletidas em todos
os espelhos por ali espalhados, todas, ao mesmo tempo,
falaram juntas:
— Que lugar é esse Nabelcus?
Eles então responderam:
— Aqui é o centro do infinito.
Pandora olhava para todas as outras Pandoras, que se
olhavam umas para as outras e, de repente, começou a se
confundir. Afinal, qual delas seria ela realmente?
Porque naquele lugar espelhado a única coisa que se
via era ela de todos os lados: de frente, de trás, à esquerda
ou à direita, de ponta cabeça ou de pernas pro alto. Infi-
nitas Pandoras se olhavam e se falavam com seus umbigos
também falantes e iguais.
Sem contar que todas as palavras saídas da boca de
seu umbigo contador de suas histórias flutuavam pelo espaço
e se multiplicavam infinitamente.
Como havia chegado até ali se lembrava bem, porém,
não fazia a mínima ideia de como sair, e ainda o porquê de
ter vindo parar ali, já que essa era a primeira vez que isso
acontecia com ela.
Quis ficar com medo, mas não conseguiu, porque
uma força maior impedia que usasse a cabeça para pensar
pensamentos ruins.
Achou que o melhor era entender tudo aquilo, mas
para entender o que não entendia resolveu perguntar:
— O que é o centro do infinito?
E, novamente em coro, todas as Pandoras perguntaram:
— O que é o centro do infinito?
Os umbigos de todas elas fizeram cara de chatice e
responderam:
— É isto aqui, ué!
A resposta de Nabelcus não ajudava em nada... Por
isso Pandora resolveu perguntar diferente, com todas as
outras Pandoras perguntando também:
— E para que serve?
Nabelcus achou aquela pergunta bem melhor que a
outra, e respondeu:
— Aqui no centro do infinito ou você se perde ou se
acha para sempre.
Os outros umbigos falaram igualzinho:
— Aqui no centro do infinito ou você se perde ou se
acha para sempre.
— E o que acontece com quem fica perdido?
— E o que acontece com quem fica perdido?
Bem curto e grosso os umbigos responderam:
— Fica prisioneiro dos espelhos.
Vontade de sentir medo Pandora sentiu, mas de novo
aquela força chegou primeiro, não deixando que os tais
pensamentos entrassem pela sua cabeça.
O pensamento pensado por ela era pensamento de
querer saber, de fazer perguntas, pois só com boas respostas
encontraria um jeito de sair dali.
Sentou no espelho do chão, olhou para o espelho do
céu, fechou os olhos porque já estava meio enjoada de se
ver de todos os ângulos e ali ficou um tempão pensando
pensamentos soltos, lembrando de coisas que já havia
vivido. E, nesse vaivém de pensamentos, sem saber como
nem porque, lembrou da bruxa da Branca de Neve com o
seu espelho mágico.
Será que ali os espelhos eram mágicos também?
Pra saber, só perguntando.
Foi o que fez. Foi o que todas fizeram:
— Espelho, espelho meu! Quais são os seus poderes?
E a resposta ecoou de todos os lados: do alto, de baixo,
da frente, das costas, da direita e, também, da esquerda:
— Tenho muitos poderes, mas o principal é o poder
de refletir o coração das pessoas.
— Mas como?
As vozes das Pandoras entravam por todos os espelhos.
E as vozes dos espelhos entravam por todas as Pandoras.
— Aqui dentro ou você se acha ou você se perde, não
tem jeito. Para se achar é preciso não ter medo da verdade,
da sua verdade, de se ver como você realmente é, com seus
defeitos e qualidades. Para se perder, basta fugir dessa que
é a sua verdade.
Ela quis saber mais e perguntou:
— E por que me trouxeram para cá?
Logicamente, as demais Pandoras fizeram, juntinhas,
a mesma pergunta:
— E por que me trouxeram para cá?
O espelho respondeu:
— Quando alguém se esquece da própria história,
acaba sendo chamado para vir me visitar, e seu dia chegou.
Como é? Vai querer brincar de esconde-esconde ou aceita
enxergar a verdadeira Pandora?
A contadora pensou que não tinha outro jeito, porque
brincar de esconde-esconde significaria só fazer isso, mais
nada, pelo resto da sua vida, o que seria muito monótono,
um tédio.
Ela perguntou:
— E se eu não gostar de ver essa Pandora que eu des-
conheço, poderei modificá-la?
As demais também perguntaram.
E ele respondeu:
— Só depende de você!
Assim, a contadora resolveu aceitar o convite feito pelo
espelho,masnahoradeuumgelonabarriga.Elafechouosolhos,
e todos os olhos das outras Pandoras também se fecharam.
Ficaram assim por algum tempo, até que ouviram a
voz de trovão daquele espelho:
— Abre os olhos, Pandora, vamos!
Ela abriu, e levou um enorme susto com o que via,
porque simplesmente não se via mais em nenhum dos espe-
lhos, embora eles continuassem ali, todos! Os do alto, os
de baixo, os das quatro direções: Norte, Sul, Leste e Oeste,
porém, em nenhum deles estava Pandora.
Mas Pandora estava ali! Ela se via, ela se sentia, então,
como não se refletia em nenhum dos espelhos?
De novo o medo quis aparecer, só que a contadora
não deixou, e resolveu perguntar:
— Espelho, espelho meu, onde você me escondeu?
Todos os espelhos riram daquela pergunta bobinha.
Pandora meio irritada, falou:
— Também quero rir!
— À vontade!
— Mas como, se eu desconheço a piada?
— Acontece que não existe nenhuma piada!
— Então do que é que vocês estão rindo?
E os espelhos pararam de rir, todos ao mesmo tempo,
para responder à contadora:
— Nenhum de nós está escondendo você, Pandora! E
essa não é uma pergunta inteligente!
Aí sim que Pandora entendeu menos ainda, porque
se os espelhos não estavam brincando de esconde-esconde
com ela, então quem estaria? Quem?
Ela quis saber, mas não gostou do que ouviu, porque
todos os espelhos responderam em coro:
— Você, Pandora, você! Enquanto você não mostrar
a verdadeira Pandora que mora aí dentro do seu coração,
nenhum de nós poderá refletir a sua imagem.
É, realmente não havia jeito, pois ou a contadora
abria a porta fechada de seu coração ou então ficaria ali,
presa naquela caixa de espelhos, sem mesmo poder se ver.
Que tristeza!
Pandora falou:
— Eu não sei como se abre a porta, porque ela está
trancada e eu não sei onde coloquei a chave!
O espelho do céu mandou a chave, um raio de luz
que caía do alto entrando em seus olhos e também em
seu coração.
De repente, Pandora se viu refletida em um espe-
lho e depois em outro e mais outro até que, novamente,
estava aparecendo em todos eles, mas em cada um havia
uma Pandora diferente de todas as outras. E agora, qual
seria a verdadeira?
Ela arriscou:
— Espelho, espelho meu, quantas Pandoras sou eu?
E os espelhos, iluminando cada uma delas, foram
oferecendo pistas que lhe mostrassem qual seria ela de
verdade.
Desse jeito, a contadora descobriu quem ela era,
olhando para cada uma daquelas Pandoras que eram de
faz de conta. Foi se desconhecendo e ao mesmo tempo se
reconhecendo:
— Não, eu não sou você!
— Você também é Pandora de mentira!
— Ei! Este não é o meu sorriso!
— Credo! Que choro mais falso!
— Mas que Pandora gulosa!
— Quem diria! Inventando mentiras, menina!
E assim todas as falsas Pandoras foram morrendo
na frente de todos aqueles espelhos, sobrando só uma: a
verdadeira!
Refletida no céu e na terra, nos mares e nas monta-
nhas, na noite e no dia ela se iluminou, deixando que de
seus olhos janelas, de suas mãos conchas, de sua boca ser-
pentina, de seus pés raízes, de sua cabeça pássaro, de seu
coração ninho, de seu umbigo céu e de todo o seu corpo
palavra, sua história saísse para ser ouvida e sentida por todo
o Universo.
Corre solto esse boato que já virou lenda, ou
melhor, mito.
Todas as noites Pandora sonhava o mesmo sonho. Só
que não era sonho de sonhar acordada, não!
E, de manhãzinha, quando acordava, ficava lá
olhando pro teto, pensativa, tentando entender aquele
sonho que ela não entendia e que todas as noites vinha
visitá-la.
Não era sonho que metesse medo ou que trouxesse
tristeza nem alegria. Era sonho estranho, só isso! Mas só isso
já era muito!
E de tanto sonhar o mesmo sonho e de tanto pensar
sobre ele, um dia aconteceu!
Logo que Pandora acordou, descobriu que não
estava em seu quarto, muito menos em sua cama, que dirá
em sua casa!
Então onde é que ela estava?
Fernando Pessoa
O
ho
m
em
é do
tamanho
do seu
sonho.
Ela mesma se fez essa pergunta e, depois de
algum tempo, procurando uma resposta, percebeu que
estava em seu sonho. Aquele mesmo, noturnamente
estranho.
Ela pensou que mais estranho que sonhar um sonho
estranho, era, de repente, vivê-lo.
Por isso achou que não havia outro jeito, senão
deixar que as coisas do sonho acontecessem ali, na sua
vida de verdade.
Respirou fundo e começou a fazer o que fazia no sonho.
Começou a andar. Andar sem parar por um caminho
muito diferente de uma estrada, de uma rua, de um trilho
de trem ou de uma trilha.
Um caminho construído por corredores largos, retos
e brancos que não pareciam ter fim. O branco do chão era
alvo como a neve. As paredes dos corredores, também bran-
cas, eram luminosas. Brilhantes.
As paredes eram altas, sem janela alguma, mas dava
pra ver o céu porque os corredores não eram cobertos.
O céu era de uma manhã bonita, ensolarada, igualzi-
nha a do sonho de todas as noites.
Pandora fazia aquele caminho branco, silencioso e
vazio, porque só ela estava ali, mais ninguém.
Às vezes os corredores se quebravam de um lado ou
de outro, formando novos corredores tal qual aquele por
onde ela andava. Isso deixava a contadora com uma “baita”
dúvida, já que nada se modificava naquele caminho sem
fim. Então, que direção tomar?
Se houvesse ao menos uma escada que subisse ou
descesse para outros lugares, ou, ainda, se esses novos cor-
redores mudassem de cor! Mas não, um era igualzinho ao
outro! Talvez, se houvesse algumas placas que sinalizassem
alguma coisa como: — Pare! Vire à esquerda! Dobre à
direita! Siga em frente!
Mas nada. Nenhuma pista.
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As7vidasdeuma historia (1)

  • 1.
  • 2.
  • 3.
  • 4.
  • 6. Copyright © 2010 por Débora Brenga Todos os direitos reservados. Edição Rose Ferrari Copidesque Katia Auvray Revisão ortográfica Maria Lígia Conti Versão em espanhol Marcia Serrano Projeto gráfico Robson Piccin Design da capa Robson Piccin Ilustrações Victor de Almeida Editoração Robson Piccin Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Regina Célia Ferreira Boaventura – CRB 8/6179 Brenga, Débora B847s As 7 vidas de uma história / Débora Brenga ; ilustrações Victor de Almeida. – [Sorocaba, SP] : Ferrari & Auvray, 2010. 232 p. : il. ; 14 X 21 cm Texto em português e espanhol. Título em espanhol: Las 7 vidas de una historia. ISBN: 978 85 64005 00 6 (broch.) 1. Literatura infanto juvenil. I. Almeida, Victor de. II. Las 7 vidas de una historia. III. Título. CDD 21 808.899282
  • 7. À mãe, que ofereceu-me a vida e, com ela, tantas histórias. A Jana, Oli e Cae, meus filhos queridos, a quem ofereci a vida e, com ela, tantas histórias. Aos amigos, cujo número comportam os dedos de minhas mãos, com quem partilho a vida e, com ela, tantas histórias.
  • 8.
  • 9.
  • 10.
  • 11. Porque esta história começa depois do seu começo, achei melhor deixar aqui algumas palavrinhas que expliquem isso. Na verdade, aquele que deveria ser o primeiro ca- pítulo tornou-se o último, pois Pandora, ou Pandorinha, a personagem principal, só se dá conta de que perdeu sua história favorita no meio dela. Na vida da gente também é assim que acontece: só é pos- sível procurar e achar seja lá o que a gente tenha perdido, quan- do se descobre a perda. Aqui, a contadora de histórias descobre que, perdendo a sua história preferida, não poderia contar mais nenhuma outra. Por isso, inicia sua busca, desejando reencon- trar a tal história que desapareceu do mapa, dos porões de sua memória e da sua caixinha das histórias infinitas. Pandora não perde a esperança, porque sente que essa história fujona ainda vive em seu coração e, assim, des- cobre que toda boa história tem sete vidas. Se uma falha, logo em seguida, a outra dá o recado. Só mais uma coisinha: como esta história foi escrita no gênero literário da novela, você que inicia esta leitura po- derá ler uma das suas vidas e não ler a outra, pois cada vida deve ter começo, meio e fim. Cada uma é uma, embora todas elas sejam a mesma vida, quer dizer, a mesma história: a história preferida de Pandora. Agora, se eu fosse você, leria todas, do começo até o fim. Boa viagem, ou melhor, boa leitura ou, ainda, os dois. Débora Brenga Háum a rosa, que vejo e toco, tec end o-se em meu jardim . E outra, que me olha e toca, e vive dentro de mim .
  • 12.
  • 13.
  • 14.
  • 15. Esta é a história da História (Des) Aparecida do Mapa. A história que sumiu, desapareceu, escafedeu, deixando a contadora de histórias maluca, porque aquela era a história que a contadora mais gostava de contar e era, também, a história que as crianças mais gostavam de ouvir. Parecia que a História (Des) Aparecida do Mapa tam- bém apreciava ser contada, que era feliz assim, fazendo as crianças rirem e se divertirem. Então, o que teria acontecido com ela? O pior é que o sumiço se deu justamente em uma manhã de um sábado meio “preguicento”, quando Pandora se arruma- va pra ir contar a História (Des) Aparecida do Mapa. A conta- dora resolveu chamá-la, e descobriu o seu desaparecimento. E agora? Onde ela estaria? O que teria acontecido? O que fazer? Machado de Assis Esque cer é uma n ecessidade. A vida é uma lousa em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito.
  • 16. Procurou daqui... Procurou dali... Procurou de lá, e nada! Foi dando um nervoso daqueles na coitada da con- tadora, porque a História (Des) Aparecida do Mapa nunca havia desaparecido daquele jeito. Quando sumia da sua ca- beça, logo era encontrada, na caixa onde morava. Uma cai- xa bonita demais! Bem colorida, cheia de balões, borboletas e pipas multicores. Mas desta vez era grave! Porque a História (Des) Apa- recida do Mapa não estava em nenhum dos porões da ca- beça da contadora e, também, em nenhum canto da sua famosa caixa, que era conhecida como “A caixinha de Pan- dorinha”. É que a História (Des) Aparecida do Mapa fugiu de sua casa, ou melhor, de sua caixa, sem deixar explicações. Nada. Nem um bilhete, uma palavra de adeus ou, sei lá, algo que esclarecesse o que havia acontecido. Pela cabeça de Pandora, passavam muitos pensamen- tos, sem que ela conseguisse segurar nenhum deles. Vinham galopando, levantando poeira e, nela mes- mo, desapareciam, feito a própria História (Des) Aparecida do Mapa, deixando a contadora cada vez mais nervosa. Mas vamos começar pelo começo: quando a conta- dora acordou e começou a se preparar para contar a história da História (Des) Aparecida do Mapa, logo deu por sua falta. Em sua cabeça ela não estava. Nela, só um vazio, sem lem- branças, sem recordações, sem memória. Da caixa ela se lembrava, porque a caixa é como se fosse ela mesma. Talvez uma parte de seu corpo. Quem sabe a sua boca e a sua voz, o seu cérebro ou, ainda, o seu coração? Então, ela correu até a sua caixa e a abriu com muito cuidado, pra não alvoroçar as outras histórias que dormiam gostoso. Foi aí que levou o maior susto. Cadê a história? Onde ela havia se metido? Procurou, procurou e não achou... Chamou, chamou, mas nada!
  • 17. Pandora respirou bem fundo, contando até dez, e encontrou uma pista da História (Des) Aparecida do Mapa, junto das outras histórias guardadas naquela caixa cheia de surpresas. Mas só uma pista! A História (Des) Aparecida do Mapa, quem sabe por não querer ser to- talmente esquecida, saiu da folha onde estava escrita, deixando-a quase que totalmente nua. Eu digo quase que totalmente nua, porque a folha onde ela morava ficou assim:
  • 18. Imagine a cara de espanto de Pandorinha! O pior é que o tempo estava passando, o sol cada vez mais forte no céu, anunciando que chegava a hora de contar história para as crianças, que estavam doidinhas para ouvi-la. Mas que história, se ela não estava ali, não estava lá nem acolá? Como contá-la, se não estava em lugar algum? Então, depois de muito pensar, a contadora resolveu que contaria outra história, aquela do “menino que tinha medo de tudo”. Só que, pensando melhor, começou a achar que não dava pra ter medo de tudo. Alguns meninos tinham medo de escuro, outros de água, outros de altura, de fantasmas, mas de TUDO?!!! E aí, quem ficou com medo foi ela mesma! Medo de que as histórias não quisessem mais a sua companhia, medo de que a sua memória fugisse, e ela não lembrasse mais de nenhuma história legal pra contar, medo de que a sua voz resolvesse abandoná-la. Nossa! Com quanto medo ela foi ficando! E o tic-tac do relógio ia deixando Pandora mais nervosa ainda! Foi então que ela resolveu contar uma história que ela mesma havia inventado. Uma que falava de uma garotinha muito perguntadeira, uma tal de Rita-Cabrita. Pronto. O problema estava resolvido. Será? Que nada! O problema continuava lá, porque ela se lembrou de que é a Rita quem gosta de contar a sua própria história... E o tic-tac, tic-tac, tic-tac, deixando a contadora mais nervosa, mais nervosa, mais nervosa ainda! E, de nervoso, gritou tão gritado, que a cidade inteira ouviu o seu grito: — CADÊ A HISTÓRIA QUE ESTAVA AQUI? Em coro a cidade respondeu:
  • 19. — O gato comeu! — Cadê o gato? — Foi pro mato! — Cadê o mato? — Pegou fogo! — Cadê o fogo? — A água apagou! — Cadê a água? — O boi bebeu! — Cadê o boi? — “Tá” amassando trigo! — Cadê o trigo? — A galinha espalhou! — Cadê a galinha? — “Tá” botando ovo! — Cadê o ovo? — O padre comeu! — Cadê o padre? — “Tá” rezando missa na capelinha! A contadora foi, então, até a capelinha, e encontrou a porta fechada, com o gato do padre tirando uma soneca, feito guardião de igreja. Ela falou: — Seu gato, seu gato, acorde! O gato acordou com aquela cara que todo gato tem logo que acorda. E Pandora continuou: — “Tão” dizendo por aí que você comeu a minha história. Isso lá é verdade? O gato, mais sonolento que tudo, lambeu a pata, olhou pra cara dela e falou: — Na história tinha peixe? — Não! — Tinha queijo, coalhada ou requeijão? — Claro que não!
  • 20. — “Tavam” tirando leite da vaquinha? — Não! Ah, então eu não “comi ela”, não! Nossa! Pandora ficou mais nervosa ainda porque, afi- nal, o gato era uma esperança, por pior que fosse, de saber do paradeiro da história. E o nervoso foi virando raiva. Raiva da cidade inteira, que botou a culpa no gato; mas o gato teve uma ideia: —Você já foi ao hospital? Dizem que lá tem um monte de histórias hospitalizadas: de afogados, queima- dos, acidentados... Aí a contadora ficou nervosa de verdade. Já pensou se a História (Des) Aparecida do Mapa estivesse em uma cama de hospital, toda quebrada? E aquele nervoso ficou bem maior do que já estava. Afinal, muita coisa poderia ter acontecido com sua História. E se ela tivesse perdido a memória, e não soubesse mais quem ela era? E se ela tivesse sido atropelada por uma bicicleta, um carro, um caminhão? E se ela tivesse escorregado em uma casca de banana, quebrando a perna, o braço - ou os dois? Quem sabe estivesse com sarampo, catapora, tosse comprida? E se simplesmente tivesse resolvido fugir, levando com ela a esperança que mora no coração de toda meninada? Então ligou: — Alô! É do hospital? — — Por acaso tem uma história internada aí? — — Tudo isso? Nossa! O que será que anda acontecen- do com elas? — — Ah! Será que aí tem uma história engraçada, que
  • 21. faz as crianças rirem um montão? — — O nome dela? É História (Des) Aparecida do Mapa. — — Tem certeza? “Tá” bom! Obrigada! Pandora desligou o telefone um pouco desanimada e um pouco animada também. Desanimada porque já não sabia onde procurar a História e animada porque, pelo menos, a História não estava lá no hospital, toda estropiada e, ainda por cima, tomando injeção. Mas onde estaria? Onde teria se metido? Foi aí que o gato lhe deu outra ideia: — Melhor procurar na delegacia. Talvez ela esteja lá! Na delegacia?! Nem de longe a contadora tinha pen- sado numa coisa dessas, mas achou que o gato tinha razão, e resolveu telefonar pra lá: — Alô! É da delegacia? — — O “seu” delegado está? — — É a contadora de histórias. Ele está? — — Está bem, eu aguardo. E cansou de aguardar o delegado, que demorou um tempão pra atender o telefone. — — Oi, “seu” delegado! Gostaria de saber se alguma história fez Boletim de Ocorrência aí. — — Como? Mais de uma dúzia? — — Não, não é uma história de fazer chorar, não! É uma história bem divertida! —
  • 22. — Que é isso “seu” delegado?! Ela é incapaz de matar uma mosca! — “Tá” bem, então! Obrigada! E, novamente, Pandorinha ficou metade triste e metade feliz. Triste, porque não tinha nenhuma pista sobre o sumiço da sua melhor história. Alegre, porque pelo menos sabia que a História (Des) Aparecida do Mapa não havia sido assaltada, raptada, roubada. Mas então, onde ela estava? Veio o gato de novo lhe dando a pior das ideias: — Já procurou no cemitério? — Sai pra lá, gato agourento! “Tá” querendo matar a minha história, é? — Eu não, de jeito nenhum! Só que tudo que vive, morre, né? Aí sim que Pandora perdeu a voz, a cor, tudo! Já pensou se aquele gato estivesse certo? O que faria sem ela? Como sobreviveria sem a melhor das histórias? Mais que depressa, ela ligou pra lá. — Alô! É do cemitério? — — O coveiro está? — — Como? Ele está enterrando quem?! — — Ah! Que susto! Pensei que era... — — Está bem, eu espero. E esperou um tempão, até que o coveiro atendeu. — — Oi, “seu” coveiro! Aqui é a contadora de histórias. Tudo bem com o senhor? —
  • 23. — Comigo? Mais ou menos! É que eu estou muito preocupada com o sumiço de uma história. Já liguei pro hospital, pra delegacia e ninguém tem nenhuma pista sobre ela. Então, eu pensei: será que o coveiro não a enterrou? — — Tantas assim? — — Nossa! Então o senhor é um coveiro que conhece muitas histórias! É um coveiro contador de histórias? — — Ah! Claro! Todas elas já morreram! E quem quer ouvir uma história morta, né? — — O nome dela? É História (Des) Aparecida do Mapa. — — Tem certeza? — — Que bom! Muito obrigada! A contadora desligou o telefone, dando pulos de alegria. Afinal, a história não estava morta, não havia sido enterrada, e essa era a melhor notícia, mesmo que não soubesse onde ela estava. Estando viva, estava bom! O gato pensou, pensou e perguntou: — Que conversa era aquela com o coveiro? — Qual? — De história ter vida. — Lógico, né? Se a história tivesse morrido, ninguém “contava ela”! E o gato mais pensativo ainda, continuou: — Quer dizer que toda vez que você conta uma his- tória, ela já não é mais a mesma? — Claro que não! Sempre que eu conto uma história, ela é sempre a mesma história! O gato, então, deu um pulo pra trás, subiu no muro e falou:
  • 24. — Será que as histórias têm sete vidas como nós, os gatos? A contadora riu um montão, mas de nervoso, e depois perguntou: — Por quê? — Porque se a história está viva, ela tem que mudar, né? Agora, se ela não muda e continua viva, então deve ter sete vidas, como os gatos, certo? Nunca que a contadora tinha pensado daquele jeito, mas talvez o gato tivesse lá a sua razão. Resolveu ouvir com atenção aquele bicho inteligente. Ele continuou: — Vai ver a sua história foi pra maternidade fazer nas- cer uma história nova. Quem sabe ela não enjoou de ser sempre a mesma história? Mais que depressa a contadora ligou pra maternidade. — Alô! De onde falam? — — Por acaso não tem uma história aí se achando velha, querendo nascer uma nova história? — — Verdade? E quantas novas histórias já nasceram? — — Tudo isso? — — Tem alguma que se chama História (Des) Apareci- da do Mapa? — — Puxa, que pena! E desligou o telefone com aquela cara muxoxa, por- que a História (Des) Aparecida do Mapa também não estava na maternidade, nascendo história nova. O gato também desanimou. Só mais tarde, depois de uma boa soneca, ele teve outra ideia: — Ei, contadora! Já pensou em procurar a História
  • 25. naquela seção de perdidos e achados? Talvez... Não deu tempo de ele terminar porque Pandora já estava com o telefone na mão: — Alô! É da seção de Achados e Perdidos? — — Por acaso vocês não encontraram uma história que desapareceu do mapa? — — De que mapa? Do Brasil, é claro! — — E dá pra deixar um classificado? — — Escreve aí: — Ficou bom? — — Então, tá! Muito obrigada! Desanimada, mais uma vez, a contadora deitou no chão, sem vontade de fazer mais nada. O gato, que sempre vive com vontade de fazer nada, deitou bem pertinho dela, pedindo um aconchego. Mas ela nem percebeu, tão preocupada estava com
  • 26. o sumiço da História (Des) Aparecida do Mapa, até que o gato arriscou: — Será que o carteiro não tem notícias dela? A contadora levantou, deu um beijo na testa do gato, que ficou todo manhoso, e correu pro telefone: — Alô! É do Correio? — — O “seu” carteiro está? — — Como? Ele já saiu entregando a correspondência? — — Até logo, então, obrigada! — Foi aí que Pandora resolveu ficar no portão da sua casa, esperando o carteiro passar. De repente ele tinha uma boa notícia! Sentou na cadeira de balanço e esperou. O balanço da cadeira ia e vinha, ia e vinha, e o relógio aborrecente tiquetaqueava. O balanço deixando a conta- dora molinha de tudo e o tic-tac daquele relógio infernal a apavorando, porque não a deixava esquecer que a hora da história estava chegando. Mas cadê a história pra contar? Enquanto a menina ora ficava molinha de tudo, ora feito um vulcão, pronta pra explodir, o gato foi saindo de fininho, porque acabara de ter uma ideia genial. Pelo menos ele achava que era. Quando o Sol já estava baixando, tirando da conta- dora quase que por completo a esperança de reencontrar a História (Des) Aparecida do Mapa, o carteiro, que se cha- mava Hermes, chegou e gritou: — Olha a correspondência! Pandora deu um pulo da cadeira e correu até o car- teiro pra pegar uma caixinha de cor bem laranja, que ele tinha nas mãos. — Oi, mensageiro!
  • 27. — Oi contadora! Tem mensagem do Olimpo pra você. Ela sorriu agoniada e mal conseguiu agradecer ao car- teiro, porque estava desesperada para abrir aquela caixinha cheia de . Dentro dela havia um envelope feito um céu noturno estrelado, e dentro dele, uma folhinha fina, quase transpa- rente, com poucas palavras: Pandora respirou aliviada. Não fazia mal se a sua me- lhor história estava longe. Estando bem, estava bom! Depois, ficou cheia de pensamentos tristes, pois pela
  • 28. primeira vez havia deixado as suas crianças sem história. Então lembrou-se do gato; onde andaria aquele danado? Chamou pelo bichano, e nada! Saiu procurando por ele, perguntando pra um, perguntando pra outro, até que encontrou um garotinho que vinha feliz da vida, pulando pela rua, igual a um canguru ou um sapo, sei lá. Ela parou e perguntou: — Ei, menino! Cadê o gato que estava aqui? — O menino não parou, não. Continuou pulando o seu caminho e foi falando, enquanto pulava: — Foi contar história pra criançada, lá pra banda do Brejo do Beijo. — Que história? — A que desapareceu do mapa. — De que mapa? Mas o menino já ia longe, desaparecendo também do mapa daquela rua, até que sumiu por completo. Virou um pontinho preto no horizonte. Já a contadora sentou na beira da calçada sem enten- der mais nada! Ficou ali feito uma estátua gelada, até a Lua aparecer alta no céu. Então, ouviu a voz do gato: — Oi contadora! — Oi gato ladrão! — Eu?! — Você sim! Cadê a história que estava aqui, heim? — Está com as crianças do Brejo do Beijo, uai! — Cadê as crianças do Brejo do Beijo? — Procurando a contadora de histórias! — Cadê a contadora de histórias? — Desapareceu do mapa, enquanto procurava uma história também desaparecida! E foi aí que caiu mais uma ficha da contadora, que aprendeu outra lição sobre as histórias: quando você não
  • 29. tem nenhuma história para contar, conte a história de não ter histórias, porque tudo tem história, até mesmo quando a única história que tem é aquela de uma história fujona. Pandora deu um beijo estalado naquele gato danado de esperto e o convidou para ser seu assistente. Como ele não gosta de trabalhar todos os dias, foi disfarçando, disfar- çando, enquanto saía de cena. Pegou a sua trouxinha, botou nas costas e disse: — Até mais ver, contadora! Um dia eu volto com his- tórias novas pra contar! A contadora pensou: acho que já vivi isso! Depois, disse adeus e foi-se embora. Agora não esperava notíciassódaquelahistóriamalagradecida,não!Porquetambém tinha o gato, que havia ficado para sempre em seu coração. O tempo passou um montão! Um dia ela recebeu uma carta dizendo assim:
  • 30. O queixo da contadora caiu! Quer dizer que?!... Caracas! Bom, esta história entrou por uma porta e saiu pela outra, quem quiser que conte outra, ou tente contar esta mesma!
  • 31.
  • 32.
  • 33. Como Pandora não conseguia encontrar a sua histó- ria preferida em nenhum dos porõezinhos que moravam dentro da sua cabeça cheia (de porões e de histórias), resol- veu procurá-la em sua caixinha. A caixinha onde ela guardava todas as suas histórias: a caixinha de Pandorinha. Mas que susto levou, logo que abriu sua caixa guarda- dora de histórias! Lá dentro, nada estava em seu lugar. Parecia que um temporal ou um furacão havia passado por ali, desarru- mando tudo. Que confusão! Pandora chamou por ela, pela história mais querida, mas não a encontrou, porque na certa estava brincando de esconde-esconde com ela, que não estava nem um pouco a fim de brincar. Ítalo Calvino Escre ver é semp r e esconder al go de m odo q ue mais tarde seja descoberto.
  • 34. Foi quando deu de cara com o Soldadinho de Chumbo, procurando pela Bailarina. A contadora falou: — Oi, Soldadinho, você pode me dizer o que está acontecendo aí dentro? O Soldadinho fez de conta que não era com ele, con- tinuando a sua procura. A contadora de histórias achou aquilo muito estranho, porque o Soldadinho não era mal educado. Realmente, alguma coisa estranhíssima estava acontecendo com os seus porões guardadores de histórias e, também, com a sua cai- xinha, guardadora das mesmas histórias. Então, a contadora ficou um tempão olhando pra dentro da sua caixinha, enxergando coisas um tanto esquisi- tas para ela, como o Gato de Botas, que passeava no tapete mágico de Aladim, enquanto o dono do tapete calçava as botas do Gato, pulando feito um louco dentro da caixa. Parecia que tinha molas nos pés! Mas não era só isso, não! A Bruxa Malvada, que havia perdido o seu caldei- rão no meio daquela bagunça toda, emprestava a panela do Menino Maluquinho pra que ela pudesse continuar a fazer as suas poções mágicas e, logicamente, as suas maldades. Imagina o Menino Maluquinho sem a sua panela napoleônica na cabeça! E o Peter Pan então? Parece mentira, mas o garoto usava paletó e gravata, porque cansado de ser um eterno menino, queria agora crescer, ser um homem de verdade. Como se fosse suficiente usar paletó e gravata pra se tornar um homem de verdade, né? Foi o que Pandora pensou. E, assim, a contadora, depois de ver tudo aquilo e muito mais acontecendo dentro de sua caixinha, resolveu dar um basta. Deu um grito daqueles. Um grito que até
  • 35. acordou a Bela Adormecida. Um grito que deu a volta ao mundo em alguns segundos. — CHEGA! QUE BAGUNÇA É ESSA AÍ DENTRO? ALGUÉM PODE ME EXPLICAR O QUE ESTÁ ACONTE- CENDO? E tudo dentro da caixa parou, com o tamanho e a força daquele grito, que vinha lá de dentro do coração de Pandora. Como estátuas assustadas ficaram por alguns segun- dos, até que o Soldadinho de Chumbo resolveu falar em nome de todos: — Oi contadora, como vai? A contadora foi logo ao assunto: — Você pode me dizer o que está acontecendo? O Soldadinho contou que todas as personagens das histórias que viviam ali haviam decidido fazer uma rebelião, à qual chamaram de Revolta das Personagens. — Mas por quê? – quis saber a contadora. — É que estamos bem cansados de viver sempre a mesma história, de sermos prisioneiros da vontade daqueles que nos criaram. Terei sempre que ser feito de chumbo? A Bruxa Má deverá ser sempre má? A boneca Emília, que é melhor que muita gente feita de carne e osso, deverá ser sempre de pano? O príncipe sempre vira sapo? A Alice só conhece o País das Maravilhas? A contadora estava boquiaberta, surpresa com o que ouvia, e resolveu perguntar sobre a sua história preferida, pois achava que ela teria papel importante naquela revolta no interior da caixa. — Isso eu não posso contar, não! – continuou o Soldadinho. — Será que não confiam mais em mim? Confiar, confiavam, mas desconfiando. Quanto à his- tória que ela mais gostava, estava bem segura em algum lugar no meio daquelas tantas outras histórias guardadas ali.
  • 36. Quem sabe não estivesse no meio da floresta, na mina dos Sete Anões? Na casa de João, aquele do pé de feijão? Afinal, ela era a líder da revolta e carecia de proteção. Tudo isso e muito mais o Soldadinho de Chumbo falou, enquanto Pandora só ouvia, ficando cada vez mais surpresa! Até que ela disse: — Eu posso saber o que é que vocês esperam com essa revolta? Mais que depressa o Soldadinho respondeu: — Queremos liberdade de expressão, pois cansamos de ser sempre os mesmos, sempre com as mesmas histórias que nunca mudam. Queremos que os nossos criadores nos ouçam, pois logo depois que nos criam já se esquecem de nós, porque estão com a cabeça fervendo de novas histórias e personagens, que também ficarão esquecidas assim que nascerem. Vivem em um círculo vicioso! Puxa, a contadora estava agora era de queixo caído! Então disse: — Mas como vou reunir todos os criadores de histó- rias? Muitos já morreram! Outros vivem em partes diferen- tes do mundo! Isso é impossível! O Soldadinho de Chumbo levantou os ombros como quem diz: se vira! Depois respondeu: — Isso não é um problema nosso! O nosso problema eu já contei pra você! Pandora arriscou uma pergunta: — E o que devo dizer a eles? — Diga que só voltaremos a ser quem somos depois que resolverem nos ouvir! Diga que não somos marionetes! Que queremos nossa liberdade para ir e vir, quando e onde quisermos. E foi nessa hora que a contadora se emocionou, com os seus pelos do corpo todo eriçados, porque de dentro da caixa uma salva de palmas, assovios e gritos de guerra se iniciaram.
  • 37. Rapidamente, todas as personagens se uniram em uma marcha, uma volta ao mundo em oitenta passos, gri- tando ao som do tambor que o Menino Maluquinho batia: — NINGUÉM NOS PRENDE EM SEUS PORÕES! — NINGUÉM NOS PRENDE EM SUAS CAIXAS! — NINGUÉM NOS PRENDE EM SEUS LIVROS! — NINGUÉM NOS PRENDE EM SUAS ESTANTES! — NINGUÉM NOS PRENDE EM SUAS PALAVRAS! — NINGUÉM NOS PRENDE EM SUAS BOCAS! — NINGUÉM NOS PRENDE EM SEUS OLHOS! — NINGUÉM NOS PRENDE EM SEUS CORAÇÕES! — NINGUÉM NOS PRENDE EM SEUS PENSAMENTOS! — SOMOS LIVRES PARA SER QUEM SOMOS! A essa altura, nem lembravam mais que a conta- dora estava ali, assistindo a tudo, emocionada até, orgu- lhosa de saber que a sua história preferida era o pivô daquilo tudo. Depois, fechou a caixa sem sentir os seus pés. Parecia que não tinha chão, preocupada, sem saber o que fazer. Como localizar os autores de cada uma daquelas histórias, daquelas personagens? Que tarefa difícil! Sentia que estava com um problema gigante para resolver. Não conseguia imaginar o mundo sem histórias boas de se contar. Sem elas, certamente o mundo seria mais triste, tecido
  • 38. em preto e branco. Um mundo sem sonhos, sem cores bri- lhantes... Seria um mundo assustador, um mundo morto. Assustada com aquelas ideias, Pandora correu a tele- fonar pro pai do Menino Maluquinho: — Alô! Ziraldo? — — É a Pandora. Você nem imagina o que está acon- tecendo! — — Como? Quem lhe contou? — — E a Professora Maluquinha? Também faz parte dessa revolta? — — Até ela?! — — O que faremos? — — Está bem, então, até amanhã, sem falta! Um beijo! Depois que desligou o telefone, a contadora ficou pensando num jeito de convidar aqueles autores já mortos para a tal reunião que iriam fazer. Mal dormiu naquela noite, porque só pensava nisso. Como avisar Andersen, Lobato e os Grimm? Se unir os que estão vivos não é tarefa fácil, imagina os que já morreram? Acabou dormindo, e na manhã seguinte acordou com uma ideia que achou que era boa e levou pra reunião, onde só havia feras: Ana Maria Machado, Umberto Eco, Ruth Rocha, Ziraldo, Lygia Bojunga, Eva Furnari, Tatiane Belinky, Chico Buarque de Holanda, além de um montão de novos auto- res contadores de histórias, como ela.
  • 39. A cara de preocupação era geral. A de sono também. Parecia que não tinham pregado o olho. Na certa também ficaram pensando um jeito de avisar os escritores mortos do que estava acontecendo aqui na Terra, com as suas his- tórias e personagens. O silêncio era geral porque ninguém se atrevia a começar a reunião. Olhavam uns para os outros com um olhar que pedia: Começa, vai! Fala você! A contadora contou até mil, pigarreou, tossiu e começou: — Hoje de manhã eu acordei com uma ideia que talvez nos ajude a conversar com aqueles escritores que já morreram. Os olhos de todos se voltaram para ela. A curiosi- dade era geral. Encabulada, sem saber onde enfiar a sua cara, ela continuou: — O que vocês acham de a gente enviar um perso- nagem-mensageiro pra lá, no lugar onde estão os mortos? Tem que ser um personagem-mensageiro que morra em sua história, como é o caso do Lobo Mau. Um persona- gem-mensageiro-morto tem acesso aos escritores mortos, não tem? Ninguém se atrevia a falar. O silêncio foi deixando a contadora mais nervosa ainda, até que a Ruth Rocha falou: — Acho a ideia boa, mas acredito que o Lobo Mau não faça isso para nós! Nem o Lobo da Chapeuzinho nem o dos Três Porquinhos. Afinal, se eles eram maus enquanto vivos, por que mudariam depois de mortos? Pronto! A reunião pegava fogo! Todos queriam falar e falavam ao mesmo tempo, sem que ninguém entendesse nada. Foi o Ziraldo, com uma panela igualzinha a do Malu- quinho, batucando e fazendo muito barulho, quem colo-
  • 40. cou ordem na casa. — Calma pessoal! Desse jeito não iremos a lugar algum. Que tal falarmos um por vez? Ai, que falta me faz a Professora Maluquinha nessa hora! O silêncio voltou, apesar de alguns cochichos aqui e ali. Então, o Chico Buarque se lembrou do Lobo da Cha- peuzinho Amarelo, que nem era tão mau assim, e que de tanto falar LOBOLOBOLOBOLOBOLOBO acabou virando BOLOBOLOBOLOBOLOBOLO, fácil de comer. Quem sabe ele não poderia ser o porta-voz de todos? Uns eram a favor, outros eram contra, enquanto a contadora ficava quieta num canto, aflita mesmo, porque o tempo do relógio passava rápido: TIC-TAC! TIC-TAC! TIC-TAC! E não se chegava a nenhum acordo. Foi o Umberto Eco quem deu a ideia de uma vota- ção. Assim escolheriam aquele que seria o tal personagem- mensageiro. O Ziraldo sugeriu o astronauta da sua história, o do pequeno planeta perdido. Ele não era morto, mas era craque em viagens siderais. Ele até que era um forte candidato, mas será que deixaria a sua namorada Rosa? Será que ele também não fazia parte da Revolta das Personagens? Ziraldo garantiu que não, porque a essa altura estava bem longe do planeta azul, ouvindo CDs e namorando. Os três lobos das três histórias: das Chapeuzinhos Vermelho e Amarelo e o dos Três Porquinhos eram candi- datos naturais. Foi então que a Eva Furnari pensou na sua Bruxi- nha Sorumbática. Quem sabe, com seus poderes, ela não topasse? Bruxa era perigoso, falou a Tatiane Belinky:
  • 41. — A gente não pode confiar totalmente nelas. Depois, a nossa missão é muito séria! Quem garante que ela também não faz parte dessa tal Revolta das Personagens? Deu muito pano pra manga aquela conversa sobre bruxas, porque alguns gostavam muito delas. Na verdade, todos gostavam delas, mas entre gostar e confiar havia muita diferença. A contadora, o tempo todo, só olhando para o reló- gio, com aqueles ponteiros que pareciam dançar com muita agilidade e rapidez. Lembrou do relógio mole de Dali. Quando iam começar a votação, eis que chega o Saci Pererê, empestando o ar com o seu cachimbo fedorento. Correu pro colo do Ziraldo, cochichou em seu ouvido e ficou esperando a reação do amigo. A cara do Ziraldo se abriu em um sorriso largo. Tudo sorria: os olhos, a boca, a testa, as bochechas. Tudo. Aí, ele falou: — Pessoal! O Saci teve uma ideia genial. Diz que anda com muita saudade do Mário de Andrade e que pode fazer o favor de levar a nossa mensagem aos escritores mortos, só pra poder rever o amigo de tantas aventuras. A contadora pensou se o Saci seria ou não confiável. Pensou, mas não falou! Só que o danado do negrinho, que deve ler pensa- mentos, subiu sobre a mesa e pulando com uma perna só, foi logo dizendo: — Saci Pererê é aprontão! Gosta de fazer das suas, mas não gosta que duvidem dele! Se tem alguém aqui que não confia nele é melhor falar agora! A contadora resolveu encarar: — Eu só penso se você não faz parte dessa tal revolta! Saci rolou de rir naquela mesa, e quase se espatifou no chão. Depois ficou sério, olhou bem nos olhos da con- tadora e disse:
  • 42. — Bem se vê que você não entende nada de Sacis! É novata! Onde já se viu pensar que o Saci pode estar can- sado de ser Saci? Eu sou o único que posso mudar a minha história! Inventar quantas eu quiser sem ser filho deste ou daquele escritor, porque Saci já existia, muito antes de qualquer escritor ou contador de história nascer. Foi aplaudido por todos, até pela contadora, que sentiu firmeza naquele Saci Pererê. Mas aí, o Saci começou com algumas exigências. Só viajava no tempo e no espaço dos escritores mortos se fosse de primeira classe. Com direito a 10 cachimbos cubanos e uma troca de toca por dia, enquanto durasse a viagem. Todo mundo topou. Só que o Saci não podia demo- rar, porque a coisa estava pegando fogo, ele bem sabia! O Saci não gostou muito dessa parte, pois queria ficar de férias por lá, no mundo dos escritores mortos. Rever o amigo Macunaíma, que agora já era estrela. Então, depois de um pouco mais de blá, blá, blá, todos concordaram que o Saci podia ficar por lá o tempo que quisesse ou que aguentassem a visita dele. O que ele não podia era demorar a chegar até lá e reunir os amigos escritores que já não viviam por aqui, no nosso planeta Terra, explicando para eles tudo sobre a Revolta das Per- sonagens. O Saci topou, mas depois pensou melhor e não gostou. — Por que, Saci? – perguntou o Ziraldo, que era o mais íntimo dele. — Que graça vai ter eu ficar por lá, se todos eles virão feito foguetes para cá? Mas o Pedro Bandeira que acabava de chegar, falou: — Faz o seguinte, Saci: você vai, vem, e depois volta com todos eles. Saci Pererê se assanhou. Achou aquela ideia genial,
  • 43. desde que as trocas de cachimbos e de tocas estivessem garantidas em todas as suas idas e vindas. E tinha outro jeito? — Não, não tinha não! É pegar ou largar! - respon- deu o Saci, já querendo se despedir para a sua longuíssima viagem em um redemoinho à velocidade da luz. Mas o Ziraldo foi mais rápido e falou: — Calma aí! Primeiro a gente vai escrever um mani- festo para você entregar nas mãos do Andersen, certo? Saci não gostou. Que Andersen, que nada! Queria mesmo era cair nos braços do Mário. Entregava o manifesto pra ele, que ele entendia bem desse negócio de manifesto. Mário sim, que entregasse pro Andersen. E pra não alongar mais aquela conversa, assim foi feito. Chegou a hora da despedida, coisa que o Saci detes- tou porque vieram as muitas recomendações: “Cuidado com o nosso manifesto, não vá perdê-lo por aí! Vê se não para no meio do caminho pra zombar de ninguém! Deixa a crina do Pégaso sem nós, tá?” Nossa, o Saci foi ficando enjoado de tanto con- selho e falação na sua orelha, que deixou todo mundo comendo pó, porque levantou o seu redemoinho e nele desapareceu. O jeito agora era esperar. O arteiro garantiu que ia num zás trás! Que daqui – ali era pertinho, tão perti- nho, que mal ia dar tempo de piscar um olho e já estaria chegando lá, e quando piscasse o outro olho já estaria chegando aqui, com toda aquela cambada de autores fantasmas. Mas ninguém acreditou nessa história! Nem mesmo o Ziraldo que era, de todos, o mais amigo do Saci. O pior foi quando se descobriu que ele havia esque- cido o seu bornal e, dentro dele, o manifesto! De repente, o nervosismo foi geral. Todos falavam ao
  • 44. mesmo tempo, ninguém mais se entendia, até que se ouviu uma voz forte que chegava não se sabe bem de onde: — Calma pessoal! Muita calma nessa hora! De onde vinha aquela voz? Quem é que estava falando? Só que ninguém se atreveu a perguntar, e o silêncio foi geral, pois todos queriam entender o que estava acon- tecendo. A voz falou: — Acabamos de receber a notícia sobre a Revolta das Personagens! Pelo jeito, a coisa está ruim para nós! O silêncio tomou conta do espaço. Dava até pra ouvir a respiração de cada um dos presentes. A voz, então, escolheu um, entre todos, com quem conversar: — Diga-me, Ferreira Gullar. Você que acaba de escrever a sua primeira história para crianças, o que acha que está acontecendo? Ferreira, pego de surpresa, tossiu e depois falou: — Não tenho a menor ideia! Mas acho que a Revolta das Personagens não é uma coisa ruim. A voz continuou: — Como assim? Ferreira, que já estava se sentindo mais à vontade, aumentou o tom da sua voz, falando: — Como pode ser uma coisa ruim, se conseguiu reunir todos nós, contadores de histórias, vivos e mortos, velhos e novos - na idade e na profissão - vindos de vários lugares do mundo e, ainda, do além mundo, falando línguas diferentes, mas mesmo assim, tentando nos entendermos? Apesar do silêncio geral, todo mundo estava gos- tando daquela conversa entre um contador de histórias deste mundo com outro contador de histórias do outro mundo. Mas tinham ainda a curiosidade de saber de quem
  • 45. era aquela voz, tão forte e clara, que chegava feito um hino aos ouvidos de todos. Então, a voz falou: — Amigos, aqui quem fala é Andersen! Já faz mais de 200 anos que deixei a Terra, mas sempre me emociono ao saber que as histórias que eu contava continuam vivas, e que as crianças as adoram. Isso me deixa muito feliz, muito mesmo! Acho que o Ferreira está certo. Este nosso encontro, mesmo que seja para discutir a Revolta das Personagens, não pode ser uma coisa ruim. Em primeiro lugar, porque estamos reunidos e isso é bom, na verdade, é maravilhoso. Em segundo lugar, porque nos faz pensar sobre o que estamos fazendo com as nossas histórias e, também, com as nossas crianças. E pensar sobre os nossos erros não é ruim! Com essa Revolta das Personagens estou pensando em meu Patinho Feio... Continuará o Patinho sendo feio por mais cem, duzentos, mil anos? — Mas a história do Patinho Feio pode ajudar muitas crianças que se sentem diferentes! – era a contadora tomando coragem para interromper a fala do mestre. — Você também está certa! Então, podemos matar o Patinho Feio porque o Patinho Feio cansou de ser feio? Talvez ele nem seja mais o Patinho Feio, não é? — Mas um dia foi! Continuou a contadora. — Isso mesmo! – disse uma outra voz. E o que foi pode ser mudado no presente, porém não no passado. Todos voltavam os olhos para o ponto de onde vinha aquela voz boa e mansa. A voz de Lygia Bojunga, que não falava, quase declamava. Andersen, adorando aquela voz, falou: — Acho que estamos chegando a algum acordo: o passado não muda, porém o presente pode mudar o pas- sado. Seria isso? — Mudar o passado não! Mas talvez curar o passado!
  • 46. Nos libertarmos da memória escura do passado, explicou Ziraldo. — Que coisa certa você nos fala, Ziraldo, e se nos libertarmos dessa memória escura, teremos um presente mais iluminado – continuou aquela voz firme, forte e clara de Andersen. E se tivermos um presente ensolarado, sere- mos melhores do que ontem. Não seremos? — Sim, seremos, mas ficaremos melhores ainda, no amanhã! – falava Umberto Eco, no seu italiano cantado. Seremos melhores na hora de colher do que na hora de plantar. — E o que você acha que estamos colhendo com nossas histórias, Umberto? Que colheita é essa, a da Revolta das Personagens? – perguntou Andersen. — Plantamos personagens criativas, inteligentes, sensíveis. Personagens vivas, que cresceram em nós e além de nós. Por isso, é natural que briguem por seus espaços, sonhos, vontades. — Está querendo me dizer que elas desejam a maio- ridade? – continuou Andersen. — Talvez! Quem sabe não desejam serem donas de seus próprios narizes? Quando os nossos filhos crescem, não se tornam livres para escolher? - retrucou Eco. — Se estou entendendo, a colheita seria então, a liberdade às nossas personagens. Vocês concordam? Por favor, quem concordar que diga sim! E foi um coro de Sim! Sim! Sim! Porque todos ali amavam o que faziam. Amavam suas histórias. Amavam contar histórias. Inventar histórias. E amavam, mais ainda, todas aquelas personagens de cada história, mesmo quando inventavam uma revolta. E foi ali mesmo, naquele encontro tão vivo e verda- deiro entre os autores de cá e os autores de lá, que saiu um novo manifesto:
  • 47. Manifesto da LiVerdade A partir de hoje fica decretado que cada personagem pode: Pintar o cabelo de roxo, abóbora, verde ou arco-íris. Passear pelas páginas dos livros, pelos livros das estantes, pelas palavras nas bocas dos contadores de histórias. Invadir os sonhos e pesadelos dos seus criadores, sempre que precisarem conversar. Segurar as mãos de seus ilustradores, alterando traços, cores e cenários. Crescer de tamanho, emagrecer, engordar, afinar a voz e ficar invisível, se assim o desejar. Se transformar em fada, se era só a bruxinha. Se transformar em bruxa, se era só a fadinha. Ser fada e bruxa quando quiser. Crescer se era menino e ser menino, sendo homem feito. Trocar de sexo. Porque a partir de hoje fica decretado que a vida invade todas as histórias, até mesmo aquelas que ainda vão existir. Sendo as histórias invadidas pela vida, também dão direito aos contadores e criadores de histórias de pintar seus personagens como quiserem.
  • 48. Esse último parágrafo deu pano pra manga, muita dis- cussão, porque uns achavam que as personagens não iriam concordar, o que só pioraria a situação. Depois de muito diz que me disse, alguém falou: — Acho que a gente deve tentar, não custa tentar! Se nossas personagens discordarem, então a gente vê como é que fica. O Manifesto da LiVerdade foi lido por Andersen e assinado por todos. Os de cá e os de lá também. Aí, chegou a hora de decidir quem é que levaria o manifesto aos personagens de todas as histórias. A Fada Madrinha? João e Maria? A Bela Adorme- cida? Os sete anões? Mônica e seus amigos? Mafalda? Snoopy? Não havia acordo entre todos. Até que Andersen deu uma ideia: — Que tal ser o Saci o nosso mensageiro? E por incrível que pareça, só o Ziraldo que era entre todos o mais amigo dele, não queria: — Mas e se o Saci esquecer o manifesto de novo?! Um redemoinho chegou ventando na sala, trazendo pó, estrelas e nebulosas. Era ele, o danado! — Saci Pererê não esquece! Mas só leva manifesto se ganhar mais cachimbos cubanos, capuz e bornal vermelhos bem novinhos! Como não havia outro jeito, todos toparam. Rapidamente, o Manifesto da LiVerdade foi se espa- lhando pelas histórias de todos os tempos e do mundo todo. Lido em todas as línguas, o Manifesto foi aceito por quase todas as personagens. Digo quase, porque é lógico que ela, a história preferida da contadora, estava dando o contra: — Não estou gostando nada disso! O último pará- grafo devolve a eles toda a liberdade que eles nos dão nos
  • 49. parágrafos anteriores. Será que vocês não percebem qual é a jogada deles? E por incrível que pareça, foi o Saci quem salvou a situação: — Que nada! Eu estava lá e vi! — Viu o quê, Saci? – perguntou a Alice, que estava adorando aquele moleque de uma perna só. — Vi que era sincero! Fosse vivo, fosse morto, des- conhecido ou famoso, todos eles perceberam seus erros. E como amam vocês de verdade, querem liberdade geral, total e irrestrita! Nossa! O Saci Pererê falou tão bonito que acabou convencendo a todos. Até mesmo aquela história descon- fiada, a história preferida de Pandora, se deu por conven- cida. E ela disse: — Tudo bem Saci! Você pode voltar e dizer pra eles todos que a gente aceita o Manifesto da LiVerdade como sendo o nosso manifesto também. Que a gente assina embaixo. E como Saci adora uma festança tratou de combinar uma com todos: fosse vivo, fosse morto, fosse inventado ou de carne e osso, chegava a hora de comemorar, com direito a foguetório no céu. E o dia da festa chegou. A animação foi geral. Menos pra Pandora, coitada, que toda animada, procurava por todos os cantos daquela festa danada de bonita, a sua histó- ria preferida. Nada, nem vestígio! Onde estaria? De certo estava disfarçada, agora que era livre! — Oi contadora! Vamos dançar? — Oi Soldadinho. Cadê a Bailarina? — Cansei de procurar... — É... A vida é assim mesmo! Uns vão, outros ficam! O Soldadinho não entendeu muito bem o que foi dito, mas o som da sanfona estava tão animado que saíram dançando pelo salão.
  • 50. Apesar do sumiço da história preferida da contadora de história, foi assim que a paz voltou a reinar para todos, inclusive nos porões e na caixinha de Pandorinha. Mas, dizem as más línguas, que só por mais cem anos, quando haverá uma nova revolta, desta vez comandada pelo Saci.
  • 51.
  • 52.
  • 53. Um dia, Pandora acordou triste. Muito triste. Uma tristeza tão grande que não dava nem pra explicar. Era do tamanho do mar com suas ondas que vêm e voltam, vêm e voltam. Talvez aquela tristeza fosse mesmo do tamanho do céu, repleto de estrelas a brilhar... A contadora de histórias acordou com aquela tristeza tamanha que ela não sabia explicar de onde vinha, mas que lhe roubava até a vontade de viver. Porque, de repente, ela não tinha vontade de conversar, nem tinha o que conversar. Não sentia fome ou sede nem frio ou calor. Só sentia aquela tristeza aumentando, tomando conta de todo o seu corpo, do dedão do pé até os caracóis de seus negros cabelos. Padre Antonio Vieira Para aprender n ão basta só ou vir p or fora, é necessário entender por dentro.
  • 54. Parecendo elástico, se espichava. Parecendo fer- mento, crescia. Parecendo fogo, queimava. Parecendo pipoca, pulava. Assim era a sua tristeza, de um jeito que ela nunca tinha sentido antes na vida. Pandora achou que era melhor deixar aquela tristeza entrar por todos os buracos da sua cabeça. Entrar pelos seus olhos, ouvidos, boca e nariz de Lobo Mau, porque só com olhos, ouvidos, boca e nariz enormes é que aquela tristeza também enorme poderia entrar. Mas a tristeza queria mais espaço, só aquele era pouco. A contadora de histórias que agora era só aquela baita tristeza, falou baixinho: — Ai! Mas a tristeza ouviu aquele “ai” fraquinho e não deu bola. Foi exigindo mais espaço. Queria mais, muito mais! O jeito seria deixar que ela entrasse por todos os seus poros. E foi assim. Sem pedir licença, a dona tristeza tomou todo o espaço daqueles buraquinhos que a gente tem por todo o corpo. Quanto mais ela entrava pelos poros de Pandora, mais Pandora inchava, parecendo um balão cheio de ar. Só que um balão cinza, porque a cor da tristeza só pode ser cinza. Pandora, que não conseguia mais pensar, não conse- guia mais falar, foi perdendo a vontade de fazer as coisas, de sair, de passear, de tomar sol, chupar sorvete, dançar, cantar, e até de contar histórias. Nossa! Isso era mesmo muito grave! Gravíssimo! E por muito, muito tempo, aquela tristeza tomou conta de Pandora. E por todo esse tempo em que Pandora serviu à sua tristeza, não lhe sobrou espaço, nem tempo, nem vontade de contar histórias.
  • 55. Porque a única história que havia para se contar, era a história daquela tristeza. Mas a história daquela tristeza era uma história sem palavras. Uma história de silêncio. Muda, quieta, calada. Muitos dias e noites se passaram. Muitas manhãs ensolaradas e chuvosas chegaram e se foram. Muitas tardes quentes e muitas tardes frias... Muito vento ventando, levantando as pipas, as folhas, os cabelos e as saias das meninas... Muitos trovões barulhentos, latidos de cachorros, badaladas nervosas do sino da igrejinha... Até que um dia, uma lágrima saiu do olho esquerdo de Pandora e, depois, outra do outro olho veio escorregando pelo rosto cheio de tristeza. Sem dizer nada, sem fazer nada, ainda feito uma está- tua, Pandorinha começou a chorar toda aquela tristeza que uma vez resolveu morar dentro dela. O dia da saída chegava. Ficou quieta, só chorando, olhando pro teto e chorando. E se a tristeza era tão gigante assim, o choro também deveria ser. E era. Só os olhos não davam conta de tanta água salgada querendo sair. Mas, como a tristeza sabia muito bem por onde havia entrado, resolveu sair pelas mesmas portas de entrada. Imagine! Como duas cataratas de seus ouvidos jorra- vam águas de tristeza. A boca aberta lembrava um chafariz, eternamente jor- rando água colorida de uma tristeza cinza. E as narinas então! Pareciam dois fios de água, dois pequenos riachos indo desemborcar no mar. No mar daquela tristeza toda, que saia agora por todos os seus poros, molhando toda a cama, todo o quarto,
  • 56. tirando os móveis do lugar. Espalhando-se por toda a casa, invadindo a cozinha, o quintal, o jardim. Alcançando as ruas, espantando os gatos, assus- tando as pessoas, alegrando as crianças que magicamente brincavam nas enxurradas daquela tristeza. Muita água rolou, muito tempo levou até que Pan- dora voltasse ao seu normal. Desinchar o corpo, secar a alma tão molhada de tanta tristeza dá trabalho e leva tempo. Enquanto isso, as crianças se divertiram muito e os gatos se esconderam todos. Então Pandora gritou: — Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!! — E foi um grito tão forte e tão fundo, que toda a cidade ouviu. Dizem que todo o universo ouviu, mas se é verdade eu não sei. O que eu sei é que o grito profundo da contadora de histórias, levou finalmente a tristeza pra lá. Pra lá onde ninguém quer visitar, de medo que aquela enorme tristeza queira lhe fazer companhia. E sem a tristeza dentro dela, Pandora se levantou da cama. Estava toda molhada e saltitante. Procurou o sol pra se secar. Depois se lembrou das suas histórias e percebeu que nos porões de sua cabeça não estavam. Na verdade, sentia a cabeça bem vazia de tudo. Como se aquela tristeza gigante que morou dentro dela por muito, muito tempo, tivesse lhe roubado a memória. Sim, sabia quem era. Lembrava o seu nome. Sentia o gosto pelas histórias renascendo dentro dela. Lembrava que havia até mesmo uma história pre- ferida, mas não se lembrava nem dessa, que dirá das outras tantas!
  • 57. Mesmo assim, só de não ser mais a casa daquela tristeza toda, já estava bom. Então, lembrou da caixinha. A caixinha de Pandorinha, onde todas as suas histórias moravam. Onde estaria? Agitou os cachos de seus negros cabelos ainda molhados pela chuva de tristeza que saiu de dentro dela e correu para seu quarto, todo molhado e bagunçado pelo mesmo motivo. Será que a sua caixinha estava ensopada? Será que teria naufragado? Será que teria sobrevivido àquele mar de tristeza? Até que deu com ela, toda empoeirada, no alto do guarda-roupa. Tinha teias de aranha, e uma aranha bem no meio da teia, como se fosse a guardiã das histórias de Pandora. — Oi dona aranha, pode me dar licença? A aranha não deu, mas Pandora não se zangou. Com saudade, abriu a caixa, louca de vontade de rever as histórias que os porõezinhos de sua cabeça já não possuíam porque estavam vazios, pois ficaram por muito tempo sem serem visitados. Mas que surpresa a esperava! A caixa também estava vazia. Será que alguém havia se aproveitado de sua tristeza para roubar-lhe as suas histórias? Seu coração dizia que não. Enquanto durara a sua tristeza, ninguém havia mexido ali. A poeira era sinal disso. As teias e a aranha também. Como explicar o sumiço de todas as histórias? Como? De repente, Pandora prestou melhor atenção ao interior da caixa e descobriu um bichinho minúsculo. Resolveu investigar, porque talvez ele fosse a única
  • 58. pista que teria. Buscou uma lupa e que susto ela teve! Aquele bichinho não era um bichinho qualquer! Aquele bichinho que parecia tão inocente, apenas um bichinho inofensivo, era um cupim. Vendo pela lupa, bem de pertinho, nem era tão minúsculo assim. Estava gordo, recheado de tantas histórias que havia comido. Pandora falou: — Ei você! Será que não sabe que a gula é um dos pecados capitais? O cupim mal podia se mexer de tão gordo e enfas- tiado que estava, porque o banquete havia sido dos melhores. O gosto das palavras ainda rondava a sua boquinha de come-come. Palavras doces feito o mel, amargas feito o jiló, azedas como o limão, pesadas como a pedra e fedidas como o enxofre se mexiam lá na sua barriguinha estufada. E como se misturavam! A azia que o pobrezinho sentia era do tamanho da tristeza que a contadora viveu. Pandora queria matá-lo tamanha era a sua raiva, mas resolveu pensar melhor, porque com ele vivo, talvez tivesse alguma chance de recuperar as suas histórias, nem que fosse só a preferida, que agora morava lá dentro dele. A contadora pensou muito, enquanto através da lupa olhava pra ele. Afinal, tudo que entra um dia, precisa sair em outro. Não foi assim com a sua tristeza? Seria assim, também, com as suas histórias que agora viviam lá, bem dentro daquele cupim guloso. Pelo tamanho gigante dele, devia ter vivido ali e se banqueteado com todas aquelas palavras, por todo o tempo de duração daquela tristeza também gigante. Foi o que Pandora pensou e, investigando um pouco
  • 59. mais sobre a vida dos cupins, descobriu que esse bichinho gosta muito do silêncio, de lugares bem quietos e fecha- dinhos, tal qual a sua caixinha durante o tempo daquela tristeza sem fim. Estava tudo explicado! O cupim devorador de tudo aproveitou o tempo de sumiço da contadora para dar sumiço em todas as suas histórias. — Que papel feio, heim, cupim?! De tanto comer papel virou papel também! E de tanto comer palavras virou palavras também! Já que você é tão guloso, não quer sair por aí comendo a minha cama, meu guarda-roupa, as portas e as janelas de minha casa? Aí sim, comendo toda a madeira vai virar madeira também! Nossa! A contadora estava fera! Só que ele nem ligou! Na verdade, ela podia falar o que quisesse, que ele não tinha a menor condição de reagir, pois o que ele queria mesmo era tirar aquele amontoado de palavras enjoativas de dentro dele. Mas como? Ele também não sabia e, se arrependimento adian- tasse de alguma coisa, ele seria o cupim mais arrependido do mundo dos cupins. Mais que a própria Pandora, seu maior desejo era tirar de dentro de si aquele amontoado de histórias com gosto de desgosto, porque pior que comer uma mesa inteira é comer a palavra mesa, que a palavra é sempre mais pesada do que a própria coisa. Não havia jeito senão esperar o tempo daquelas his- tórias todas saírem de dentro daquele bichinho nojento. Porque, uma hora elas iriam sair! Pandora passou a espiar todo santo dia a sua caixinha. Duas vezes. Logo que acordava e na hora de dormir, espe- rando o tal dia que o cupim botasse pra fora o que ele havia comido sem pedir licença.
  • 60. Até que em uma manhãzinha, a contadora sentiu que algo estava para acontecer com aquele cupim. Dito e feito! Logo que ela abriu a caixa, percebeu um movimento ali dentro. Que surpresa! As histórias comidas pelo cupim saiam, uma a uma, palavra por palavra, vírgula após vírgula, pará- grafo atrás de parágrafo. E a sua caixa foi se enchendo de histórias outra vez, do cheiro delas, do sabor que cada uma trazia, das muitas cores que encantavam as crianças e os adultos. Igualzinho a tristeza da contadora, que havia saído por todas as partes de seu corpo, cada história encontrava a sua forma de sair do cupim inchado, que foi aos poucos se esvaziando. Surpresa com o que via e ouvia, Pandora se deli- ciava em conhecer as peripécias de um cupim contador de histórias. Até que ele levava jeito! Encantada, ela ficou por muitas e muitas horas, a ouvir suas próprias histórias sendo contadas não por ela, mas por ele, o cupim – contador de histórias. Nossa! Eram tantas! Uma mais bonita que a outra! Algumas bem tristes, outras bem engraçadas. Algumas de dar medo, outras de magia. E vinham de tantos lugares dife- rentes, sem contar que muitas delas eram tão antigas quanto o nascimento do mundo. De repente, o cupim se empolgou mais do que já estava empolgado, porque era a hora de contar aquela his- tória com H maiúsculo. A história preferida do cupim! É, porque o cupim também tinha a sua história prefe- rida e, por azar da contadora, não era a história que ela mais gostava, pois a história que ele mais amava, era aquela que falava da sua casa protetora: o cupinzeiro. Só que o cupinzeiro não era só a casa do cupim, porque era nela que morava o gênio superior Ndu – o pro-
  • 61. tetor das colheitas. E sendo Ndu um gênio do bem, que trazia riqueza para o homem da roça, era uma coisa muito boa para todo cupim tê-lo como hóspede de seu cupinzeiro. Quando Pandora se deu conta, a sua caixinha estava novamente repleta das suas belas histórias. Mas não era só a caixinha não, porque os porõezinhos de sua cabeça se abriam para receber de volta cada uma daquelas histórias que ela amava tanto. Agora, Pandora nem tinha mais raiva do cupim! Afinal, a história dele também era bem bacana. Nossa! Que coisa boa que era poder recuperar todas elas, uma a uma. Epa! Uma a uma? Não, faltava história! Foi quando ela descobriu que faltava justamente aquela que era o seu xodó: a sua história preferida! Essa, ainda estava lá dentro daquele bichinho estranho. O que fazer? Dar um fim naquele cupim seria o mesmo que perder para sempre a sua história mais querida, e isso seria como viver pela metade. Pois sem ela, era como se sentia: pela metade. Fechar a caixa e deixar o bichinho preso dentro dela enquanto procurava uma boa ideia que lhe devolvesse a sua história número um, também era arriscado, já que poderia dar a louca no cupim, devorando-as de novo. Era preciso pensar rapidamente, agir mais rápido ainda! Pandora olhava para o cupim que, por sua vez, olhava para ela. Na troca de olhares, ela teve uma ideia. E se ela pedisse ajuda ao tal gênio Ndu? Afinal, não custava tentar. Foi o que fez. Pegou o seu tambor e começou a tocar chamando por Ndu, pedindo a ele que a ajudasse a salvar a
  • 62. sua história do coração. Depois de tanto chamar, de tantos toques no tambor, Pandora ouviu uma voz que vinha de dentro dela mesma e lhe dizia: — Pandora! Pandorinha! É chegada a hora do sacrifí- cio! Para que recupere a sua história preferida é preciso que jante o cupim. — O quê? Jantar de cupim? Isso não passava pela sua cabeça! Mas a voz insistiu mais uma vez e, dessa vez, soou tão forte dentro dela, que todo o seu corpo estremeceu. Pandora não teve coragem de perguntar se aquela voz como a de um trovão era a do gênio Ndu e, apesar do nojo de jantar aquele bichinho, achou melhor não desobedecer. Depois, qualquer sacrifício valia a pena para obter sua história amada de volta, e resolveu que o melhor seria mastigar o tal cupim. Mas lhe faltava coragem. Correu até a cozinha e trouxe um copo cheio de água. Talvez lhe ajudasse a comê-lo e, quando estava se preparando para mastigá-lo, sentiu que aquele cupim não poderia ser engolido como quem engole batatas fritas e hambúrgueres. Aquele cupim era digno de um banquete. Ele e ela mereciam um banquete. Afinal, o cupim não trazia dentro de si aquele que era o maior tesouro para Pandora? Que nojo, que nada! Aquele jantar precisava ser uma festa! Por isso, a contadora correu para o seu quarto e esco- lheu o vestido mais bonito. Colocou o perfume preferido, arrumou os negros cachos, sorriu para o espelho e foi pegar uma toalha de rendas, bordada por sua avó, colocando-a sobre a grama do jardim de sua casa. Depois, procurou uma música, para dar o clima. Sobre o centro da toalha Pandora deixou a sua caixinha
  • 63. com o cupim dentro dela, à espera de ser comido. Trouxe um castiçal com três velas vermelhas, acen- dendo-as tão logo a Lua grávida apareceu no céu. Foi aí que agradeceu, dizendo: — Agradeço este banquete, porque este é o banquete que me devolve a minha história e a minha história é o meu melhor banquete. Por fim, respirou fundo, abriu a caixa, olhou para o bichinho, fechou os olhos e, em um ato de muita coragem, comeu o cupim inteirinho. O bichinho devorador de histórias acabou sendo devorado por Pandora. Hum! Até que o gosto não era assim tão ruim, ela pensou. E o bichinho foi se escorregando por dentro de Pan- dora, tentando se agarrar em suas cordas vocais, o que deu um engasgo daqueles na contadora de histórias. Ela tossiu, pigarreou, tomou água da taça de cristal, fez pose e não o deixou sair dela! As batidas do seu coração, fortes como o tambor, quase que deixam o cupim surdo. Ele tentou de todas as maneiras uma saída daquele lugar tão estranho, mas não havia mais jeito, logo descobriu! E, se não havia mais jeito, o jeito era viver por lá mesmo. Foi o que resolveu: viver por lá mesmo e conhecer todas as estações internas de Pandora. O tempo passou. Horas, dias, semanas, meses. Às vezes a contadora bem que sentia um movimento estranho dentro dela, algo que ela nunca havia sentido antes. Uma espécie de cócegas correndo por todo o seu corpo do lado de dentro, e ela pensando alto: — É o cupim! O que será que ele anda aprontando dentro de mim? Quando é que ele vai, finalmente, devolver a minha história? Mesmo assim, Pandora nunca desanimou, apren-
  • 64. dendo a ser paciente. E foi bem desse jeito que ela, a contadora, depois de tanto esperar – que a esperança, Pandora sabe bem, é a última que morre – acordou um dia com a sua história pre- ferida na ponta da língua. Pelo menos corre solto o boato: que com o cupim vivendo dentro da contadora, foi mais fácil para ela recupe- rar aquela que era a sua história de encantamento. Parece que depois disso, o cupim nunca mais deu sinal de vida no interior dela. É o que dizem! Ah! Dizem, ainda, que foi daí que nasceu a expressão “engoliu um sapo”, quer dizer, engoliu um cupim!
  • 65.
  • 66.
  • 67. Certo dia, Pandora se preparava para contar uma história. Aquela que era a que ela mais gostava de contar, lembra? Adorava ver as reações das crianças, com seus olhares de surpresa, de alegria ou tristeza sempre que contava histó- rias e, principalmente, quando contava a sua preferida. Se as crianças eram ricas ou pobres, negras ou bran- cas, meninos ou meninas, menores ou maiores, gordas ou magras não importava, não fazia mesmo a menor diferença. Pandora sabia que mesmo sendo uma criança tão diferente da outra, na hora de ouvir uma boa história, o olhar delas era sempre o mesmo: cheio de brilho e magia. Os dias em que havia uma boa história para se contar e se ouvir eram, para ela, os melhores de todos, pois eram dias de muita alegria e encantamento. Umberto Eco Nem todas as ve r dades s ão para todos os ouvidos.
  • 68. Pandora estava muito feliz, porque se preparava para um desses dias. Procurou a história em seu porãozinho e lá estava ela, alegre e cheia de vontade de sair de seu cantinho protetor. Procurou a história em sua caixinha e a encontrou, com os seus cheiros e coloridos próprios. Tudo estava certo. Tudo daria certo. As crianças iriam adorar aquela história, disso ela tinha certeza. Lá fora, fazia frio. A contadora enrolou o cachecol com as sete caras da cobra verde, colocou o gorro colorido e partiu cantando, segurando uma maleta cheia de surpresas. Porque ela tinha uma maleta meio encantada, de onde saíam coisas, se não mágicas, no mínimo estranhas, e outras bem engraçadas. Assim, ela partiu para a aventura daquele dia. Ela pensava e sentia que aquele seria um dia de felicidade. Mas quando chegou ao local combinado, que desencanto! Só havia um menino a esperar por ela. — Oi! Cadê seus amigos? — Sei lá! Pandora não estava entendendo nada, não estava acreditando no que via. E a história dentro do porãozinho da sua cabeça, doida por sair, fazendo cócegas em sua garganta, quase pipocando na língua. Segurando-a firme lá dentro, disse: — Por que só você? Cadê as outras crianças? O menino continuou: — Elas não vêm porque não gostam mais de histórias. — Como não gostam mais de histórias? — Nemdepipasbolapião! – O menino falou tudo de uma vez, quase engolindo as palavras de volta. A contadora precisava entender aquele aconteci-
  • 69. mento na vida de suas crianças, mas estava bem difícil. Percebeu que sem os meninos e as meninas não adiantava ter histórias de encantamento, de horror, de risos e choros, porque sem as crianças, as histórias morreriam antes mesmo de terem nascido. Pandora descobriu que se as histórias possuíam uma alma, ela era de criança. Sentou no chão e ali ficou, não se sabe por quanto tempo, parada, travada, com a história preferida entalada na goela, doidinha pra fugir dali, mesmo que fosse pra ser contada apenas àquele menino. Ficou pensando sobre os motivos que levavam as crianças a não gostarem mais das histórias e, também, de pipa, bola e pião, como falou aquele menino, mas não encontrava motivo algum. Nada que pudesse ser mais atraente ou mais gostoso que brincadeiras e histó- rias de criança. O menino ali na sua frente tinha cara de criança triste. Com olhos opacos, sem aquele brilho que crianças trazem no olhar, em tempo de aventuras e descobertas. Mas por quê? Pandora tentava entender e não entendia. Será que as crianças haviam mudado tanto assim? Olhando de novo pra ele, com mais atenção, perce- beu que além da falta de brilho no olhar, também lhe faltava cor do sol na pele. O menino era branco como o sal, parecia mais um fantasminha! Credo, um menino que não gosta de pipa, bola, pião, história e, além disso, era branco como o algodão?! Aí tem! O menino, por sua vez, após ter dado o seu recado ficou ali disfarçando, sem saber se ia ou se ficava. Querendo ficar, mas sem saber se devia. Afinal, aquela maleta que ela trazia era bem interessante. E o seu cachecol, então?
  • 70. Por isso foi ficando. Até que Pandora perguntou: — Por que você é assim tão branquinho? Menino não entendeu a pergunta. Era como todos os outros meninos e meninas da rua ou da escola. Ele falou: — Sou como sou, ué! — Você não toma sol? – quis saber a contadora. Ele riu e respondeu: — De canudinho? Pandora não gostou daquela piadinha do menino, e fez cara bem séria: — Você não sabe o que é tomar sol? O menino, com cara de bobo, achou que sol deveria ser a marca de algum refrigerante novo e quis saber: — Que gosto tem? Pandora sentiu medo. Realmente as crianças haviam mudado mais do que ela pensava ou queria. Resolveu ser mais clara: — Você não brinca na rua, no quintal, na pracinha? Menino fez que não com a cabeça e seu olhar ficou mais opaco do que já era, murcho de todo! Pandora sentiu mais medo. Arrepio que subiu do final da coluna até o começo: — Onde é que você brinca? — No quarto, ué. — Mas de quê? — Videogame, ué. — Sozinho? — É, ué. — Só disso? E ouviu um sonoro NÃO, porque o menino brincava também no computador e com seus carrinhos de controle remoto. Ah! E, de noite, assistia muito à TV, a desenhos bem legais! — E as pipas, as bolas, os piões e as histórias?
  • 71. — Sei não! Isso tudo é brinquedo do tempo do meu pai. Brinquedo sem graça. É chato! — O quê? A contadora não acreditava naquilo que ouvia. Resol- veu se beliscar, porque na certa aquilo não passava de um tenebroso pesadelo. Assim ela se beliscou bem forte. O beliscão doeu, dei- xando vermelho o seu braço. Quer dizer que tudo aquilo era de verdade. Não era nenhum pesadelo de horror. Era verdade! Ver-da-de! O menino, por sua vez, apontando o cachecol de cobra verde e carinhas coloridas, criou coragem e perguntou: — Por que ela tem tantas cabeças? — Porque ela é mágica, tem poderes. — Por que cada cabeça é de uma cor diferente? — Pra levar menino a viajar. — Pra onde? — Até a casa dos deuses. — Mas como? — Está vendo as cabeças? São sete, uma de cada cor. Na verdade, as cores do arco-iris, que são como uma ponte mágica. Quando se atravessa a ponte, chega-se lá... Na casa dos deuses? Pandora balançou a cabeça dizendo que sim, e o menino, cheio de curiosidade, continuou: — Ela morde? Pandora riu por dentro e até suspirou um pouco aliviada, que afinal, nem tudo estava perdido. Depois respondeu: — Depende do menino! Se o menino for legal com ela, não morde não! Quer ver? Ele quis. Ela tirou o cachecol de seu pescoço, enrolando-o no dele, que sorriu um pouco tímido. Já era um começo.
  • 72. Afinal, quem sabe tornando-se amiga do menino não descobriria o segredo de todos os outros meninos e meninas que decretavam ódio pelas histórias, pipas, bolas e piões? Ele, mais solto, foi se encantando pela cobra verde e suas sete cabeças coloridas, enquanto Pandora olhava-o cheia de carinho. Ela disse: — O seu nome é Naga. — Oi Naga! – O menino falou, e riu gostoso. Pandora aproveitou, colocando a sua mão por dentro de uma das cabeças da cobra cachecol e, fazendo voz de Naga, continuou: — Oi menino! Qual é o seu nome? — Meu nome é João. — Oi João! Quer ser meu amigo? Nossa! O menino queria muito! E foi assim que a história preferida de Pandora foi saindo da boca de Naga e entrando pelo menino adentro. Entrando sim, por inteiro. Retirando aquele olhar chocho do começo, porque agora havia um brilho estranho em seu olhar, parecido até com o daquela cobra de nome esquisito. Pela boca de Naga, João ouviu toda a história e tão encantado estava que nem percebeu quando ela acabou. Porque, na verdade, agora a história vivia dentro dele. Era dele, e isso ninguém mais poderia lhe roubar. A história, que agora morava dentro de João, foi conhecendo João por dentro e gostando de ver o que via. Porque ele era um menino bonito que só vendo! Pandora conseguia ver aquela belezura toda que vinha de dentro dele. É que, depois da história, o menino sofreu uma trans- formação, já não era branquelo, já não tinha o olhar parado. Realmente algo misterioso havia acontecido e mesmo sem saber o que, a contadora conhecia a magia das histórias.
  • 73. Sabia que o menino sofria o encantamento delas. Sabia, ainda, que depois que a gente se encanta com elas não tem mais jeito, porque se vive encantado para sempre. Mas será que João sabia que ele não era mais aquele João tristonho? Será que ele mesmo já havia percebido a mudança? Ele, quieto ali, precisando daquele tempo de silêncio, não dizia palavra porque palavra alguma cabia dentro dele. Nem dentro nem fora. Por isso, a contadora também silenciou, e naquela rua tudo parecia dormir. Não havia o homem dos churros, pás- saros cantando, buzinas buzinando, mulheres conversando, cachorros latindo. Apenas o silêncio morava ali. Só muito tempo depois, quando começou o entar- decer, João olhou para Pandora e sorriu. Sorriso de menino que fez as pazes com a vida. Depois ele falou: — Nossa! Acho que atravessei o arco-íris. — É mesmo? – quis saber Pandora, que agora tinha a cer- teza de que a história morava dentro de João. Ela continuou: — E o que foi que você viu? João não queria falar sobre isso, como se fosse um segredo seu e daquela que agora era a sua história prefe- rida também. Ele falou: — Dá Naga pra mim? A contadora sabia bem que chegava a hora de passar a sua história pra frente, não lhe pertencia mais, pois encontrava outro teto pra fazer de morada, embora em seu coração ela ficasse para sempre. — Dou sim, mas só se você sair contando a história dela por aí. Você topa? Claro! O menino topou na hora. Pandora abriu a sua maleta mágica e dela retirou uma lágrima, dando ao menino para que a bebesse.
  • 74. Ele bebeu e imediatamente recebeu a palavra em seu coração. Não qualquer palavra, mas a palavra mágica, aquela que chega como a força de um trovão. Porque agora João deixava de ser um menino qual- quer. Tinha poderes. Talvez ele ainda não soubesse, mas ao escolher aquela história para si, também fora escolhido por ela. Se João fora escolhido, isso significava tornar-se dono dela. Tornando-se dono dela, o menino ganhava voz firme e forte para contá-la a quem quisesse ouvi-la. Pandora falou: — Vai! Agora chegou a sua vez de contar essa história aos meninos e às meninas que você conhece. João brilhava por inteiro, aquela branca cor de giz, de porcelana, sei lá, que habitava todo o seu corpo frágil desa- parecera por completo. Porque agora o menino era outro, mais parecido com o Sol do que com a Lua. Enrolado com parte da cobra Naga no pescoço e a outra parte, a das cabeças, enfiada em sua mão, subiu no banco da praça para contar aquela história que agora não era mais só a história preferida de Pandora, era a sua também. A voz forte de Naga menino saindo pelo pequeno corpo de João acordou toda a rua. Era voz de trovão menino. Crianças da cor de chantili, cujo olhar mais parecia o de um sapo enfeitiçado, foram saindo de suas casas, deixando as TVs, videogames e os quartos desinfetados, só pra ouvir Naga menino contar aquela que agora era a história dona de João. E ela foi saindo tão suavemente da boca de Naga menino, que cada palavra cantada alcançava direto o cora- ção dos meninos e meninas daquela rua, iluminando os rostos, os olhos, todos os corpos, trêmulos. A história entrava como palavra mágica que encanta e salva.
  • 75. A história fazendo mil caminhos diferentes porque por alguns entrava pelos pés e em outros entrava pelas mãos. Também entrava pelos olhos, bocas, ouvidos e, como uma seta ou lança de luz, alcançava o seu alvo: o coração. Se todas aquelas crianças já possuíam o segredo daquela história, é verdade que ela, a história, também pos- suía o segredo de cada criança. Conhecia cada medo, cada pequena alegria e todas as suas grandes tristezas, porque é mesmo muito triste ser criança e não ter a chance de conhecer um pião, de correr na pracinha só pra sentir o vento batendo na cara, desarru- mando os cabelos, de ouvir as cantigas e histórias que façam adormecer os monstros e os fantasmas da imaginação. Então Pandora percebeu que chegara a hora de partir e, sem se despedir de ninguém, foi saindo. Estava alegre e triste ao mesmo tempo. Um pouco alegre, porque sua história mais que- rida fora contada, trazendo de volta o brilho no olhar daquelas crianças. Um pouco triste por saber que agora essa que era a sua história preferida, já não viveria mais em seu porãozi- nho, pois havia se mudado de mala e cuia para o sótão de João, o Naga menino. Mesmo assim, sabia que ela moraria para sempre em seu coração de contadora das mais belas e antigas histórias. O tempo passou muito para o João, que daquele dia em que era só um menino, se viu transformado em um belo homem contador de histórias a sair por aí, contando as mais diferentes, de vários lugares do mundo, para muitas crianças e adultos bem diferentes também. Porém, aquela continua sendo a sua história preferida. Se o tempo passou para João, que dirá para Pandora! Agora, bem mais velha, continua com as suas histó- rias, mas as conta só para a neta, que adora ouvi-las até bem tarde da noite.
  • 76. São histórias antigas, outras mais novas. Histórias dife- rentes que a contadora insiste em guardar em sua velha cai- xinha, já tão abarrotada. Se os seus porões andam superlotados, Pandora dá um jeito de emprestar alguns da cabeça de sua neta que ainda se encontram vazios, deixando que algumas histórias vivam por lá mesmo. Pandora olha pra ela a ouvir suas histórias e tem bons sonhos. Sonha com o dia em que ela será uma grande conta- dora de histórias como Pandora ainda o é. Sonha que esse dia não está muito longe. Imagina Clara, a netinha, ouvindo João – Naga Menino Grande – a contar a tal história preferida pelos dois. Chega até a ouvir a voz de Clara dizendo: — Seu moço, pode enrolar sua cobra cachecol em meu pescoço? E João – Naga Menino Grande lhe entrega o velho cachecol com as sete carinhas coloridas, deixando a garota encantada como quando ele ainda menino, também ficara. Ela diz: — Por que ela tem tantas cabeças assim? E ele responde: — Porque tem poderes. Ela quer saber mais: — Quais? E João responde: — De levar menina bonita para a casa dos deuses. — Mas como? — Pela ponte do arco-íris. Clara tem um brilho estranho no olhar que João – Naga Menino Grande conhece bem. Ele aproveita e coloca a mão em uma das cabeças da cobra Naga e diz: — Meu nome é Naga e o seu? — O meu é Clara!
  • 77. E com aquela voz de encantar passarinho, João - Naga Menino Grande deixa que a sua história preferida vá saindo do seu coração, feito uma luz brilhante e bem colorida – um verdadeiro arco-íris que, sem pedir licença, invade o claro coração de Clara. Quando a história termina, chega aquele silêncio que vem tomando conta de tudo. Nem as folhas das árvores se mexem. Tudo para por um instante, até que Clara diz: — Dá Naga pra mim? E João – Naga Menino Grande se lembra de um dia mágico em sua vida, quando ele, menino de tudo, ganhara aquele cachecol de cobra verde das sete caras multicores. Sente saudade e emocionado diz: — Só se você sair por aí contando essa história para todas as crianças que conhecer. Clara aceita o convite e recebe para sempre aquela história, que agora é a sua preferida. E porque ela escolhe aquela história para ser a sua história, também é escolhida por ela. Se aquela história agora pertence à menina, é bom lembrar que a menina pertence à história e que por isso mesmo, ela se torna Clara, a menina Naga. Então, a menina percebe sua avó contadora de histó- rias com o olhar distante e quer saber: — Vovó, onde é que está o seu pensamento? Pandora, avó contadora de histórias, acorda de seu sonho e diz: — Morando em uma velha história nova. A menina quer saber dessa história que desconhece: — Conta vovó! Conta! Mas a avó contadora de histórias apenas sorri, dizendo: — Um dia querida! Um dia!
  • 78. É lógico que Clara menina nunca mais dará sossego à sua avó, até que realmente chegue esse dia. É que Clara desconhece ser essa a história de seu futuro, que a avó vem preparando com muito cuidado e carinho. Uma história de futuro só deve ser contada no dia em que o futuro chegar. No dia em que o futuro for presente. Por isso, Pandora avó contadora de histórias sonha com a história do futuro. Sonha até se encher tanto de futuro a ponto de explodi-lo no presente. Mas, enquanto o dia da explosão do amanhã não chega, Pandora avó contadora de histórias apenas sonha. Pelo menos é o que falam. Falam, ainda, que desde o dia em a sua história prefe- rida mudou-se para um dos sótãos do então Naga menino, o porãozinho dela continua vazio, já que Pandora não con- seguiu colocar lá dentro nenhuma nova história. Parece que teve um dia em que ela quase colocou uma placa de “Aluga-se” na porta desse porão, mas depois desistiu porque lhe faltou coragem. Desde então, ela sonha com a hora em que Clara menina Naga lhe trará de volta a sua velha e boa história. Não faz mal se ela viverá no porão de Clara, não faz mal! Porque o porão de Clara neta menina Naga contadora de histórias é um pouco seu também. Tem muito das suas coisas, suas cores, seus cheiros. Ela sabe que, de vez em quando, sempre que a sau- dade crescer e apertar seu coração, ela, Pandora avó conta- dora de histórias, poderá ir lá visitá-la.
  • 79.
  • 80.
  • 81. Sempre que Pandora combinava de contar histó- rias, iniciava-se um ritual daqueles! Por vários dias antes de a tal contação acontecer, ela mudava o seu jeito de fazer as coisas, pois já não tinha hora pra comer, dormir e tomar banho. Fechava-se em seu quarto e pouco falava com as pessoas. Mas não era de nervoso ou mau-humor, não! É que a contadora ficava horas e horas conversando com a história que ela iria contar. Algumas pessoas, as que a conheciam bem pouco, até pensavam que ela era assim, meio maluca. Pandora nem ligava. Quando fechava a porta de seu quarto e colocava a plaqueta do lado de fora onde estava escrito “Fui!”, as Clarice Lispector E ninguém é eu, e ninguém é você . Esta é a solidão.
  • 82. outras pessoas, as que a conheciam muito bem já sabiam que deveria ter ido sim, pra algum canto bem escondido, onde só ela sabia chegar e de onde só ela sabia voltar. Por isso não se preocupavam. Ah! Mas que elas ficavam curiosas pra saber o que se passava lá dentro, isso ficavam! Só que Pandora nunca falava sobre isso com ninguém. Às vezes, permitia que a sua cachorra ficasse lá com ela no quarto fechado, mas só às vezes! Todo mundo percebia que a cachorra saía de lá bem diferente do que quando entrara. Parecia mais calma, aba- nando o rabo sem nenhuma pressa. E assim ficavam mais e mais curiosas pra saber sobre os mistérios da contadora, em época de contar histórias. Mas se eram mistérios como sabê-los? Se havia assunto sobre o qual Pandora não gostava de conversar, era esse. Ela ia logo dizendo: — Quando o médico vai operar, as pessoas ficam curiosas pra saber como ele opera? E se a professora vai pre- parar uma aula, todo mundo quer sabe como ela prepara? Vêm com o pão que o padeiro faz os ingredientes que ele usa e o modo de fazê-lo? E completava: — Ah! Então não me amolem! Saía batendo o pé, bufando, irritada. Por isso, com o tempo, os mais amigos e os da casa pararam de fazer perguntas a respeito, o que não quer dizer que deixaram de querer saber sobre os tais mistérios. Ao contrário, a curiosidade deles só aumentava, porém aprenderam a disfarçar melhor! Se bem que sempre deixavam pistas pelo cami- nho, porque bastava Pandorinha fechar a porta de seu quarto colocando a tal plaqueta, que o comportamento de todos mudava.
  • 83. Ficavam mais silenciosos, sabem? Falavam mais baixinho, desligavam o rádio e o telefone, abaixavam o som da TV e, ainda por cima, passavam nas pontas dos pés pela porta do quarto, encostando os ouvidos nela. Quem sabe assim não conseguiriam ouvir alguma coisa? E, às vezes, até que ouviam, porém nunca entendiam o que ouviam! Até que um dia, aconteceu algo muito estranho. Foi quando Pandora se preparava para contar uma história. Ela entrou no quarto e lá ficou um tempão, esque- cendo-se do almoço, do jantar, do banho, do sono, do banheiro, da cachorra, do telefone, que tocou sem parar, insistentemente, e ela sequer percebeu. Na casa ninguém ligou muito, porque era bem desse jeito que ela fazia sempre quando estava perto de contar uma história. Só que dessa fez, além de tudo isso que já era meio normal para todos, o estranho aconteceu. Já fazia mais de dois dias que ela estava trancada no quarto, sem comer ou fazer tudo o mais que uma pessoa normal faz todos os dias, quando, de repente, ouviu-se um barulhão. Ele vinha de lá, daquele quarto com a porta trancada e a plaqueta dizendo Seria um trovão? Um avião? Um terremoto? Depois daquele enorme barulho nada mais se ouviu, a não ser as pessoas do lado de fora a gritar: — Pandora, o que foi isso?
  • 84. — Abre, Pandora, abre! — Au au! Au au! Au au! A contadora nada fez. Não gritou, não abriu a porta, não fez nenhum tipo de movimento lá dentro que deixasse as pessoas cá fora mais tranquilas. Os bombeiros chegaram para arrombar a porta e nem mesmo com a ameaça de arrombamento Pan- dora saiu de lá. Empurra daqui, empurra dali e a porta veio ao chão com a plaqueta e tudo, causando o maior estrondo. Mas que surpresa os aguardava! Dentro do quarto tudo estava em seu devido lugar, menos Pandora, que não estava lá. Onde estaria? A busca começou – talvez em seu quarto houvesse uma passagem secreta, sabe-se lá pra onde, pensavam... Procurou-se debaixo da cama, dentro e atrás do guar- da-roupa, no baú, nas gavetas, sob o tapete e até mesmo na caixinha de Pandorinha, mas nada! Nada! Pandora havia desaparecido sem mesmo ter saído de seu quarto. Seria isso possível? Um chá de sumiço, diziam alguns, enquanto outros resmungavam: — Nossa, ela evaporou! Todos estavam sem entender o acontecido, já que o acontecido era algo inexplicável que os assustava, e muito! Afinal, como poderiam explicar aquele desapareci- mento para lugar nenhum? Eu sei que você sendo inteligente como é, está pen- sando na janela, pois todo quarto tem uma janela que dá para fora da casa, para um jardim, um quintal, ou uma rua, certo? Errado! Porque a janela ela não pulou, não! Simplesmente a janela estava fechada por dentro. Sem a menor chance!
  • 85. Resolveram chamar a polícia, que também não resolveu nada! Bombeiros e policiais ficaram lá discutindo o mistério e fazendo perguntas meio tolas. É, realmente Pandora estava dando um nó na cabeça de todo mundo e já que ninguém poderia resolver esse mis- tério, o único jeito era esperar o dia em que reaparecesse e explicasse a todos o que havia acontecido. Se é que chega- ria esse dia, se é que haveria uma explicação! A porta do quarto foi recolocada no lugar. A plaqueta também. Por vários dias não se teve nenhuma notícia dela, até que, do nada, Pandora reapareceu. Vestida de contadora de histórias, saiu de seu quarto toda sorridente e serelepe, com uma fome daquelas! Desejou bom dia para todos e sequer percebeu a cara de espanto, os olhares que trocavam, os queixos caídos. O mais corajoso perguntou: — Onde você esteve todo esse tempo? Com a boca cheia de queijo fresco, sem dar muita impor- tância àquela pergunta, que considerou bem boba, respondeu: — No meu quarto, claro! Onde mais eu poderia estar? Depois, foi saindo, porque já estava um pouco atra- sada para a tal contação, deixando-os com caras de mais bobos ainda. Sobre o que realmente aconteceu naquele dia, ninguém soube de fato. Sobraram uns diz que me disse pra cá, uns zuns zuns zuns pra lá, mas o mistério permaneceu mistério. Só que eu estava lá - e vi quase tudo! O que vi passo a narrar: Quando Pandora entrou no quarto começou a sua preparação, o tal ritual, lembra? Primeiro com o tambor. Tocou! Cantou! Dançou muito!
  • 86. Depois despejou pelo tapete todas as histórias de sua caixinha e começou a lê-las uma a uma, procu- rando aquela que o seu coração escolhesse, que lhe sussurrasse: — É essa Pandora! É essa! Mas o seu coração parecia mudo. Calado que estava! Pandora não desistia. Se dessa vez a história que deveria contar não estava ali em sua caixinha, talvez estivesse apenas em seu porãozinho. E começou a busca. Vasculhou, varreu, faxinou todos os porões, até que se lembrou daquela que era a sua história preferida, que há muito não saía dali. Bateu à porta desse porão – toc! toc! Em seguida ouviu aquele ranger de porta velha se abrindo. Pandora se arrepiou todinha quando ouviu: — Depois de tantos anos, o que você quer de mim? Nossa! Como a sua voz estava fraca! Estaria doente aquela que era a sua história mais querida? Pandora arriscou: — Quero que saia desse porão e venha pela minha boca, por meus olhos, meu coração, por todo o meu corpo. Silêncio. Mais silêncio. Pandora arriscou de novo: — Então, aceita o meu convite ou vai ficar aí por mais alguns anos? Como a história estava enferrujada, levou certo tempo pra que ela pudesse despertar. Espreguiçou-se. Os seus músculos enrijecidos esta- laram feito um trovão bravo e quando as suas primeiras palavras saíram pela boca de Pandora, estavam tão fracas e roucas que não se aguentaram e caíram, uma a uma, pelo chão do quarto.
  • 87. A contadora catou-as com delicadeza, devolvendo-as à boca. Sentiu vontade de espirrar porque engasgara com uma das palavras meio picantes. Deu um espirro tão forte que foi levada junto com a história, espelho adentro. Seria mágico o espelho ou o espirro de Pandora? O barulho estremeceu o quarto todo, enquanto o espirro da contadora raptava-a para dentro do espelho. Ou seria o espelho o raptor do espirro, de Pandora e sua história? Foi aí que aconteceu o que você já sabe: do lado de cá arrombamento, procura daqui, procura dali, bombeiros, policiais e tudo o mais. Enquanto que do lado de lá um novo mundo surgia para Pandora. Uma voz firme e forte entrou pelos seus ouvidos e desceu até a altura do seu umbigo. E o umbigo lhe falou: — Pandora, como o Sol, como a Lua, como a água, como o ouro, quando sair daqui seja clara, brilhante e reflita aquilo que existe dentro de seu coração. Encantada com a viagem dentro do espelho, com o que via e ouvia dentro de si, respondeu: — Quem é você? Não se ouviu resposta alguma, porque tudo ficou em completo silêncio, a não ser o barulho do espirro de Pan- dora, que a essa altura se transformara em pequeno riacho lavando os pés da contadora, além, é claro, do ronco ron- cado de sua barriga vazia e faminta. Como não havia resposta, Pandora insistiu na per- gunta. Afinal, era a primeira vez que ela via e ouvia o seu umbigo falar. — Diga-me, quem é você? Havia tanta firmeza em sua fala que o umbigo respondeu:
  • 88. — Eu sou Nabelcus. — E o que Nabelcus faz? Então o seu umbigo resolveu lhe mostrar quais eram os seus poderes, e abrindo-se como uma boca enorme foi dizendo palavras. Não quaisquer palavras. Não palavras soltas. Foi dizendo uma palavra atrás da outra, que contasse a história preferida de Pandora de uma maneira que ela nunca havia contado. A contadora, encantada com aquele novo jeito de ouvir a sua velha história, descobriu que ela parecia nova, porque o tal Nabelcus escolhia outras palavras para contá-la, deixando-a com uma roupa diferente. Aquela história saída do umbigo de Pandora, palavra por palavra, formava um caminho de palavras que não era nada reto, não tinha subidas, não tinha descidas, só tinha curvas. Mais parecia um caracol de palavras no qual Pandora rodopiava, enquanto ouvia a voz de seu umbigo contar a sua própria história. Quando o rodopio parou de rodopiar ela estava bas- tante zonza, com tudo girando ao seu redor. Deitou-se na grama de palavras verdes e, de olhos bem fechados, deixou que as cores das palavras invadissem a sua visão, para somente os abrir quando tudo ao redor parasse de girar. E de olhos bem abertos foi que ela se descobriu em milhares de espelhos espalhados por todos os seis cantos daquele espaço cubado, espelhando as palavras da sua his- tória contada por seu umbigo de nome tão esquisito. Então ela falou: — Que lugar é este, Nabelcus? As milhares de outras Pandoras refletidas em todos os espelhos por ali espalhados, todas, ao mesmo tempo, falaram juntas: — Que lugar é esse Nabelcus? Eles então responderam: — Aqui é o centro do infinito.
  • 89. Pandora olhava para todas as outras Pandoras, que se olhavam umas para as outras e, de repente, começou a se confundir. Afinal, qual delas seria ela realmente? Porque naquele lugar espelhado a única coisa que se via era ela de todos os lados: de frente, de trás, à esquerda ou à direita, de ponta cabeça ou de pernas pro alto. Infi- nitas Pandoras se olhavam e se falavam com seus umbigos também falantes e iguais. Sem contar que todas as palavras saídas da boca de seu umbigo contador de suas histórias flutuavam pelo espaço e se multiplicavam infinitamente. Como havia chegado até ali se lembrava bem, porém, não fazia a mínima ideia de como sair, e ainda o porquê de ter vindo parar ali, já que essa era a primeira vez que isso acontecia com ela. Quis ficar com medo, mas não conseguiu, porque uma força maior impedia que usasse a cabeça para pensar pensamentos ruins. Achou que o melhor era entender tudo aquilo, mas para entender o que não entendia resolveu perguntar: — O que é o centro do infinito? E, novamente em coro, todas as Pandoras perguntaram: — O que é o centro do infinito? Os umbigos de todas elas fizeram cara de chatice e responderam: — É isto aqui, ué! A resposta de Nabelcus não ajudava em nada... Por isso Pandora resolveu perguntar diferente, com todas as outras Pandoras perguntando também: — E para que serve? Nabelcus achou aquela pergunta bem melhor que a outra, e respondeu: — Aqui no centro do infinito ou você se perde ou se acha para sempre. Os outros umbigos falaram igualzinho:
  • 90. — Aqui no centro do infinito ou você se perde ou se acha para sempre. — E o que acontece com quem fica perdido? — E o que acontece com quem fica perdido? Bem curto e grosso os umbigos responderam: — Fica prisioneiro dos espelhos. Vontade de sentir medo Pandora sentiu, mas de novo aquela força chegou primeiro, não deixando que os tais pensamentos entrassem pela sua cabeça. O pensamento pensado por ela era pensamento de querer saber, de fazer perguntas, pois só com boas respostas encontraria um jeito de sair dali. Sentou no espelho do chão, olhou para o espelho do céu, fechou os olhos porque já estava meio enjoada de se ver de todos os ângulos e ali ficou um tempão pensando pensamentos soltos, lembrando de coisas que já havia vivido. E, nesse vaivém de pensamentos, sem saber como nem porque, lembrou da bruxa da Branca de Neve com o seu espelho mágico. Será que ali os espelhos eram mágicos também? Pra saber, só perguntando. Foi o que fez. Foi o que todas fizeram: — Espelho, espelho meu! Quais são os seus poderes? E a resposta ecoou de todos os lados: do alto, de baixo, da frente, das costas, da direita e, também, da esquerda: — Tenho muitos poderes, mas o principal é o poder de refletir o coração das pessoas. — Mas como? As vozes das Pandoras entravam por todos os espelhos. E as vozes dos espelhos entravam por todas as Pandoras. — Aqui dentro ou você se acha ou você se perde, não tem jeito. Para se achar é preciso não ter medo da verdade, da sua verdade, de se ver como você realmente é, com seus defeitos e qualidades. Para se perder, basta fugir dessa que é a sua verdade.
  • 91. Ela quis saber mais e perguntou: — E por que me trouxeram para cá? Logicamente, as demais Pandoras fizeram, juntinhas, a mesma pergunta: — E por que me trouxeram para cá? O espelho respondeu: — Quando alguém se esquece da própria história, acaba sendo chamado para vir me visitar, e seu dia chegou. Como é? Vai querer brincar de esconde-esconde ou aceita enxergar a verdadeira Pandora? A contadora pensou que não tinha outro jeito, porque brincar de esconde-esconde significaria só fazer isso, mais nada, pelo resto da sua vida, o que seria muito monótono, um tédio. Ela perguntou: — E se eu não gostar de ver essa Pandora que eu des- conheço, poderei modificá-la? As demais também perguntaram. E ele respondeu: — Só depende de você! Assim, a contadora resolveu aceitar o convite feito pelo espelho,masnahoradeuumgelonabarriga.Elafechouosolhos, e todos os olhos das outras Pandoras também se fecharam. Ficaram assim por algum tempo, até que ouviram a voz de trovão daquele espelho: — Abre os olhos, Pandora, vamos! Ela abriu, e levou um enorme susto com o que via, porque simplesmente não se via mais em nenhum dos espe- lhos, embora eles continuassem ali, todos! Os do alto, os de baixo, os das quatro direções: Norte, Sul, Leste e Oeste, porém, em nenhum deles estava Pandora. Mas Pandora estava ali! Ela se via, ela se sentia, então, como não se refletia em nenhum dos espelhos? De novo o medo quis aparecer, só que a contadora não deixou, e resolveu perguntar:
  • 92. — Espelho, espelho meu, onde você me escondeu? Todos os espelhos riram daquela pergunta bobinha. Pandora meio irritada, falou: — Também quero rir! — À vontade! — Mas como, se eu desconheço a piada? — Acontece que não existe nenhuma piada! — Então do que é que vocês estão rindo? E os espelhos pararam de rir, todos ao mesmo tempo, para responder à contadora: — Nenhum de nós está escondendo você, Pandora! E essa não é uma pergunta inteligente! Aí sim que Pandora entendeu menos ainda, porque se os espelhos não estavam brincando de esconde-esconde com ela, então quem estaria? Quem? Ela quis saber, mas não gostou do que ouviu, porque todos os espelhos responderam em coro: — Você, Pandora, você! Enquanto você não mostrar a verdadeira Pandora que mora aí dentro do seu coração, nenhum de nós poderá refletir a sua imagem. É, realmente não havia jeito, pois ou a contadora abria a porta fechada de seu coração ou então ficaria ali, presa naquela caixa de espelhos, sem mesmo poder se ver. Que tristeza! Pandora falou: — Eu não sei como se abre a porta, porque ela está trancada e eu não sei onde coloquei a chave! O espelho do céu mandou a chave, um raio de luz que caía do alto entrando em seus olhos e também em seu coração. De repente, Pandora se viu refletida em um espe- lho e depois em outro e mais outro até que, novamente, estava aparecendo em todos eles, mas em cada um havia uma Pandora diferente de todas as outras. E agora, qual seria a verdadeira?
  • 93. Ela arriscou: — Espelho, espelho meu, quantas Pandoras sou eu? E os espelhos, iluminando cada uma delas, foram oferecendo pistas que lhe mostrassem qual seria ela de verdade. Desse jeito, a contadora descobriu quem ela era, olhando para cada uma daquelas Pandoras que eram de faz de conta. Foi se desconhecendo e ao mesmo tempo se reconhecendo: — Não, eu não sou você! — Você também é Pandora de mentira! — Ei! Este não é o meu sorriso! — Credo! Que choro mais falso! — Mas que Pandora gulosa! — Quem diria! Inventando mentiras, menina! E assim todas as falsas Pandoras foram morrendo na frente de todos aqueles espelhos, sobrando só uma: a verdadeira! Refletida no céu e na terra, nos mares e nas monta- nhas, na noite e no dia ela se iluminou, deixando que de seus olhos janelas, de suas mãos conchas, de sua boca ser- pentina, de seus pés raízes, de sua cabeça pássaro, de seu coração ninho, de seu umbigo céu e de todo o seu corpo palavra, sua história saísse para ser ouvida e sentida por todo o Universo. Corre solto esse boato que já virou lenda, ou melhor, mito.
  • 94.
  • 95.
  • 96.
  • 97. Todas as noites Pandora sonhava o mesmo sonho. Só que não era sonho de sonhar acordada, não! E, de manhãzinha, quando acordava, ficava lá olhando pro teto, pensativa, tentando entender aquele sonho que ela não entendia e que todas as noites vinha visitá-la. Não era sonho que metesse medo ou que trouxesse tristeza nem alegria. Era sonho estranho, só isso! Mas só isso já era muito! E de tanto sonhar o mesmo sonho e de tanto pensar sobre ele, um dia aconteceu! Logo que Pandora acordou, descobriu que não estava em seu quarto, muito menos em sua cama, que dirá em sua casa! Então onde é que ela estava? Fernando Pessoa O ho m em é do tamanho do seu sonho.
  • 98. Ela mesma se fez essa pergunta e, depois de algum tempo, procurando uma resposta, percebeu que estava em seu sonho. Aquele mesmo, noturnamente estranho. Ela pensou que mais estranho que sonhar um sonho estranho, era, de repente, vivê-lo. Por isso achou que não havia outro jeito, senão deixar que as coisas do sonho acontecessem ali, na sua vida de verdade. Respirou fundo e começou a fazer o que fazia no sonho. Começou a andar. Andar sem parar por um caminho muito diferente de uma estrada, de uma rua, de um trilho de trem ou de uma trilha. Um caminho construído por corredores largos, retos e brancos que não pareciam ter fim. O branco do chão era alvo como a neve. As paredes dos corredores, também bran- cas, eram luminosas. Brilhantes. As paredes eram altas, sem janela alguma, mas dava pra ver o céu porque os corredores não eram cobertos. O céu era de uma manhã bonita, ensolarada, igualzi- nha a do sonho de todas as noites. Pandora fazia aquele caminho branco, silencioso e vazio, porque só ela estava ali, mais ninguém. Às vezes os corredores se quebravam de um lado ou de outro, formando novos corredores tal qual aquele por onde ela andava. Isso deixava a contadora com uma “baita” dúvida, já que nada se modificava naquele caminho sem fim. Então, que direção tomar? Se houvesse ao menos uma escada que subisse ou descesse para outros lugares, ou, ainda, se esses novos cor- redores mudassem de cor! Mas não, um era igualzinho ao outro! Talvez, se houvesse algumas placas que sinalizassem alguma coisa como: — Pare! Vire à esquerda! Dobre à direita! Siga em frente! Mas nada. Nenhuma pista.